quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Vaticano traduz mal o Papa



Traduttore, traditore. Tradutor, traidor. A expressão italiana parece ajustada quando se olha para textos recentes vindos do Vaticano, com diferenças notórias nas diversas línguas. O caso mais grave é o da exortação apostólica Evangelii Gaudium, do Papa Francisco, publicada a 24 de Novembro, onde a “violação” da mulher, do original espanhol, deu lugar à “violência” sobre a mulher em italiano, francês, alemão e português. Entre as línguas ocidentais do site do Vaticano, apenas o inglês manteve a expressão “violação”.
Os problemas de tradução dos documentos do Vaticano já tinham aparecido a propósito do inquérito de preparação do Sínodo dos Bispos sobre a Família, que decorrerá em Outubro deste ano. O questionário, divulgado em Outubro passado, tinha várias perguntas pouco claras e mal formuladas. Mas a versão portuguesa chegava a transformar uma pergunta – “Onde é conhecido, o ensinamento da Igreja é aceite integralmente?” – numa afirmação, na qual o ponto de interrogação desaparecia.
O texto da exortação Evangelii Gaudium (A Alegria do Evangelho), do Papa Francisco, foi escrito originalmente em espanhol e, depois, vertido para italiano, de acordo com a informação que RELIGIONLINE recolheu junto de uma fonte bem colocada no Vaticano, que pediu o anonimato. No parágrafo 214 do original espanhol, a frase diz, de acordo com o texto que está no sítio do Vaticano: “No es progresista pretender resolver los problemas eliminando una vida humana. Pero también es verdad que hemos hecho poco para acompañar adecuadamente a las mujeres que se encuentran en situaciones muy duras, donde el aborto se les presenta como una rápida solución a sus profundas angustias, particularmente cuando la vida que crece en ellas ha surgido como producto de una violación o en un contexto de extrema pobreza.
Na tradução para italiano, caiu o termo “violação”, substituído por “violência”: “...particolarmente quando la vita che cresce in loro è sorta come conseguenza di una violenza o in un contesto di estrema povertà.O erro parece ter estado logo nesta primeira tradução para italiano, que serviria de matriz para as diferentes línguas, incluindo o português: “Não é opção progressista pretender resolver os problemas, eliminando uma vida humana. Mas é verdade também que temos feito pouco [a Igreja] para acompanhar adequadamente as mulheres que estão em situações muito duras, nas quais o aborto lhes aparece como uma solução rápida para as suas profundas angústias, particularmente quando a vida que cresce nelas surgiu como resultado duma violência ou num contexto de extrema pobreza.”
O erro foi mantido em francês: “en particulier quand la vie qui croît en elles est la conséquence d’une violence, ou dans un contexte d’extrême pauvreté.” E também a versão alemã repete a mesma opção: “besonders, wenn das Leben, das in ihnen wächst, als Folge einer Gewalt oder im Kontext extremer Armut entstanden ist.
Das línguas ocidentais em que o texto está traduzido no site do Vaticano, apenas a língua inglesa mantém a palavra inicial: “especially when the life developing within them is the result of rape or a situation of extreme poverty.
Uma outra fonte do Vaticano relativizava, em declarações a este blogue, o erro da tradução: “A violência é uma expressão que cobre uma realidade mais ampla e é relativa a toda a sociedade, enquanto a violação é algo de mais concreto.” Neste caso específico, pode reparar-se aliás que o Papa alude a duas situações – a violação e a pobreza extrema – que estão na base de várias leis que despenalizam o aborto.
Normalmente, as traduções são feitas em diferentes serviços do Vaticano, consoante o texto em questão: os documentos mais importantes são traduzidos pelos clérigos da Secretaria de Estado; os restantes podem passar por instituições como a Sala de Imprensa, a Rádio Vaticano ou o jornal L’Osservatore Romano, ou ainda por casas onde residem membros do clero – como o Colégio Pontifício Português. Em Maio de 2010, por exemplo, quando o Papa Bento XVI veio a Portugal, residentes do Colégio foram solicitados a traduzir os discursos que o Papa iria fazer em Lisboa, Fátima e Porto.
Já o inquérito do Sínodo sobre a família também tinha vários problemas. A construção gramatical nem sempre era a mais escorreita, além de que a pergunta 1.b. foi transformada em afirmação. O padre Manuel Morujão, porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), explica que, quando o erro foi assinalado, já o inquérito tinha sido distribuído. E como tinha vindo assim de Roma, a CEP já não voltou atrás com qualquer correcção. 
Havia, no entanto, outros casos de tradução errada ou deficiente no inquérito. Num artigo de opinião no “Público, a 22 de Dezembro último, a investigadora universitária Laura Ferreira dos Santos deu exemplos: “A versão portuguesa do inquérito, vinda diretamente de Roma, revela vários descuidos de linguagem. Veja-se a pergunta 8.c.: ‘Em que medida as crises de fé, pelas quais as pessoas podem atravessar, incidem sobre a vida familiar?’.” E perguntava: “Que interessa que este português tenha vindo directamente de Roma se está mal redigido?”
Ainda a propósito de linguagem, a mesma autora chamava a atenção para o deslize das versões portuguesa, francesa, italiana e espanhola para a ‘ideologia de género’, habitual na Igreja” e que se pode verificar pelo uso da expressão “paternidade” em vez de “parentalidade”, “como se a mulher fosse um mero recipiente da ‘semente’ do homem, na linha de Aristóteles”. E acrescentava: “Só as versões inglesa e alemã (entre as línguas que conheço) usam uma linguagem não-sexista: human personMenschparenthood, Elternschaft.
Os problemas de tradução com documentos papais ou do Vaticano acontecem, no entanto, desde há muito e com alguma regularidade. O padre Peter Stilwell, que organizou o livro Caminhos da Justiça e da Paz (ed. Rei dos Livros, 1993), com documentos da doutrina social da Igreja entre 1891 e 1991, anotou vários erros que encontrou.
Na bibliografia, nota Peter Stilwell sobre o nº 35 da exortação Evangelii Nuntiandi (O Anúncio do Evangelho), um dos textos mais importantes do Papa Paulo VI (Dezembro de 1975): “Todas as traduções portuguesas repetem um erro grave no nº 35: onde se lê ‘toda a libertação política... encerra em si mesma o gérmen da sua própria negação... por isso mesmo que as suas motivações profundas não são as da justiça na caridade...’, deveria ler-se ‘na medida em que... não sejam...’" (ou, como ficou traduzido na última edição “quando… não são...”).
Em declarações ao RELIGIONLINE, Peter Stilwell recorda que muitas das falhas que encontrou eram “italianismos ou brasileirismos”. Mas havia outros erros graves: no texto da encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII (publicada em 1891, que marca o início da moderna doutrina social católica), Stilwell recorda que havia “um corte”, nas edições portuguesas do texto, quando se referia a necessidade do trabalho mais curto para os mineiros.
“Como crítica geral, diria que grande parte das traduções são feitas a partir de traduções italianas, francesas ou espanholas, sem o trabalho de confrontar com a versão oficial, que é a latina”, nota Peter Stilwell, actual reitor da Universidade de São José, em Macau. “Nos casos de João Paulo II e Bento XVI, sabemos que alguns dos documentos foram redigidos em polaco ou alemão. Nesses casos é discutível sobre o que é o original, embora Roma afirme que é a versão latina que é a oficial. Mas nos pontificados anteriores quer os papas quer os que lhes preparavam os documentos usavam o latim como nós usamos o português. Um caso curioso é a encíclica Ecclesiam Suam, de Paulo VI. Quando comparei a versão latina e a versão italiana parecia, nalguns passos, que estava diante de dois documentos distintos.”
Há outros casos mais prosaicos, que se registam de vez em quando. O jornalista Fernando Pinho, que trabalhou no Programa Português da Rádio Vaticano, conta que, em finais da década de 1980, o Papa João Paulo II disse por três semanas seguidas, na alocução dos domingos, em português: “Vamos rezar a ‘plegária’ do Angelus.” Apesar de ter chamado a atenção para o erro de “plegária” em vez de “oração, o padre que traduzira o texto insistia que “plegária” era uma palavra portuguesa. Só após essas três semanas e a insistência de outras pessoas é que o erro foi corrigido.

“Não é fácil encontrar sempre quem seja muito competente na linguagem eclesial e na linguística”, conclui Fernando Pinho. Por isso, pelos vistos, pode acontecer trair no exercício de traduzir.

(actualização 1: um trabalho da SIC sobre este artigo pode ser visto aqui)
(actualização 2: O site espanhol Religión Digital deu destaque a este trabalho na sua edição de 14.02.2014. Ver AQUI).

2 comentários:

António Marujo disse...

O Filipe d'Avillez, da RR, chamou a atenção para mais dois casos (pessoalmente, o primeiro parece-me menos relevante, mas fica também registado):

Na Humanae Vitae (encíclica de Paulo VI), quando se fala da abstinência periódica para evitar novas gravidezes, o termo usado não é, como é muitas vezes traduzido "razões graves", mas sim razões sérias. O que tem um peso diferente.
http://www.hprweb.com/.../humanae-vitae-grave-motives-to.../

Outro caso é o da Lumen Gentium (documento do Concílio Vaticano II sobre a Igreja). No texto original diz-se (nº 8) que a verdadeira Igreja de Cristo "subsiste" na Igreja Católica.
Contudo, na tradução portuguesa isso aparece da seguinte forma: "Esta Igreja, constituída e organizada neste mundo como sociedade, é na Igreja católica, governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em união com ele, que se encontra".

"É na Igreja Católica que se encontra" dá a entender simplesmente que não se encontra em mais lado nenhum. "Subsiste na Igreja Católica" já implica que é possível encontrá-la noutras igrejas, como as ortodoxas, por exemplo. E atenção que estou a falar da tradução oficial que está no site do Vaticano!

O mais absurdo é que, no documento Dominus Iesus (2000) que fala deste mesmo assunto, cita-se a Lumen Gentium e, aí, na tradução portuguesa do site do Vaticano, a citação está correcta! Ou seja, a versão portuguesa do site do Vaticano cita bem um documento que tem mal, mas ninguém se deu ao trabalho de corrigir o original.

Onac disse...

"Que sejam pais e irmãos, que sejam mansos, pacientes e misericordiosos; que amem a pobreza, interior como liberdade para o Senhor e também exterior, como simplicidade e austeridade de vida, que não sigam uma psicologia de «Princípios»".
http://www.vatican.va/holy_father/francesco/speeches/2013/june/documents/papa-francesco_20130621_rappresentanti-pontifici_po.html