Comentário
O Papa Francisco entregou, na manhã deste sábado, o barrete e o anel
cardinalício a 19 novos cardeais, aos quais pediu para serem “homens de paz”.
Ausente, por razões de saúde, esteve apenas Loris Capovilla, que foi
secretário do Papa João XXIII. Aqui podemos ficar a conhecer pormenores da história de Capovilla e do próprio
Papa Roncalli.
Com esta cerimónia, o Colégio Cardinalício fica mais internacional.
Este é, no entanto, apenas o primeiro passo para a mudança de que a
Igreja necessita. No governo da comunidade católica, deve conseguir-se a
síntese entre a liderança pessoal do Papa, que precisa de ter pessoas de
confiança em determinados lugares, e a representatividade da Igreja universal.
Se isso não se conseguir, fica traída a noção de catolicidade implícita à
própria identidade eclesial.
O Colégio Cardinalício pode ser o embrião de um órgão consultivo do Papa
(até agora, ele era, em muitos casos, o resultado de “prémios” por determinado
cargo ou carreira). As escolhas que o Papa Francisco fez para este consistório
tiveram a preocupação de trazer para o colégio algumas pessoas que representam
realidades eclesiais emergentes ou povos mais periféricos (para usar um termo
caro ao Papa Francisco) de África, Ásia e América Latina.
As escolhas para os novos cardeais são uma boa decisão, que vai mais
longe do que algumas tentativas de internacionalizar o colégio, feitas pelos
diferentes papas desde João XXIII. Mas este passo não é suficiente. A função de cardeal foi instituída em 1050
(há menos de mil anos) pelo Papa Leão IX (1049-54), com o objectivo de ajudar o
bispo de Roma no governo da Igreja Católica. Desde 1179, o colégio passou a ser
o único órgão a eleger o Papa, substituindo-se assim à tradição sinodal e
conciliar, até aí dominante nos processos de decisão da Igreja. Os bispos,
incluindo o de Roma, eram eleitos pelos padres e pelos outros fiéis da respectiva
diocese.
A
instituição do cardinalato tentou resolver o problema da necessária reforma que
a Igreja então enfrentava. O papado estava entregue a lutas intestinas entre
várias famílias e nobres de Roma e Leão IX queria rodear-se de homens capazes
de o apoiar no objectivo reformador. Chamou-lhes cardeais, nome dado aos padres
que então celebravam a missa e os sacramentos nas diferentes igrejas romanas.
São estes colaboradores, vindos de fora de Roma, que acabam por, ao longo dos séculos,
assegurar cada vez mais o governo central da Igreja, substituindo mesmo a estrutura do Sínodo de
Roma.
Ou seja: a criação do colégio de cardeais obedeceu a necessidades de
reforma que, hoje voltam a ser urgentes: este órgão tem de evoluir para ser cada
vez mais um colégio cada vez mais de consulta e aconselhamento do Papa; e que
seja completado com um núcleo de pessoas que representem verdadeiramente o
sentir da Igreja universal.
O Colégio Cardinalício, que não tem raízes bíblicas nem teológicas (tal
como as conferências episcopais, criadas também por razões pastorais e
instrumentais), deveria ser seriamente repensado, a par da reflexão, urgente e
necessária, sobre o modelo do papado, do lugar da Cúria Romana e das
conferências episcopais. E sobre a questão do próprio modelo de eleição papal:
o colégio de eleitores é escolhido pelo Papa em funções, que molda cada grupo
de cardeais e, desse modo, determina sempre a escolha do seu sucessor. Ou seja,
aquele que está ausente do conclave (o Papa anterior) acaba por ser, no actual
modelo de eleição, quem mais determina a escolha do sucessor.
Após o Concílio Vaticano II (1962-65) instituiu-se o Sínodo dos Bispos
como órgão de consulta e aconselhamento do Papa. E o Papa Francisco já insistiu
na necessidade de estimular e aperfeiçoar os processos sinodais no interior do
catolicismo. Faz todo o sentido, por isso, que seja o sínodo ou um colégio eleitoral
de bispos delegados para esse efeito que passe a aconselhar o Papa e, chegado o
momento, a eleger o seu sucessor. Para que o bispo de Roma, teologicamente
entendido como garante da unidade, não seja escolhido por um conjunto de
pessoas que afinal – e ainda que mais internacionalizado – não representa senão
quem os escolheu para tal cargo. Um colégio de cardeais mais internacional, mais
resultante das comunidades locais, mais universal – logo, mais católico – não
anula, antes aperfeiçoa, a colegialidade do conjunto dos bispos.
(as partes do texto em itálico são excertos de um comentário que escrevi no “Público” em 21 de Fevereiro de 2001)
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