sábado, 22 de fevereiro de 2014

Um primeiro passo para a necessária reforma do Colégio Cardinalício

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(foto reproduzida daqui)

O Papa Francisco entregou, na manhã deste sábado, o barrete e o anel cardinalício a 19 novos cardeais, aos quais pediu para serem “homens de paz”.
Ausente, por razões de saúde, esteve apenas Loris Capovilla, que foi secretário do Papa João XXIII. Aqui podemos ficar a conhecer pormenores da história de Capovilla e do próprio Papa Roncalli.
Com esta cerimónia, o Colégio Cardinalício fica mais internacional.
Este é, no entanto, apenas o primeiro passo para a mudança de que a Igreja necessita. No governo da comunidade católica, deve conseguir-se a síntese entre a liderança pessoal do Papa, que precisa de ter pessoas de confiança em determinados lugares, e a representatividade da Igreja universal. Se isso não se conseguir, fica traída a noção de catolicidade implícita à própria identidade eclesial.
O Colégio Cardinalício pode ser o embrião de um órgão consultivo do Papa (até agora, ele era, em muitos casos, o resultado de “prémios” por determinado cargo ou carreira). As escolhas que o Papa Francisco fez para este consistório tiveram a preocupação de trazer para o colégio algumas pessoas que representam realidades eclesiais emergentes ou povos mais periféricos (para usar um termo caro ao Papa Francisco) de África, Ásia e América Latina.
As escolhas para os novos cardeais são uma boa decisão, que vai mais longe do que algumas tentativas de internacionalizar o colégio, feitas pelos diferentes papas desde João XXIII. Mas este passo não é suficiente. A função de cardeal foi instituída em 1050 (há menos de mil anos) pelo Papa Leão IX (1049-54), com o objectivo de ajudar o bispo de Roma no governo da Igreja Católica. Desde 1179, o colégio passou a ser o único órgão a eleger o Papa, substituindo-se assim à tradição sinodal e conciliar, até aí dominante nos processos de decisão da Igreja. Os bispos, incluindo o de Roma, eram eleitos pelos padres e pelos outros fiéis da respectiva diocese.

A instituição do cardinalato tentou resolver o problema da necessária reforma que a Igreja então enfrentava. O papado estava entregue a lutas intestinas entre várias famílias e nobres de Roma e Leão IX queria rodear-se de homens capazes de o apoiar no objectivo reformador. Chamou-lhes cardeais, nome dado aos padres que então celebravam a missa e os sacramentos nas diferentes igrejas romanas. São estes colaboradores, vindos de fora de Roma, que acabam por, ao longo dos séculos, assegurar cada vez mais o governo central da Igreja, substituindo mesmo a estrutura do Sínodo de Roma.
Ou seja: a criação do colégio de cardeais obedeceu a necessidades de reforma que, hoje voltam a ser urgentes: este órgão tem de evoluir para ser cada vez mais um colégio cada vez mais de consulta e aconselhamento do Papa; e que seja completado com um núcleo de pessoas que representem verdadeiramente o sentir da Igreja universal.
O Colégio Cardinalício, que não tem raízes bíblicas nem teológicas (tal como as conferências episcopais, criadas também por razões pastorais e instrumentais), deveria ser seriamente repensado, a par da reflexão, urgente e necessária, sobre o modelo do papado, do lugar da Cúria Romana e das conferências episcopais. E sobre a questão do próprio modelo de eleição papal: o colégio de eleitores é escolhido pelo Papa em funções, que molda cada grupo de cardeais e, desse modo, determina sempre a escolha do seu sucessor. Ou seja, aquele que está ausente do conclave (o Papa anterior) acaba por ser, no actual modelo de eleição, quem mais determina a escolha do sucessor.

Após o Concílio Vaticano II (1962-65) instituiu-se o Sínodo dos Bispos como órgão de consulta e aconselhamento do Papa. E o Papa Francisco já insistiu na necessidade de estimular e aperfeiçoar os processos sinodais no interior do catolicismo. Faz todo o sentido, por isso, que seja o sínodo ou um colégio eleitoral de bispos delegados para esse efeito que passe a aconselhar o Papa e, chegado o momento, a eleger o seu sucessor. Para que o bispo de Roma, teologicamente entendido como garante da unidade, não seja escolhido por um conjunto de pessoas que afinal – e ainda que mais internacionalizado – não representa senão quem os escolheu para tal cargo. Um colégio de cardeais mais internacional, mais resultante das comunidades locais, mais universal – logo, mais católico – não anula, antes aperfeiçoa, a colegialidade do conjunto dos bispos.
(as partes do texto em itálico são excertos de um comentário que escrevi no “Público” em 21 de Fevereiro de 2001)

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