Crónica – P.
Vítor Gonçalves
“Querendo justificar-se, perguntou a Jesus: ‘E
quem é o meu próximo?’” (Evangelho de Lucas 10, 28 - Domingo XV do tempo
comum, Ano C)
Podemos ler
em livros, ver em filmes e documentários, imaginar a partir de imagens, mas
pisar o terreno de Auschwitz e de Birkenau na Polónia, dois dos vários campos
de concentração e extermínio do regime nazi, é indescritível. Depois das
paisagens verdes e belas e do esplendor dos inúmeros santuários polacos, estes
lugares de dor e absurdo não deixam ninguém indiferente. Alguém disse um dia,
perante tanta barbárie e desumanidade, que "Deus morreu em Auschwitz", mas é preciso não esquecer que a
paixão de Jesus continua na de cada pessoa que sofre, que a maldade foi e será
vencida de muitas maneiras. E se estes lugares parecem concentrações do mal que
o ser humano é capaz de inventar, é preciso pensar que o mal acontece e
permanece pela força de alguns e pela indiferença de muitos. Os caminhos de
Jerusalém para Jericó onde há quem esteja caído, meio morto e abandonado, são,
afinal, os caminhos de cada um de nós.
Impressiona
imaginar cada pessoa por detrás dos milhões que aqui morreram, o inferno que
era a vida dos que sobreviviam às viagens, e as assombrosas formas de matar e
causar sofrimento. No corpo, mas sobretudo no espírito. Dizia a nossa guia que
eram "sofisticadas fábricas de matar"! O saber humano ao serviço da
bestialidade, a dignidade da pessoa espezinhada e destruída. E continua tão
actual a frase de Wladyslaw Bartoswewski, um sobrevivente de Auschwitz: "Milhões de pessoas no mundo sabem o que foi
Auschwitz, mas a questão básica continua no consciente e memória das pessoas. E
depende somente da sua decisão se esta tragédia voltará a acontecer. Somente as
pessoas puderam causá-la e somente as pessoas podem impedi-la."
Podemos imaginar o demónio fora de nós mas, pelos gestos ou pela indiferença,
onde ele continua a dominar é no coração e no pensamento de quem o deixa
crescer dentro de si. E o mal “organizado” pode revestir muitos nomes,
ideologias, políticas e economias, mas sempre será o domínio ou a superioridade
sobre um ou muitos seres humanos.
Dava jeito
ter uma lista de “próximos”, não muito longa para estar sempre em dia com as
obrigações. Mas Jesus, que parece não gostar muito de listas, nem de obrigações
nem de pecados (quem as aprecia é normalmente quem se especializa em julgar os
outros!), valoriza a atenção e o coração generoso. Em cada situação é
importante o outro e a sua circunstância, ainda que haja urgência na viagem ou
actividades que parecem inadiáveis. O servidor do templo e o sacerdote que
regressam das celebrações sagradas e belas de Jerusalém ficam mal na
fotografia. Tão “junto de Deus” e tão distantes dos homens, eles são um espelho
para a nossa religiosidade. Afinal o “amor a Deus” pode “vacinar-nos” do
contágio que Jesus veio espalhar: o próximo tem nome e rosto e está sempre
perto de nós. Pode não estar caído à maneira do Evangelho, e talvez o
sofrimento não seja visível, mas o gesto de cada um pode fazer a diferença. A
indústria de matar alimenta-se da indiferença; a obra do amor de Deus cresce
com as nossas mãos estendidas. Hoje mesmo, há alguém de quem te podes
aproximar?
(in "Voz da
Verdade", 14.07.2013; foto reproduzida daqui)
Sem comentários:
Enviar um comentário