(ilustração: Twitter)
O anúncio de
que o Vaticano teria concedido indulgências a todos os que participassem à
distância na Jornada Mundial da Juventude (JMJ) fez levantar uma pequena
polémica nos media. Afinal, os
católicos podem agora ser perdoados através das redes sociais? E faz sentido
manter a prática das indulgências, que se tornou um dos temas mais importantes
a conduzir à Reforma de Lutero?
Verdade seja
dita que, ao contrário do que foi publicado em muitos sítios, os sete milhões
de seguidores do Papa na rede social Twitter não terão o perdão dos seus
pecados apenas porque acompanham a JMJ.
Num texto
publicado hoje pelo semanário francês La Vie, explica-se que
o decreto do Vaticano sobre o tema apenas refere que os fiéis podem beneficiar
das indulgência mediante certas condições: confessar-se, participar na missa,
rezar e submeter-se filialmente “ao soberano pontífice”. Depois, seguindo pela
rádio, televisão ou pelos “novos meios de comunicação” os principais actos da
JMJ, poder-se-à beneficiar do perdão da indulgência. A medida, explica ainda o
semanário, pretende atingir sobretudo os jovens que quereriam ir ao Rio de
Janeiro mas que, não podendo fazê-lo, podem seguir o acontecimento através de
telefones ou computadores.
A pergunta
que se coloca é se faz sentido, para as actuais gerações de cristãos – e mais
ainda para os jovens – manter uma prática como esta. Além da linguagem, que já
pouco tem a ver com a cultura contemporânea, a própria teologia evoluiu e fala
hoje muito mais do perdão gratuito de Deus do que de práticas quase mecânicas
para o obter.
Iniciada no
final da Idade Média (séculos XIII-XIV), a prática das indulgências foi
associada ao primeiro “jubileu”, proclamado em 1300 pelo Papa Bonifácio VIII. A
sua prática começou depois a ser objecto de abuso, com membros do clero a fazer
tráfico, pedindo dinheiro em troca de indulgências. Em pleno Renascimento, a
multiplicação desses abusos ficou também ligada ao financiamento da construção
da Basílica de São Pedro. Foi esse facto que levou Martinho Lutero a criticar o
abuso desse tráfico, o que acabou por levar à ruptura com o papado. Cinquenta
anos mais tarde, o Concílio de Trento condenaria a venda das indulgências, mas
a ruptura estava consumada.
O sentido
original das indulgências explica-se segundo a visão católica tradicional do
perdão e da reparação espiritual. Segundo essa perspectiva, não basta obter o
perdão dos pecados na confissão e repará-los em concreto – por exemplo,
devolvendo dinheiro roubado ou tentando remediar algum mal que se tenha feito a
outra pessoa. É necessário também “expiá-los” espiritualmente, porque se parte
do princípio de que o pecado de alguém fere todos os membros da Igreja – por
isso se faz “penitência”, da mesma forma que fazer o bem beneficia todos os
outros crentes.
Esta visão
católica (distante da concepção protestante) completa-se com a ideia de que há
uma comunicação entre a Igreja na terra, a Igreja celeste e o Purgatório (outra
criação medieval, como bem explica Jacques Le Goff em O Nascimento do Purgatório, ed. Estampa). O próprio Papa João Paulo
II, recorde-se, defendeu, numa série de catequeses semanais, que céu,
purgatório e inferno não existem enquanto lugares físicos.
As
indulgências apareceram no contexto doutrinal dessa existência do Purgatório e
num ambiente vivencial de duras penitências dadas às pessoas quando iam
confessar-se. Na mesma formulação, o Papa, que tinha o poder de perdoar ou não
os pecados, podia também entrar no “tesouro da Igreja”, acumulado no céu pelo
mérito dos santos. Por isso ele pode permitir, quando entende, o acesso a esse
“tesouro” a todos os fiéis através de certas práticas devocionais.
“O problema
é que a aquisição de uma indulgência plenária estipula, de modo claro, uma
contrição perfeita, quer dizer o lamento firme de todas as suas faltas, pelo
amor a Deus”, diz um padre especialista em Direito Canónico citado pelo La Vie.
“Ora, como podemos estar seguros de que estamos nesse estado? É
impossível... O perigo é favorecer uma compreensão mecanicista e legalista dos
actos que a Igreja pede para obter a indulgência plenária e levar as pessoas a
acreditar que têm as contas fechadas com Deus porque já preencheram todas as
casas...”
De facto,
insistir em tais práticas devocionais não tem, hoje, qualquer sentido. Mesmo
recuperando o sentido original, a doutrina e o tema são de tal modo rebuscados
e complexos que o crente comum dificilmente atingirá o seu significado.
O perdão e a
importância de se sentir perdoado têm que ser ensinados e experimentados de
outra maneira, que não nesta lógica de algo que se pode alcançar apenas pela
prática de devoções e fórmulas, como numa troca de mercadorias.
Karl Rahner
escrevia, em Sobre a Inefabilidade de
Deus – Experiências de um Teólogo Católico: “O tema da pecaminosidade do
homem e do perdão da culpa por pura graça é, e certo sentido, algo secundário
em comparação com o tema da autocomunicação de Deus. Não como se nós, no nosso
egoísmo, não fôssemos pecadores incessantemente obstinados. Não como se nós não
necessitássemos da graça divina do perdão, graça que há-de ser aceite por nós
como pura graça, sem nenhuma pretensão nossa de ter direito a ela.” (citado em Dios, amor que descende – Escritos espirituales,
ed. Sal Terrae)
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