segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

A Bíblia contada por Chagall

Livro


A Bíblia é, desde sempre, fonte de inspiração infinita para artistas – na literatura, na arquitectura, nas artes decorativas, na pintura... Alguns levaram esse exercício mais longe, ilustrando o texto “integral”, através da representação dos episódios mais marcantes. São conhecidos os casos de Gustave Doré ou dos fotógrafos da Magnum; ou, em Portugal, o da Bíblia de Ferreira d’Almeida ilustrada por Ilda David’.
Marc Chagall (1887-1985) foi um “judeu errante”, como lhe chamou há um ano a revista “Beaux Arts”. De origem russa, naturalizado francês, trabalhou a Bíblia como uma paixão: entre 1930 e 1956, narrou, com as suas cores de fogo, de terra e de céu, passagens bíblicas do Antigo Testamento ou da vida de Jesus, sempre referenciadas à vida que o artista via em seu redor, como era o caso das deportações de judeus ou do sofrimento infligido pela guerra. Afirmou ele, a propósito: “Depois da minha juventude, fiquei cativado pela Bíblia. Pareceu-me sempre, e parece-me ainda, que é a maior fonte de poesia de todos os tempos. Desde então, procurei esse reflexo na vida e na arte. A Bíblia é como uma ressonância da natureza e tento transmitir esse segredo.”


(Marc Chagall, Cântico dos Cânticos II, 1957)

O seu trabalho de aproximação à Bíblia teve, como pretexto imediato, a encomenda do mercador de arte Ambroise Vollard que queria ilustrações para Les Âmes Mortes, de Gogol, as Fábulas de La Fontaine e a Bíblia. Neste último caso, a paixão que Chagall manifestou pelo texto sagrado durante toda a sua vida torna-se evidente em obras como “Deus criou o homem” (1930), “O Rei David” (1951), “As Páscoas” (1968), as telas do “Cântico dos Cânticos” (1957-66), “O Êxodo” (1952-66), “A Crucifixão branca” (1938) ou o tríptico “Revolução (Resistência, Ressurreição, Libertação)” (1937-52).


A pintura bíblica de Chagall não pode ser dissociada do resto da sua obra: quer em termos cromáticos, onde se vai do “azul dos sonhos” até ao “vermelho da paixão”, como escreve Antje Kramer na “Beaux Arts”, já que as intensas cores utilizadas por Chagall eram fruto de um trabalho persistente e nos conduzem a dimensão “cósmica, lírica e psíquica”; quer enquanto tradução de um universo simbólico que, mesmo quando não tem relação directa com a Bíblia, remete para esse aspecto central da linguagem bíblica e pictórica: a noite, os animais sagrados, o cordeiro, as sinagogas e as igrejas, o casal humano, os candelabros e menorás judaicos, os instrumentos musicais... tudo concorre para a construção de um universo inspirado no texto bíblico e que para ele reenvia.
O artista mais não faz, aliás, que olhar em redor e perscrutar o sagrado que o envolve. Como escrevem Jean-Michel Foray e Françoise Rossini-Paquet no livro do Museu de Nice, a mensagem bíblica de Chagall não é uma excrescência tardia na obra do pintor mas, antes, “o prolongamento de uma atenção constante ao religioso”, entendido como algo que remete para outra coisa além do estritamente religioso. Vários quadros de temática religiosa mais não fazem que trazer ao nosso olhar tragédias como a guerra, o exílio e as deportações forçadas de judeus ou, pelo contrário, o amor, a alegria e a ternura humana. Nesse sentido, Chagall inscreve-se numa tradição especificamente judaica, recordam os mesmos autores, de comentário ao texto bíblico: se, para o judaísmo, Deus é irrepresentável, a sua Palavra tem que ser interpretada para ser entendida.
A própria figura de Cristo é, em Chagall, a representação de uma identidade judaica quer enquanto povo, quer na recuperação da figura do judeu Jesus de Nazaré – que se torna, com o pintor, também um símbolo do judeu sacrificado. Nesse sentido, o tríptico “Revolução” mostra o sofrimento dos judeus na guerra mas apresenta igualmente uma visão de esperança, que nos é dada pela música e pela alegria que transparece no terceiro painel e também pelos próprios títulos das três telas. Na “Beaux Arts” já citada, Élisabeth Paccoud-Rème recorda as palavras de Chagall na inauguração do museu de Nice: “Estes quadros, no meu pensamento, não representam o sonho apenas de um povo, mas da humanidade (...) Talvez venham a esta casa jovens e menos jovens procurar um ideal de fraternidade e de amor tal como as minhas cores e as minhas linhas sonharam.”
Neste belíssimo livro, recolhem-se as pinturas para os livros do Génesis, Êxodo e Cântico dos Cânticos (uma parte da sua obra de inspiração bíblica esteve exposta no ano passado, na mostra Chagall, entre guerre et paix, no Musée du Luxembourg, em Paris; e pode ser vista em permanência no Musée National Message Biblique Marc Chagall, em Nice).
Nos episódios bíblicos aqui reunidos, há anjos e pessoas a voar, animais sacralizados e estrelas, crucifixões e ressurreições, êxodos de povos e peregrinações solitárias. Vermelhos intensos, azuis carregados, brancos e amarelos luminosos... São ilustrações que dançam (como na criação do homem), que transmitem uma grande serenidade (episódio de Abraão com os três anjos) ou uma forte convicção (Moisés levantando a vara, para que os israelitas atravessam o mar a pé enxuto). Ou ainda uma grande exaltação, como nas diversas tábuas que descrevem passagens do Cântico dos Cânticos.
Uma obra que é um regalo. E nos dá a possibilidade de ler narrativas da criação, da libertação ou de paixão num duplo movimento, articulado entre a imagem e o texto (traduzido por Herculano Alves, António Couto e José Tolentino Mendonça).

Antigo Testamento – Génesis, Êxodo e Cântico dos Cânticos
Ilustrações de Marc Chagall
Ed. Relógio d’Água

(este texto retoma dois artigos publicados nas revistas Mensageiro de Santo António, de Janeiro de 2014, e Invenire nº 6)

1 comentário:

Paulo Melo disse...

A propósito de ilustrações da Bíblia, há um monge pintor alemão que, no meu entender, devia ser mais divulgado, contemplado: Sieger Köder.

Paulo Melo