Livro
A
Bíblia é, desde sempre, fonte de inspiração infinita para artistas – na
literatura, na arquitectura, nas artes decorativas, na pintura... Alguns
levaram esse exercício mais longe, ilustrando o texto “integral”, através da
representação dos episódios mais marcantes. São conhecidos os casos de Gustave
Doré ou dos fotógrafos da Magnum; ou, em Portugal, o da Bíblia de Ferreira
d’Almeida ilustrada por Ilda David’.
Marc
Chagall (1887-1985) foi um “judeu errante”, como lhe chamou há um ano a revista
“Beaux Arts”. De origem russa, naturalizado francês, trabalhou a Bíblia como
uma paixão: entre 1930 e 1956, narrou, com as suas cores de fogo, de terra e de
céu, passagens bíblicas do Antigo Testamento ou da vida de Jesus, sempre
referenciadas à vida que o artista via em seu redor, como era o caso das
deportações de judeus ou do sofrimento infligido pela guerra. Afirmou ele, a
propósito: “Depois da minha juventude, fiquei cativado pela Bíblia. Pareceu-me
sempre, e parece-me ainda, que é a maior fonte de poesia de todos os tempos.
Desde então, procurei esse reflexo na vida e na arte. A Bíblia é como uma
ressonância da natureza e tento transmitir esse segredo.”
(Marc Chagall, Cântico dos Cânticos II, 1957)
O
seu trabalho de aproximação à Bíblia teve, como pretexto imediato, a encomenda
do mercador de arte Ambroise Vollard que queria ilustrações para Les Âmes Mortes, de Gogol, as Fábulas de La Fontaine e a Bíblia. Neste
último caso, a paixão que Chagall manifestou pelo texto sagrado durante toda a
sua vida torna-se evidente em obras como “Deus criou o homem” (1930), “O Rei
David” (1951), “As Páscoas” (1968), as telas do “Cântico dos Cânticos”
(1957-66), “O Êxodo” (1952-66), “A Crucifixão branca” (1938) ou o tríptico
“Revolução (Resistência, Ressurreição, Libertação)” (1937-52).
A
pintura bíblica de Chagall não pode ser dissociada do resto da sua obra: quer
em termos cromáticos, onde se vai do “azul dos sonhos” até ao “vermelho da
paixão”, como escreve Antje Kramer na “Beaux Arts”, já que as intensas cores
utilizadas por Chagall eram fruto de um trabalho persistente e nos conduzem a
dimensão “cósmica, lírica e psíquica”; quer enquanto tradução de um universo
simbólico que, mesmo quando não tem relação directa com a Bíblia, remete para
esse aspecto central da linguagem bíblica e pictórica: a noite, os animais
sagrados, o cordeiro, as sinagogas e as igrejas, o casal humano, os candelabros
e menorás judaicos, os instrumentos musicais... tudo concorre para a construção
de um universo inspirado no texto bíblico e que para ele reenvia.
O
artista mais não faz, aliás, que olhar em redor e perscrutar o sagrado que o
envolve. Como escrevem Jean-Michel Foray e Françoise Rossini-Paquet no livro do
Museu de Nice, a mensagem bíblica de Chagall não é uma excrescência tardia na
obra do pintor mas, antes, “o prolongamento de uma atenção constante ao religioso”,
entendido como algo que remete para outra coisa além do estritamente religioso.
Vários quadros de temática religiosa mais não fazem que trazer ao nosso olhar
tragédias como a guerra, o exílio e as deportações forçadas de judeus ou, pelo
contrário, o amor, a alegria e a ternura humana. Nesse sentido, Chagall
inscreve-se numa tradição especificamente judaica, recordam os mesmos autores,
de comentário ao texto bíblico: se, para o judaísmo, Deus é irrepresentável, a
sua Palavra tem que ser interpretada para ser entendida.
A
própria figura de Cristo é, em Chagall, a representação de uma identidade
judaica quer enquanto povo, quer na recuperação da figura do judeu Jesus de
Nazaré – que se torna, com o pintor, também um símbolo do judeu sacrificado.
Nesse sentido, o tríptico “Revolução” mostra o sofrimento dos judeus na guerra
mas apresenta igualmente uma visão de esperança, que nos é dada pela música e
pela alegria que transparece no terceiro painel e também pelos próprios títulos
das três telas. Na “Beaux Arts” já citada, Élisabeth Paccoud-Rème recorda as
palavras de Chagall na inauguração do museu de Nice: “Estes quadros, no meu
pensamento, não representam o sonho apenas de um povo, mas da humanidade (...)
Talvez venham a esta casa jovens e menos jovens procurar um ideal de
fraternidade e de amor tal como as minhas cores e as minhas linhas sonharam.”
Neste
belíssimo livro, recolhem-se as pinturas para os livros do Génesis, Êxodo e
Cântico dos Cânticos (uma parte da sua obra de inspiração bíblica esteve exposta
no ano passado, na mostra Chagall, entre
guerre et paix, no Musée du Luxembourg, em Paris; e pode ser vista em
permanência no Musée National Message Biblique Marc Chagall, em Nice).
Nos
episódios bíblicos aqui reunidos, há anjos e pessoas a voar, animais
sacralizados e estrelas, crucifixões e ressurreições, êxodos de povos e
peregrinações solitárias. Vermelhos intensos, azuis carregados, brancos e
amarelos luminosos... São ilustrações que dançam (como na criação do homem),
que transmitem uma grande serenidade (episódio de Abraão com os três anjos) ou
uma forte convicção (Moisés levantando a vara, para que os israelitas
atravessam o mar a pé enxuto). Ou ainda uma grande exaltação, como nas diversas
tábuas que descrevem passagens do Cântico dos Cânticos.
Uma
obra que é um regalo. E nos dá a possibilidade de ler narrativas da criação, da
libertação ou de paixão num duplo movimento, articulado entre a imagem e o
texto (traduzido por Herculano Alves, António Couto e José Tolentino Mendonça).
Antigo
Testamento – Génesis, Êxodo e Cântico dos Cânticos
Ilustrações
de Marc Chagall
Ed.
Relógio d’Água
(este
texto retoma dois artigos publicados nas revistas Mensageiro
de Santo António, de Janeiro de 2014, e Invenire nº 6)
1 comentário:
A propósito de ilustrações da Bíblia, há um monge pintor alemão que, no meu entender, devia ser mais divulgado, contemplado: Sieger Köder.
Paulo Melo
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