quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

A ressurreição de um baptismo que estava “morto”

Documento a assinar por católicos, anglicanos, metodistas, presbiterianos e ortodoxos reconhece validade mútua do baptismo. RELIGIONLINE divulga o texto desse documento, uma espécie de ressurreição de um morto, tendo em conta os doze anos que tardou a concluir o processo, como diz o seu primeiro proponente.


Marko I. Rupnik, Baptismo de Cristo (ilustração reproduzida daqui)


Um documento de “Reconhecimento mútuo do sacramento do Baptismo” será assinado no próximo sábado, em Lisboa, por representantes da Igreja Católica RomanaIgreja Lusitana (Comunhão Anglicana)Igreja MetodistaIgreja Presbiteriana e Igreja Ortodoxa (Patriarcado de Constantinopla), presentes em Portugal. Este acontecimento, que levou cerca de doze anos a ser preparado, põe um ponto final nas divergências doutrinais históricas que, na prática, já há alguns anos não se fazem sentir. Ao mesmo tempo, acentua a concordância pastoral e doutrinal que existe sobre o tema, entre aquelas igrejas cristãs.
O texto, que RELIGIONLINE divulga na íntegra, em primeira mão, no final deste artigo, começou a ser debatido em 2002, no âmbito dos encontros periódicos entre a então Comissão Episcopal da Doutrina da Fé (CEDF), do lado católico, e a direcção do Copic (Conselho Português de Igrejas Cristãs), que reúne lusitanos, metodistas e presbiterianos. Mais tarde, os ortodoxos juntaram-se também ao processo.
No documento, reconhece-se “mutuamente a validade do baptismo” ministrado por qualquer uma daquelas igrejas. O texto começa por referir a concordância “sobre os pontos fundamentais de doutrina e prática baptismal” entre aquelas diferentes igrejas e verifica que, na prática, elas “já aceitam tacitamente o reconhecimento mútuo da validade do sacramento” tal como é administrado por católicos, presbiterianos, lusitanos, metodistas e ortodoxos.
Situações como alguém decidir mudar de Igreja ou casar com um membro de outra Igreja obrigaram muitas vezes a um novo baptismo: no caso dos casamentos, o/a noivo/a de determinada Igreja era obrigado/a a baptizar-se de novo, para poder casar, pois a comunidade a que o outro nubente pertencia não reconhecia o baptismo inicial.

Primeira proposta em 2006

“A assinatura de sábado parece uma ressurreição, pois eu julgava que o documento estava morto”, diz ao RELIGIONLINE o pastor José Leite, da Igreja Evangélica Presbiteriana de Portugal e que trabalhou largos anos na sede do Conselho Ecuménico de Igrejas, em Genebra. Enquanto pastor presbiteriano e presidente do Copic, José Leite foi quem inicialmente propôs, em 2002, um documento deste género.
“Deixei uma primeira proposta no Copic em 2006, que seguia de perto o reconhecimento que já existia em outros países”, acrescenta. Antes, José Leite tinha ficado responsável por apresentar os pontos necessários para debater o assunto. “Fui ver o que se passava em países latinos como Itália, França ou Brasil, onde já havia o reconhecimento mútuo do baptismo. Antes de deixar o Copic, escrevi uma proposta.”
Ao ter sabido da notícia da assinatura, José Leite reagiu com entusiasmo: “Os episódios de recusa estavam, em larga maioria, ultrapassados já em 2006. Hoje não há nada de especial que embarace as nossas Igrejas em relação a este tema.”
No sábado, José Leite estará em Lisboa, na catedral lusitana de São Paulo (às Janelas Verdes), a partir das 18h, juntamente com outros dois ex-responsáveis de igrejas protestantes que também participaram no processo: os bispos Fernando Soares (Igreja Lusitana) e Irineu Cunha (Igreja Metodista).
A cerimónia de sábado marca o fim de um caminho e o início de uma nova fase, acrescenta o bispo D. Jorge Pina Cabral que assinará o documento em nome da Igreja Lusitana Católica Apostólica Evangélica (que integra a Comunhão Anglicana). Jorge Pina Cabral, que tomou posse como bispo da Igreja Lusitana em Abril do ano passadoacrescenta que este acontecimento “abre e responsabiliza as diferentes igrejas envolvidas quanto ao seu futuro conjunto: reconhecemos este fundamento, temos de o aprofundar.”
Sandra Reis é quem assinará a declaração em nome da Igreja Evangélica Presbiteriana de Portugal. Pastora na zona da Figueira da Foz, diz que está a recolher os frutos do trabalho de outros: “Cresci com o pastor José Leite e sei que ele esteve neste processo. Já há muito que esperávamos por este momento.”

Tornar visível a unidade

A pastora Sandra acrescenta, sobre o significado do gesto de sábado: “Trata-se de um passo que torna visível a unidade que dizemos ter em Cristo. Falamos muito da unidade e do amor, mas muitas vezes andamos de costas voltadas uns com os outros. Agora, reconhecemos a importância uns dos outros, o que nos separa e o que nos une.”
José Leite também diz que o ecumenismo deve ser “a visibilidade da unidade”. E “é triste” que ele fique reduzido à Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, que termina precisamente no próximo sábado. No final de Dezembro, no encontro de jovens promovido pela comunidade de Taizé em Estrasburgo (França), o tema da visibilidade do diálogo ecuménico e da unidade entre cristãos foi uma das notas dominantes nas meditações do irmão Aloïs.
E já a propósito desta semana da unidade, o prior de Taizé escreveu um artigo onde desafia os cristãos a repensar em conjunto o papel do bispo de Roma no serviço à comunhão entre todos. 
Já esta semana, o Papa Francisco considerou um “escândalo” as divisões entre os cristãos, apelando à valorização das diferentes tradições e realidades eclesiais.
Borges de Pinho, professor na Faculdade de Teologia da Universidade Católica, que se tem dedicado à investigação sobre as questões do diálogo ecuménico, considerou já que o acontecimento de sábado é um “pequeno” sinal que pede novos gestos.
O pastor José Leite diz que outros temas como a intercomunhão (a possibilidade de católicos comungarem em celebrações protestantes e vice-versa) estão mais longe de serem objecto de aceitação comum. “Em 1972, participei numa reunião internacional e jovens, em Lausanne, onde o tema era a intercomunhão. Hoje, ele continua a ser um ponto debatido, longe de uma proposta que todos possam aceitar”, reconhece.
Jorge Pina Cabral pensa que a definição de novos “objectivos ou conquistas” não é o mais importante. “Os novos passos dependem de Deus e do movimento ecuménico a nível mundial. O que é mais importante, neste momento, é dar consistência à relação ecuménica.” Isso pode passar, exemplifica, pela constituição de um conselho de igrejas ecuménicas em Portugal, que reúna não só a Igreja Católica e as igrejas-membro do Copic, mas também outras como as Ortodoxas, a Evangélica Alemã e as capelanias inglesas.

Aprender uns com os outros

Sandra Reis diz que é “fundamental” continuar no caminho que o gesto de sábado vem confirmar. “Pode ser um abanão que nos leve a crescer no diálogo, quer através das relações pessoais quer das institucionais e hierárquicas.”
Sobre modos concretos como isso se pode traduzir, exemplifica: “Devemos aprender uns com os outros. Eu própria já usei materiais da Igreja Católica em campos de jovens. E há grandes teólogos sobre os quais não pensamos se são católicos ou protestantes, mas se são grandes teólogos.”
Na cerimónia de sábado, os outros signatários são o patriarca de Lisboa e presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, Manuel Clemente (em nome da Igreja Católica), o bispo Sifredo Teixeira, da Igreja Evangélica Metodista Portuguesa, e o arquimandrita Philip Jagnisz, vigário para Portugal e Galiza do Patriarcado Ecuménico de Constantinopla, da Igreja Ortodoxa.
A assinatura deste documento tem uma outra pré-história: depois da multiplicidade de iniciativas que se sucederam após o Concílio Vaticano II, essa onda de entusiasmo sem precedentes no diálogo ecuménico entrou num período de arrefecimento que, em Portugal, foi descongelado no início de 1992. Na sequência do V Encontro Ecuménico Europeu, que decorreu em Santiago de Compostela em Novembro de 1991, os participantes portugueses responderam a algumas perguntas dos jornalistas sobre a sequência a dar ao encontro.
António Monteiro, então bispo de Viseu e presidente da CEDF, prometeu que iria convidar os seus pares para uma reunião – que se realizaria em Janeiro seguinte. Foi esse encontro que deu início aos contactos institucionais entre a Conferência Episcopal Portuguesa e a direcção do Copic.
(Sobre a cerimónia de sábado, pode ainda ler-se aqui mais informação.)


Catedral lusitana de São Paulo, em Lisboa, onde decorrerá a cerimónia de sábado (foto reproduzida daqui)


É o seguinte o texto integral do documento que será assinado:
Reconhecimento Mútuo do Sacramento do Batismo

A IGREJA CATÓLICA ROMANA, a IGREJA LUSITANA CATÓLICA APOSTÓLICA EVANGÉLICA, a IGREJA EVANGÉLICA METODISTA PORTUGUESA, a IGREJA EVANGÉLICA PRESBITERIANA DE PORTUGAL e a IGREJA ORTODOXA DO PATRIARCADO DE CONSTANTINOPLA, conscientes da concordância que entre elas já existe sobre os pontos fundamentais de doutrina e prática batismal e constatando que, na prática, já aceitam tacitamente o reconhecimento mútuo da validade do sacramento do Batismo tal como é administrado nas suas Igrejas, decidem:
Reconhecer mutuamente a validade do Batismo nelas administrado e tornar público este reconhecimento
e, em conjunto, declaram:
1. Aceitar que o Batismo nelas administrado foi instituído por nosso Senhor Jesus Cristo e é, fundamentalmente, uma dádiva gratuita de Deus ao batizando, vinculando-o com a morte e ressurreição de Cristo (Rm 6,3-6), para o perdão dos pecados e para uma vida nova;
2. Ensinar que o Espírito Santo desceu sobre Jesus no seu Batismo e desce também hoje sobre a Igreja, tornando-a comunidade do Espírito Santo que, em testemunho, serviço e comunhão, proclama o seu reino;
3. Aceitar o Batismo como vínculo básico da unidade que nos é dada pela fé no mesmo Senhor;
4. Aceitar o Batismo como processo da nossa consagração para a edificação do Corpo de Cristo, tendo em vista o nosso crescimento «até que cheguemos à unidade da fé e à medida da estatura da plenitude de Cristo» (Ef 4,13);
5. Administrar o Batismo com água e em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, para a remissão dos pecados, de acordo com a intenção e o mandamento de Cristo (Mt 28,18-20);
6. Excluir a possibilidade do rebatismo nos casos de passagem de membros de uma Igreja para outra;
7. Aceitar como válidos os certificados de Batismo emitidos pelas nossas respetivas Igrejas;
8. Esperar que este reconhecimento constitua um passo em frente no caminho da unidade visível do único Corpo de Cristo «para que o mundo creia»    (Jo 17,21) e contribua para uma maior comunhão entre todos os batizados.


Lisboa, Catedral Lusitana de S. Paulo, 25 de Janeiro de 2014

Sem comentários: