Livro
Estes
jornais são folheados ou lidos por cerca de metade da população portuguesa com
mais de 15 anos. A
imprensa regional católica portuguesa é um caso quase único a nível europeu, integrada
num universo de um total de cerca de 800 títulos, que tiram mais de milhão e
meio de exemplares. Mas, apesar dessa importância, nunca até hoje esse meio tinha
sido objecto de qualquer estudo académico que investigasse o que é, quem faz e
quem lê a imprensa católica.
Alexandre
Manuel, ex-jornalista e ex-editor, professor de
Ciências da Comunicação na Universidade Autónoma de Lisboa e investigador do Centro
de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa, lançou-se
a essa tarefa, com este Da Imprensa Regional da Igreja Católica – O que é, quem a faz e quem a lê (ed. Minerva Coimbra). Num trabalho exaustivo, retira conclusões – compreensivas do
fenómeno, umas, cáusticas, outras – que nos dão um retrato completo do que se
passa e indiciam o muito que há por fazer para melhorar o panorama.
Refiram-se algumas
das conclusões sobre a estrutura: mais de 80 por cento dos jornais em análise
(os semanários diocesanos, de carácter regional) são vendidos por assinatura; cerca
de 90 por cento são dirigidos por padres, sendo que muitos são também os padres
administradores (alguns em acumulação dos dois cargos); a maioria das redacções
são constituídas por homens; dois terços desses jornalistas são licenciados e
metade fez mesmo um curso de comunicação social ou jornalismo; a média salarial
é baixa (entre 500 e 700 euros mensais); o objectivo
principal desta imprensa não é o lucro financeiro; as tiragens estão por vezes
a par de outra imprensa regional.
"Uma certa reverência"
"Uma certa reverência"
Acerca do produto editorial
e gráfico, Alexandre Manuel sintetiza assim o que fazem esses jornais: “Por
questões de rotina (...) ignoram frequentemente a importância da linguagem
gráfica, utilizando design de
eficácia improvável”; preocupam-se pouco com a relação entre imagem e texto;
nem sempre separam a agressividade da coragem, cometendo “pecados idênticos aos
que condenam nos outros”, usando uma linguagem “repetitiva e moralista” e mais
interessada na apologética que no esclarecimento; misturam frequentemente
notícia com opinião; cultivam “uma certa reverência, sobretudo em relação à
hierarquia”; tendem a tratar o leitor como “consumidor passivo” e não aceitam
facilmente o pensamento discordante; confundem o discurso do altar com o
discurso dos media; e contrariam os textos que expressam o pensamento oficial católico
sobre a comunicação social, preferindo o secretismo e os silêncios à informação
correcta sobre a vida da Igreja.
Tomando algumas
destas conclusões, não é de estranhar que tenha sido o sector da comunicação
social a provocar alguns dos conflitos mais sérios entre a Igreja e o poder
político, em Portugal, que o autor recorda na apresentação do livro: o “caso Renascença”,
em 1975; a “guerra das frequências” radiofónicas, no final da década de 1980; a
questão da TVI, já na década de 1990; ou o conflito acerca do porte pago, nos
anos mais recentes.
Para chegar aquelas
conclusões, Alexandre Manuel faz um itinerário onde aborda a relação entre o
local e o global, como enquadramento teórico para a imprensa de carácter
regional; e situa depois as singularidades da imprensa católica, caracterizando
algumas das suas fragilidades: amadorismo, dependência de subsídios,
anacronismos típicos do jornalismo pré-industrial (proximidade entre elites
locais e os media, inexistência de profissionais nas áreas comercial e de
marketing, entre outros factores).
Estes anacronismos,
e algumas das características referidas nas conclusões, levam mesmo o autor a
falar por várias vezes de um “jornalismo de reverência” que acaba por ser uma
marca forte de várias destas publicações. A este factor, pode não ser alheio o
facto de muitas das publicações serem dirigidas por padres – o facto de os
membros do clero estarem integrados na função hierárquica da Igreja leva a um óbvio
envolvimento com a mesma estrutura. E provoca, portanto, um menor
distanciamento (que não tem de implicar criticismo) em relação à mesma.
No percurso da
investigação, o autor faz também uma história bem alargada do que tem sido a imprensa
católica em Portugal e de alguns dos seus momentos importantes – incluindo os
casos mais críticos, como os referidos na introdução, mas também várias tentativas
de criar meios modernos e críticos – fosse ainda no tempo do Estado Novo, com o
aparecimento de publicações de oposição ao regime, com dados sobre a guerra
colonial, por exemplo; fosse já depois de 25 de Abril de 1974 e da instauração
da democracia, com experiências como o semanário Nova Terra.
É na última parte
que Alexandre Manuel analisa à lupa o que é, quem faz e quem lê a imprensa
regional católica. Começa por cruzar de novo a história dessa imprensa com a
evolução do pensamento da Igreja sobre a matéria e com algumas das ideias
constitutivas que ao longo dos tempos a foram caracterizando: a “boa imprensa”,
os regionalismos ou a nova cultura mediática.
O autor retoma
alguns dados que refere no início, sobre a importância dos públicos desta
imprensa. Ficamos a saber, por exemplo, que quem mais lê esta imprensa são os
reformados, pensionistas e desempregados (22 por cento), os trabalhadores
qualificados/especializados (21 por cento), os trabalhadores de serviços, comércio
e administrativos (12) e ainda quadros médios e superiores (10) e estudantes
(10).
Tendo em conta esses
e outros dados que confirmam a importância deste universo, mais estranho se
torna a inexistência de estudos. Escreve o autor: “Este alheamento atinge ainda dimensão maior quando se toma como
referência a força (talvez ‘mais pressuposta do que identificada’ dos jornais que,
entre nós, são pertença da Igreja Católica”.
A reflexão sobre o
“jornalismo de reverência” é uma das notas que destaco deste livro. É certo,
como recorda Alexandre Manuel, que há uma grande proximidade entre quem faz
estes jornais e as suas fontes, por um lado, e os seus leitores, por outro.
Aliás, na apresentação do livro, no passado dia 16, o patriarca de Lisboa, D.
Manuel Clemente, chamou a atenção para um dos factos que ajuda a entender o
contexto em que são feitos estes jornais e que ajudam a explicar alguns dos
seus problemas: 70 por cento é vendido por assinatura, o que faz do leitor um “produtor
determinante”.
Também sabemos que o
jornalismo contemporâneo não está imune (alguma vez esteve?) a um certo
envolvimento com as fontes – nos campos político, económico ou desportivo esse
envolvimento é notório. Mas no caso da imprensa regional ele torna-se mais
evidente porque todos os implicados na produção e consumo dos jornais –
directores, jornalistas, fontes, leitores, anunciantes – estão próximos uns dos outros e têm, muitas
vezes, outras relações e ligações que ultrapassam o âmbito mediático.
A este propósito,
nota Alexandre Manuel: “A proximidade
não existe apenas em relação às fontes, mas também aos leitores que,
encontrando-se nos mesmos cafés, frequentando os mesmos restaurantes,
convivendo nos mesmos locais, abastecendo-se nos mesmos estabelecimentos
comerciais, cruzando-se nas mesmas ruas e vivendo iguais ambiências, fazem com
que os profissionais de informação dos periódicos da terra tenham ‘compromissos
definidos’ com uma população que os conhece tão bem quanto os temas, problemas
e pessoas sobre os quais eles escrevem.”
Este jornalismo de
reverência e de proximidade – no que tais características têm de ambiguidade e
complexidade – pode estar também ligado, já se disse, ao facto de muitos dos
seus directores serem membros do clero. Esta é, porventura, uma das pechas mais
graves da imprensa regional e um dos factores que mais contradiz tanto da
doutrina conciliar e pós-conciliar sobre o papel dos leigos católicos. Em lugar
de entregar a responsabilidade destes jornais a profissionais (as raras
excepções, que incluem padres que fizeram cursos de comunicação social, são
quase todas experiências muito positivas), a opção tem sido a de apelar à boa
vontade de alguns membros do clero, pedindo-lhes mais essa tarefa de dirigir o
jornal.
Problema diferente é
o da reduzida cooperação entre estes jornais. A propósito da dificuldade em
conseguir concretizar um projecto de imprensa comum a várias dioceses,
Alexandre Manuel refere, em nota da página 208 que ela passa pelo facto de o
responsável máximo de cada diocese ser o bispo e porque a própria Conferência
Episcopal Portuguesa (CEP) é mais um órgão de coordenação do que de direcção.
Ou seja, a CEP não pode impor a nenhum bispo a concretização de qualquer ideia
ou decisão. Em vez da cooperação, permanece um certo espírito de capela e
estes jornais fazem isoladamente muitas coisas que poderiam fazer em conjunto, mas
não conseguem nem talvez o desejem, apesar de serem propriedade da mesma estrutura
e de perseguirem objectivos comuns.
O facto de haver 20
dioceses – cada uma com a sua autonomia – e de a CEP não ser um órgão de
direcção foram também explicações referidas pelo patriarca de Lisboa para perceber
o contexto em que são feitos e produzidos os jornais católicos – nomeadamente
os diocesanos. Aceites e compreendidos estes argumentos, fica entretanto por
explicar a incapacidade de a imprensa regional católica providenciar formas de
colaboração – por exemplo, na produção gráfica, na captação de publicidade, no
marketing, etc. – que poderiam torná-la técnica e profissionalmente mais
moderna e, ao mesmo tempo, pastoral e eclesialmente mais eficaz na sua missão.
Falamos, então, de
questões que passam pela profissionalização e desclericalização da imprensa
católica – e que poderão ser o primeiro passo para a mudança necessária. Como
conclui Alexandre Manuel: “Em causa estão publicações que, propriedade embora
de dioceses diferentes, integram, no entanto, a mesma Igreja e visam objectivos
idênticos. Para tal, no entanto, seria necessário que cada diocese alargasse os
horizontes e que esses jornais recusassem a ter como prioridade a reprodução de
catecismos ou continuassem a ser ‘a voz do bispo, a homilia do bispo ou o
resumo do bispo’. É que, de facto, pouco importará a Igreja ter uma leitura
teoricamente ‘correcta’ sobre os meios de comunicação social, se, na prática,
‘há ignorância nuns casos, displicência noutros e também medos’
Este livro é um
manual do diagnóstico para a necessária mudança de paradigma da imprensa
católica – da qual se fala há décadas e que é permanentemente adiada.
(Uma entrevista com o autor do livro pode ser lida aqui, procurando a pág. 38)
(Uma entrevista com o autor do livro pode ser lida aqui, procurando a pág. 38)
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