segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Manual para uma mudança adiada há décadas

Livro




Estes jornais são folheados ou lidos por cerca de metade da população portuguesa com mais de 15 anos. A imprensa regional católica portuguesa é um caso quase único a nível europeu, integrada num universo de um total de cerca de 800 títulos, que tiram mais de milhão e meio de exemplares. Mas, apesar dessa importância, nunca até hoje esse meio tinha sido objecto de qualquer estudo académico que investigasse o que é, quem faz e quem lê a imprensa católica.
Alexandre Manuel, ex-jornalista e ex-editor, professor de Ciências da Comunicação na Universidade Autónoma de Lisboa e investigador do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa, lançou-se a essa tarefa, com este Da Imprensa Regional da Igreja Católica – O que é, quem a faz e quem a lê (ed. Minerva Coimbra). Num trabalho exaustivo, retira conclusões – compreensivas do fenómeno, umas, cáusticas, outras – que nos dão um retrato completo do que se passa e indiciam o muito que há por fazer para melhorar o panorama.
Refiram-se algumas das conclusões sobre a estrutura: mais de 80 por cento dos jornais em análise (os semanários diocesanos, de carácter regional) são vendidos por assinatura; cerca de 90 por cento são dirigidos por padres, sendo que muitos são também os padres administradores (alguns em acumulação dos dois cargos); a maioria das redacções são constituídas por homens; dois terços desses jornalistas são licenciados e metade fez mesmo um curso de comunicação social ou jornalismo; a média salarial é baixa (entre 500 e 700 euros mensais); o objectivo principal desta imprensa não é o lucro financeiro; as tiragens estão por vezes a par de outra imprensa regional.

"Uma certa reverência"

Acerca do produto editorial e gráfico, Alexandre Manuel sintetiza assim o que fazem esses jornais: “Por questões de rotina (...) ignoram frequentemente a importância da linguagem gráfica, utilizando design de eficácia improvável”; preocupam-se pouco com a relação entre imagem e texto; nem sempre separam a agressividade da coragem, cometendo “pecados idênticos aos que condenam nos outros”, usando uma linguagem “repetitiva e moralista” e mais interessada na apologética que no esclarecimento; misturam frequentemente notícia com opinião; cultivam “uma certa  reverência, sobretudo em relação à hierarquia”; tendem a tratar o leitor como “consumidor passivo” e não aceitam facilmente o pensamento discordante; confundem o discurso do altar com o discurso dos media; e contrariam os textos que expressam o pensamento oficial católico sobre a comunicação social, preferindo o secretismo e os silêncios à informação correcta sobre a vida da Igreja.
Tomando algumas destas conclusões, não é de estranhar que tenha sido o sector da comunicação social a provocar alguns dos conflitos mais sérios entre a Igreja e o poder político, em Portugal, que o autor recorda na apresentação do livro: o “caso Renascença”, em 1975; a “guerra das frequências” radiofónicas, no final da década de 1980; a questão da TVI, já na década de 1990; ou o conflito acerca do porte pago, nos anos mais recentes.
Para chegar aquelas conclusões, Alexandre Manuel faz um itinerário onde aborda a relação entre o local e o global, como enquadramento teórico para a imprensa de carácter regional; e situa depois as singularidades da imprensa católica, caracterizando algumas das suas fragilidades: amadorismo, dependência de subsídios, anacronismos típicos do jornalismo pré-industrial (proximidade entre elites locais e os media, inexistência de profissionais nas áreas comercial e de marketing, entre outros factores).


Estes anacronismos, e algumas das características referidas nas conclusões, levam mesmo o autor a falar por várias vezes de um “jornalismo de reverência” que acaba por ser uma marca forte de várias destas publicações. A este factor, pode não ser alheio o facto de muitas das publicações serem dirigidas por padres – o facto de os membros do clero estarem integrados na função hierárquica da Igreja leva a um óbvio envolvimento com a mesma estrutura. E provoca, portanto, um menor distanciamento (que não tem de implicar criticismo) em relação à mesma.
No percurso da investigação, o autor faz também uma história bem alargada do que tem sido a imprensa católica em Portugal e de alguns dos seus momentos importantes – incluindo os casos mais críticos, como os referidos na introdução, mas também várias tentativas de criar meios modernos e críticos – fosse ainda no tempo do Estado Novo, com o aparecimento de publicações de oposição ao regime, com dados sobre a guerra colonial, por exemplo; fosse já depois de 25 de Abril de 1974 e da instauração da democracia, com experiências como o semanário Nova Terra.
É na última parte que Alexandre Manuel analisa à lupa o que é, quem faz e quem lê a imprensa regional católica. Começa por cruzar de novo a história dessa imprensa com a evolução do pensamento da Igreja sobre a matéria e com algumas das ideias constitutivas que ao longo dos tempos a foram caracterizando: a “boa imprensa”, os regionalismos ou a nova cultura mediática.
O autor retoma alguns dados que refere no início, sobre a importância dos públicos desta imprensa. Ficamos a saber, por exemplo, que quem mais lê esta imprensa são os reformados, pensionistas e desempregados (22 por cento), os trabalhadores qualificados/especializados (21 por cento), os trabalhadores de serviços, comércio e administrativos (12) e ainda quadros médios e superiores (10) e estudantes (10).
Tendo em conta esses e outros dados que confirmam a importância deste universo, mais estranho se torna a inexistência de estudos. Escreve o autor: “Este alheamento atinge ainda dimensão maior quando se toma como referência a força (talvez ‘mais pressuposta do que identificada’ dos jornais que, entre nós, são pertença da Igreja Católica”.
A reflexão sobre o “jornalismo de reverência” é uma das notas que destaco deste livro. É certo, como recorda Alexandre Manuel, que há uma grande proximidade entre quem faz estes jornais e as suas fontes, por um lado, e os seus leitores, por outro. Aliás, na apresentação do livro, no passado dia 16, o patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, chamou a atenção para um dos factos que ajuda a entender o contexto em que são feitos estes jornais e que ajudam a explicar alguns dos seus problemas: 70 por cento é vendido por assinatura, o que faz do leitor um “produtor determinante”.
Também sabemos que o jornalismo contemporâneo não está imune (alguma vez esteve?) a um certo envolvimento com as fontes – nos campos político, económico ou desportivo esse envolvimento é notório. Mas no caso da imprensa regional ele torna-se mais evidente porque todos os implicados na produção e consumo dos jornais – directores, jornalistas, fontes, leitores, anunciantes –  estão próximos uns dos outros e têm, muitas vezes, outras relações e ligações que ultrapassam o âmbito mediático.
A este propósito, nota Alexandre Manuel: “A proximidade não existe apenas em relação às fontes, mas também aos leitores que, encontrando-se nos mesmos cafés, frequentando os mesmos restaurantes, convivendo nos mesmos locais, abastecendo-se nos mesmos estabelecimentos comerciais, cruzando-se nas mesmas ruas e vivendo iguais ambiências, fazem com que os profissionais de informação dos periódicos da terra tenham ‘compromissos definidos’ com uma população que os conhece tão bem quanto os temas, problemas e pessoas sobre os quais eles escrevem.”
Este jornalismo de reverência e de proximidade – no que tais características têm de ambiguidade e complexidade – pode estar também ligado, já se disse, ao facto de muitos dos seus directores serem membros do clero. Esta é, porventura, uma das pechas mais graves da imprensa regional e um dos factores que mais contradiz tanto da doutrina conciliar e pós-conciliar sobre o papel dos leigos católicos. Em lugar de entregar a responsabilidade destes jornais a profissionais (as raras excepções, que incluem padres que fizeram cursos de comunicação social, são quase todas experiências muito positivas), a opção tem sido a de apelar à boa vontade de alguns membros do clero, pedindo-lhes mais essa tarefa de dirigir o jornal.
Problema diferente é o da reduzida cooperação entre estes jornais. A propósito da dificuldade em conseguir concretizar um projecto de imprensa comum a várias dioceses, Alexandre Manuel refere, em nota da página 208 que ela passa pelo facto de o responsável máximo de cada diocese ser o bispo e porque a própria Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) é mais um órgão de coordenação do que de direcção. Ou seja, a CEP não pode impor a nenhum bispo a concretização de qualquer ideia ou decisão. Em vez da cooperação, permanece um certo espírito de capela e estes jornais fazem isoladamente muitas coisas que poderiam fazer em conjunto, mas não conseguem nem talvez o desejem, apesar de serem propriedade da mesma estrutura e de perseguirem objectivos comuns.
O facto de haver 20 dioceses – cada uma com a sua autonomia – e de a CEP não ser um órgão de direcção foram também explicações referidas pelo patriarca de Lisboa para perceber o contexto em que são feitos e produzidos os jornais católicos – nomeadamente os diocesanos. Aceites e compreendidos estes argumentos, fica entretanto por explicar a incapacidade de a imprensa regional católica providenciar formas de colaboração – por exemplo, na produção gráfica, na captação de publicidade, no marketing, etc. – que poderiam torná-la técnica e profissionalmente mais moderna e, ao mesmo tempo, pastoral e eclesialmente mais eficaz na sua missão.
Falamos, então, de questões que passam pela profissionalização e desclericalização da imprensa católica – e que poderão ser o primeiro passo para a mudança necessária. Como conclui Alexandre Manuel: “Em causa estão publicações que, propriedade embora de dioceses diferentes, integram, no entanto, a mesma Igreja e visam objectivos idênticos. Para tal, no entanto, seria necessário que cada diocese alargasse os horizontes e que esses jornais recusassem a ter como prioridade a reprodução de catecismos ou continuassem a ser ‘a voz do bispo, a homilia do bispo ou o resumo do bispo’. É que, de facto, pouco importará a Igreja ter uma leitura teoricamente ‘correcta’ sobre os meios de comunicação social, se, na prática, ‘há ignorância nuns casos, displicência noutros e também medos’

Este livro é um manual do diagnóstico para a necessária mudança de paradigma da imprensa católica – da qual se fala há décadas e que é permanentemente adiada.

(Uma entrevista com o autor do livro pode ser lida aqui, procurando a pág. 38)

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