Cubanos com um cartaz alusivo à visita do Papa (foto reproduzida daqui)
É possível estabelecer já uma
geografia franciscana a partir das nove viagens realizadas pelo actual Papa e
das duas que se avizinham. Entre os grandes temas das deslocações do primeiro
Papa latino-americano, podem identificar-se a paz, a atenção às periferias (em
relação ao sistema económico ou em relação à Igreja), a condenação da pobreza,
a crítica ao sistema económico dominante (incluindo no atentado à ecologia
integral de que ele fala na encíclica Laudato Si’) e o diálogo com o islão e as outras religiões.
Hoje mesmo, o Papa inicia a décima
viagem do pontificado fora de Itália: Cuba, Estados Unidos e Organização das Nações Unidas são os destinos. O Papa não deixará de confirmar, nas suas
intervenções, vários daqueles grandes temas. Tal como na viagem já marcada para
o Quénia, Uganda e República Centro-Africana, a realizar entre 25 e 27 de
Novembro.
A deslocação aos Estados Unidos
acrescenta um outro tema caro a Francisco: no Encontro Mundial das Famílias,
que encerrará no próximo fim de semana, o Papa insistirá na importância de, sem
alterar a doutrina oficial, a Igreja ter uma atitude mais aberta em relação à
realidade que as pessoas vivem.
Isto é válido para questões como o
divórcio (e a possibilidade de voltar a ter acesso à comunhão, após um segundo
casamento), o aborto ou a homossexualidade. O Papa tem defendido que os membros
da Igreja devem privilegiar uma atitude de acolhimento e não o cumprimento de
leis que, por vezes, pouco têm a ver com o Evangelho.
Em Filadélfia, onde decorre o
encontro, o Papa não deixará, no entanto, de retomar outras temáticas da sua
geografia: está previsto um encontro pela liberdade religiosa, com imigrantes,
bem como uma visita a uma prisão. Imigração, pobreza, justiça social, não
deixarão de constar desses discursos.
O mesmo acontecerá em Cuba,
primeira etapa deste périplo. O degelo entre EUA e o país de Fidel teve um
grande contributo do Papa Bergoglio, que pôs em diálogo as diplomacias
norte-americana e cubana. Conseguindo que, após mais de cinco décadas, se
restabelecessem as relações entre os dois países.
Mas Francisco quer mais. Numa
entrevista à televisão vaticana, quinta-feira, o secretário de Estado do
Vaticano, cardeal Pietro Parolin, colocou alto a fasquia: os EUA devem acabar
com o embargo a Cuba, que só prejudica as pessoas comuns; e o regime cubano
deve dar mais liberdade aos seus cidadãos.
A preocupação pela paz, a defesa
dos direitos humanos e a possibilidade de uma vida digna para todos, tem sido
uma constante nas viagens do Papa. Desde a Terra Santa ao Parlamento Europeu e
Conselho da Europa, passando por Sarajevo, ela foi sendo repetida.
Em Jerusalém, diante de Shimon Peres, afirmara Bergoglio: “Há que rejeitar, firmemente (...)
o recurso à violência e ao terrorismo, qualquer género de discriminação por
motivos raciais ou religiosos, a pretensão de impor o próprio ponto de vista em
detrimento dos direitos alheios, o anti-semitismo...” E, nos dois discursos
europeus (Parlamento e Conselho da Europa), o Papa falou das obrigações de
manter viva a democracia, colocar a pessoa humana no centro da política,
combater a pobreza, promover o diálogo multicultural e acolher os imigrantes.
Turquia
(Novembro 2014), Sri Lanka e Filipinas (Janeiro 2015) reafirmaram essas
preocupações pela paz, a par da defesa da liberdade religiosa e do diálogo
entre crentes de diferentes religiões.
No Sri Lanka,
saído de uma guerra civil muito violenta, o Papa pediu a reconciliação entre
diferentes credos e etnias, condenando o uso do terrorismo em nome da religião.
Nas Filipinas, a pequena Glyzelle Palomar, de 12 anos, que viveu nas
ruas de Manila, a perguntar “Porque permite Deus a miséria? Porque há tão pouca
gente para nos ajudar?” marcou a viagem. Depois de a abraçar, o Papa disse: “Ela
fez a única pergunta que não tem resposta. (...) No mundo de hoje faltam as
lágrimas. Choram os marginalizados,
choram aqueles que são postos de lado, choram os desprezados, mas aqueles de
nós que levamos uma vida sem grandes necessidades não sabemos chorar.”
A pobreza, de
resto, tem sido um tema omnipresente. Desde a primeira viagem, ao
Rio de Janeiro, para as Jornadas Mundiais da Juventude, quando o Papa foi à
favela da Varginha, dizer que queria bater a cada porta, pedir um copo de água
fresca e beber “um cafezinho”.
Em pano de
fundo, o Papa que veio “do fim do mundo”, como dizia na noite em que foi
eleito, quer que a Igreja e os crentes sejam capazes de ir até ao fim dos
mundos que habitam: os mais pobres, os que estão distantes da fé, as vítimas de
um sistema económico desumano e injusto.
Nesta
perspectiva, a viagem-emblema é aquela que foi a primeira saída do Papa, do
Vaticano, depois de ter sido eleito. Em Lampedusa, a ilha italiana onde chegam
(quando chegam...) milhares de pessoas em busca de refúgio, o Papa Francisco
condenou a “globalização
da indiferença”, saudou os emigrantes muçulmanos, incentivou a “busca de uma
vida digna”, perguntou como na Bíblia “Onde está o teu irmão?”, falou de
tragédia para referir o que se passa no Mediterrâneo, perguntou quem é capaz de
chorar pelos que morrem à procura da sobrevivência.
Concretizou, enfim, a sua ideia de ir
às periferias não só geográficas mas também existenciais. Como dizia antes de ser eleito.
(Texto publicado na edição deste sábado do Diário de Notícias)
Texto anterior no blogue
Doentes de humanidade: avisos do Papa aos religiosos, o que fazem os crentes e a vergonha política - um pequeno guia de leituras sobre a crise dos refugiados na Europa
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