Um pequeno guia de leituras sobre a crise europeia
Organizações religiosas locais prestam ajuda aos refugiados na Hungria;
foto © Daniel Kekete - Ajuda Intereclesiástica Húngara/Aliança ACT
(foto reproduzida daqui)
Há uma afirmação na entrevista do
Papa Francisco à Rádio Renascença que deveria envergonhar os cristãos: o seu
apelo de há dois anos, no sentido de as casas religiosas se abrirem aos
refugiados, não teve até agora mais do que quatro respostas.
“O assunto é sério, porque aí
também há a tentação do deus dinheiro”, diz o Papa. “Algumas congregações dizem
‘Não, agora que o convento está vazio, vamos fazer um hotel e podemos receber
pessoas e, com isso, sustentamo-nos ou ganhamos dinheiro’. Pois bem, se quereis
fazer isso, pagai os impostos! Um colégio religioso, por ser religioso está
isento de impostos, mas se funciona como hotel, então, que pague os impostos
como qualquer vizinho do lado. Senão, o negócio não é limpo.”
Este aviso é uma das afirmações
importantes que o Papa faz na entrevista à RR. A propósito do tema dos
refugiados, que ocupa boa parte da conversa com Aura Miguel, o Papa insiste em
algumas ideias que já referiu em outras ocasiões: estamos perante a
consequência de “um sistema sócioeconómico mau e injusto”, que não coloca a
pessoa no centro, como deveria ser; o problema não é apenas europeu, como ele
recorda a propósito dos rohingya da Birmânia; o mundo está em guerra contra si
mesmo, ao não permitir que existam condições de vida digna em várias regiões do
globo; ele próprio, recorda ainda, é filho de emigrantes; e, mesmo com o
desemprego existente na Europa, o dever de humanidade – e mais ainda do cristão
– é acolher o estrangeiro, como se lê na Bíblia em várias situações...
Apesar destes apelos e avisos do
Papa, apesar dos 71 mortos num camião, apesar da fotografia do pequeno
Aylan morto na praia – símbolos da nossa vergonha colectiva, escreveu-se na
altura – ainda não vimos tudo. A decisão dos ministros da União Europeia em
mais uma vez adiar o problema do acolhimento dos refugiados volta a dizer-nos
como estamos doentes de humanidade.
União Europeia prolonga “o sofrimento desnecessário”
A Cáritas Europa considerou que a
falta de acordo entre os ministros europeus do Interior e da Justiça “não só
prolonga o sofrimento desnecessário entre as centenas de milhares de migrantes
e requerentes de asilo bloqueados em diferentes fronteiras mas também coloca em
perigo a própria essência da Europa como um projeto comum baseada na
solidariedade, democracia e liberdade”. E, acrescenta, segundo a notícia que
pode ser lida na Ecclesia, que existem “muito boas soluções”
para a crise das pessoas que fogem das guerras.
Com a mesma preocupação, o próprio
Vaticano promove hoje uma reunião sobre a crise humanitária que atinge os 15
milhões de refugiados – predominantemente sírios e iraquianos. Para o encontro,
diz também a Ecclesia, o Conselho Pontifício ‘Cor Unum’,
responsável pela promoção das atividades caritativas da Igreja, convidou os
bispos e os organismos católicos de solidariedade da região.
Esta manhã, o Papa falou aos
participantes do encontro, recordando que “milhões de pessoas se encontram num
estado preocupante de urgente necessidade, obrigadas a abandonar os seus países
de origem”. O Papa acrescentou: “Líbano, Jordânia e Turquia carregam hoje com o
peso de milhões de refugiados, que acolheram com generosidade. Perante o
cenário e os conflitos que se expandem e perturbam de forma inquietante os
equilíbrios internos e regionais, a comunidade internacional parece incapaz de
encontrar respostas adequadas, enquanto que os traficantes de armas continuam
fazendo os seus lucros.”
Já nos últimos dias, a assembleia
anual do Conselho das Conferências Episcopais da Europa (CCEE), que se realizou
pela primeira vez na Terra Santa, apelou a uma ação mais decidida da União
Europeia e da ONU em favor dos refugiados.
No comunicado final, os bispos dizem
que “a complexidade” desta situação, em todas as suas diferentes “variáveis”,
deve merecer “grande atenção por parte dos Estados” em ordem a uma “resposta
pronta a quem precisa de assistência imediata”.
Os responsáveis católicos destacam
a importância de “acolher” com “hospitalidade generosa” todos quantos
desesperam “com a guerra, a perseguição e a miséria”, e de colaborar na sua “integração”.
Porque espera a UE para suspender a Hungria?
Em Portugal, a Comissão Episcopal
da Pastoral Social e Mobilidade Humana e a Comissão Nacional Justiça e Paz
(CNJP) divulgaram duas notas importantes onde recordam alguns diagnósticos da
situação e aquela que deve ser a posição dos cristãos.
A Comissão Episcopal recorda: “Temos
todos conhecimento dos numerosos grupos de pessoas que tentaram atravessar o
Mediterrâneo nos últimos tempos (mais de 300 mil desde Janeiro); muitas
morreram (mais de 2500 no mesmo período). Vimos imagens. Ouvimos relatos.
Imagens que preferíamos não ter visto, relatos que seria melhor não termos
escutado. Não podemos dizer que não reparámos. (...) Temos todos notícia dos
muros que se multiplicam, das barreiras que levantam, da morosidade em
encontrar apoios e soluções consistentes.”
Também sobre os que receiam uma
“invasão de muçulmanos”, diz a comissão: “Num recente artigo de jornal (o Frankfurt Allgemeine Zeitung), um
governante de um estado europeu afirma temer pela perda das raízes cristãs da
Europa devido à chegada do grande número (fala de ‘invasão’) de refugiados,
sobretudo muçulmanos. Diz ser ‘alarmante’ o facto de os povos europeus não
conseguirem “defender os próprios valores cristãos”. A Comissão Episcopal da
Pastoral Social e Mobilidade Humana considera alarmantes estas afirmações que
contrariam objectivamente a pessoa de Jesus e o seu Evangelho.
Há uma “exigência da fraternidade”
para enfrentar esta crise, acrescenta o documento. A Comissão Justiça e Paz intitula
a sua nota com a pergunta do livro de Génesis: “Que fizeste do teu irmão?”.
Para recordar que “ser fiel às raízes cristãs da cultura europeia não pode
reduzir-se a uma proclamação formal, ou à conservação de sinais externos”,
sendo incoerente com a fé cristã recusar “o acolhimento de refugiados por estes
não partilharem a fé cristã”; e também que “entre nós há quem passe por dificuldades
e situações graves de pobreza”, mas que “as situações de onde fogem estes
refugiados (...) são, de um modo geral, muito mais graves do que aquelas com
que nos deparamos”.
Para a CNJP, “a Europa não pode
pretender ser um oásis de paz e prosperidade, protegido por fronteiras ou
muros, num mundo onde prevalece a guerra e a pobreza”.
Neste sentido, vale a pena olhar
para o que o governo da Hungria tem feito (o governo, que não muitos cidadãos,
que continuam a querer ajudar os refugiados, apesar das normas governamentais
que também o proíbem). Esse comportamento vergonhoso contraria todo o
património cultural e humanista da construção europeia. E, nesse sentido, vale
a pena perguntar porque espera o Partido Popular Europeu, no qual se integra o
partido no poder na Hungria, para expulsar esse partido do seu seio? Ou perguntar,
como já fez Henrique Monteiro, porque espera a própria UE para suspender a
Hungria?
“Que fizeste ao teu irmão?” era também a
pergunta que João Miguel Tavares fazia no Público, um dia depois de Rui
Tavares ter desmontado também alguns argumentos sociais e políticos que tentam
colocar dificuldades à resolução do problema.
Abolir fronteiras para os mercados, erguer muros para as pessoas
De que falamos quando falamos
desta crise? De acordo com ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os
Refugiados, mais de 300 mil pessoas atravessaram o Mediterrâneo, a maior parte
deles em frágeis barcos ou botes de borracha e arriscando gravemente as suas
vidas.
Desses, uns 200 mil aportaram à
Grécia, outros 110 mil à Itália. Estes números representam um grande aumento em
relação a 2014, quando 219 mil atravessaram o mar.
Para comparação, basta dizer que o
maior campo de refugiados do mundo, que está no Quénia e não em qualquer país
“civilizado” e rico, tem 600 mil refugiados somalis, numa situação que tem
provocado também graves tensões.
Outro número: desde o ano 2000, de
acordo com dados do projecto The Migrant Files, citados pelo Le Monde (30/31 Agosto), perto de 31 mil
pessoas já morreram tentando alcançar a Europa.
A política dominante, em relação
aos refugiados tem sido a de manter durante anos situações aflitivas e, perante
as novas crises, agravar as medidas de segurança, sem atacar as verdadeiras
causas dos diferentes problemas. Quando o muro de Berlim caiu, em 1989, havia
outros 16 muros a separar fronteiras. Hoje, existem 65 muros e barreiras de
separação.
Num texto publicado no Público a
30 de Agosto, Eric Randolph, da AFP, começava por recordar que a mundialização
“aboliu as fronteiras para os mercados, mas para os seres humanos foram
erguidos muros em todo o mundo”. E, para cúmulo, a sua eficácia tem sido
relativa, como observam especialistas citados no texto.
Alguns deles, estão aqui mesmo ao
lado, em Ceuta e Melilla, nos dois enclaves marroquinos sob administração
espanhola, resquícios do colonialismo que teimam em desaparecer. Mas também há
muros entre a Grécia e a Turquia, entre a Arábia Saudita e o Iraque, entre
Israel e a Palestina, os Estados Unidos e o México, a Índia e o Bangladesh, ou
ainda a dividir Belfast (Irlanda do Norte) ou Chipre a meio.
Ao muro erguido pela Hungria, na
fronteira com a Sérvia (e que continuará agora, pelos vistos, na fronteira com
a Roménia), chamou Sylvie Kauffmann, no Le
Monde, de “nova cortina de ferro” – erguida pelo mesmo país de onde, em 1956, 200 mil pessoas fugiram para a Áustria e a ex-Jugoslávia à procura de
refúgio e que, em 1989, abriu as suas
portas para que 60 mil alemães deixassem a então Alemanha de Leste e entrassem
no Ocidente.
Hoje, os países do Centro e Leste
europeu (e não apenas a Hungria) estão perante um dilema, diz Sylvie Kauffmann
(Le Monde, 30/31 Agosto): o de mostrar
que a solidariedade não tem apenas um sentido único, recebendo precisamente a
esse título verbas de fundos de coesão, mas que ela deve ser testada em
momentos como o actual.
O que fazer?
Perante o que se passa, o que
fazer então? Seguramente, não enviar os refugiados de volta para a guerra, o
caos, a violência e a morte. Era essa, pelo menos, a opinião expressa há dia ao
DN pelo padre Michael Czerny, do Conselho Pontifício Justiça e Paz).
As igrejas e muitos cristãos têm-se
mobilizado na ajuda, solidariedade e apoio aos refugiados. Além dos exemplos já
referidos da Igreja Católica, pode destacar-se que, no âmbito do Conselho
Ecuménico (Mundial) de Igrejas (CEI), a ACT Alliance EU pediu já uma resposta
colectiva dos Estados-membros da UE. A Conferência das Igrejas Europeias tem apelado ao empenhamento das comunidades locais. A Comissão das Igrejas para os
Migrantes na Europa tem realizado diagnósticos e desenvolvido acções de
aconselhamento legal focadas na reunificação familiar. Quer o CEI, quer a
Conferência das Igrejas Europeias ou a Federação Luterana Mundial têm
igualmente apoiado múltiplas iniciativas e tomado posição a favor de uma
política comum europeia mais humanitária.
Tal como aconteceu também com o arcebispo
anglicano de Cantuária, Justin Welby, que, numa declaração no início do mês, dizia: “Agora,
talvez mais do que nunca na Europa do pós guerra, necessitamos de nos
comprometer a juntar ações, reconhecendo a nossa comum responsabilidade e a
nossa humanidade comum. Enquanto cristãos acreditamos que somos chamados a
quebrar barreiras, a dar as boas vindas ao estrangeiro e amá-los como a nós
próprios (Levítico 19:34), e a buscar a paz e a justiça do nosso Deus, no nosso
mundo, hoje. (...) Não podemos voltar as nossas costas perante esta crise. Temos que responder com compaixão.”
Essas acções de apoio passaram já
pelo acolhimento de refugiados em famílias ou pela recolha de fundos, como dá
conta o semanário protestante suíço, La Réforme.
Há milhões de refugiados que não
têm um lugar a que chamar casa, escrevia ontem Tony Magliano no National Catholic Reporter (A revista
The Economist, de 29 de Agosto, titulava mesmo que estão á procura de casa ou a
bater à porta do céu). Magliano citava alguns números mais, referidos por Matt
Wilch, conselheiro da Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos para
as migrações e os refugiados: os quatro milhões de refugiados sírios foram até
agora acolhidos fundamentalmente pela Turquia (1,8 milhões), pelo Egipto (200
mil), Líbano (mais de um milhão) e Iraque (200 mil, apesar de o país estar ele
próprio a ser devastado pela guerra e ser também um ponto de fuga de muitos dos
seus cidadãos, nomeadamente cristãos, como recorda aqui o padre Luís Montes).
Os Estados Unidos, apesar de serem,
com a União Europeia, os principais instigadores da guerra civil, acolheram,
desde Março de 2011, o extraordinário número de 1554 sírios. “Isto é vergonhoso”, conclui Tony Magliano.
Texto anterior no blogue
A pergunta decisiva de Jesus e perguntas ao Sínodo dos Bispos - crónicas de Anselmo Borges e Vítor Gonçalves
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