quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Doentes de humanidade: avisos do Papa aos religiosos, o que fazem os crentes e a vergonha política

Um pequeno guia de leituras sobre a crise europeia



Organizações religiosas locais prestam ajuda aos refugiados na Hungria;
foto © Daniel Kekete - Ajuda Intereclesiástica Húngara/Aliança ACT
(foto reproduzida daqui)

Há uma afirmação na entrevista do Papa Francisco à Rádio Renascença que deveria envergonhar os cristãos: o seu apelo de há dois anos, no sentido de as casas religiosas se abrirem aos refugiados, não teve até agora mais do que quatro respostas.
“O assunto é sério, porque aí também há a tentação do deus dinheiro”, diz o Papa. “Algumas congregações dizem ‘Não, agora que o convento está vazio, vamos fazer um hotel e podemos receber pessoas e, com isso, sustentamo-nos ou ganhamos dinheiro’. Pois bem, se quereis fazer isso, pagai os impostos! Um colégio religioso, por ser religioso está isento de impostos, mas se funciona como hotel, então, que pague os impostos como qualquer vizinho do lado. Senão, o negócio não é limpo.”
Este aviso é uma das afirmações importantes que o Papa faz na entrevista à RRA propósito do tema dos refugiados, que ocupa boa parte da conversa com Aura Miguel, o Papa insiste em algumas ideias que já referiu em outras ocasiões: estamos perante a consequência de “um sistema sócioeconómico mau e injusto”, que não coloca a pessoa no centro, como deveria ser; o problema não é apenas europeu, como ele recorda a propósito dos rohingya da Birmânia; o mundo está em guerra contra si mesmo, ao não permitir que existam condições de vida digna em várias regiões do globo; ele próprio, recorda ainda, é filho de emigrantes; e, mesmo com o desemprego existente na Europa, o dever de humanidade – e mais ainda do cristão – é acolher o estrangeiro, como se lê na Bíblia em várias situações...
Apesar destes apelos e avisos do Papa, apesar dos 71 mortos num camiãoapesar da fotografia do pequeno Aylan morto na praia – símbolos da nossa vergonha colectiva, escreveu-se na altura – ainda não vimos tudo. A decisão dos ministros da União Europeia em mais uma vez adiar o problema do acolhimento dos refugiados volta a dizer-nos como estamos doentes de humanidade.

União Europeia prolonga “o sofrimento desnecessário”

A Cáritas Europa considerou que a falta de acordo entre os ministros europeus do Interior e da Justiça “não só prolonga o sofrimento desnecessário entre as centenas de milhares de migrantes e requerentes de asilo bloqueados em diferentes fronteiras mas também coloca em perigo a própria essência da Europa como um projeto comum baseada na solidariedade, democracia e liberdade”. E, acrescenta, segundo a notícia que pode ser lida na Ecclesiaque existem “muito boas soluções” para a crise das pessoas que fogem das guerras.

Com a mesma preocupação, o próprio Vaticano promove hoje uma reunião sobre a crise humanitária que atinge os 15 milhões de refugiados – predominantemente sírios e iraquianos. Para o encontro, diz também a Ecclesiao Conselho Pontifício ‘Cor Unum’, responsável pela promoção das atividades caritativas da Igreja, convidou os bispos e os organismos católicos de solidariedade da região.
Esta manhã, o Papa falou aos participantes do encontro, recordando que “milhões de pessoas se encontram num estado preocupante de urgente necessidade, obrigadas a abandonar os seus países de origem”. O Papa acrescentou: “Líbano, Jordânia e Turquia carregam hoje com o peso de milhões de refugiados, que acolheram com generosidade. Perante o cenário e os conflitos que se expandem e perturbam de forma inquietante os equilíbrios internos e regionais, a comunidade internacional parece incapaz de encontrar respostas adequadas, enquanto que os traficantes de armas continuam fazendo os seus lucros.”
Já nos últimos dias, a assembleia anual do Conselho das Conferências Episcopais da Europa (CCEE), que se realizou pela primeira vez na Terra Santa, apelou a uma ação mais decidida da União Europeia e da ONU em favor dos refugiados.
No comunicado final, os bispos dizem que “a complexidade” desta situação, em todas as suas diferentes “variáveis”, deve merecer “grande atenção por parte dos Estados” em ordem a uma “resposta pronta a quem precisa de assistência imediata”.
Os responsáveis católicos destacam a importância de “acolher” com “hospitalidade generosa” todos quantos desesperam “com a guerra, a perseguição e a miséria”, e de colaborar na sua “integração”.

Porque espera a UE para suspender a Hungria?

Em Portugal, a Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana e a Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP) divulgaram duas notas importantes onde recordam alguns diagnósticos da situação e aquela que deve ser a posição dos cristãos.
A Comissão Episcopal recorda: “Temos todos conhecimento dos numerosos grupos de pessoas que tentaram atravessar o Mediterrâneo nos últimos tempos (mais de 300 mil desde Janeiro); muitas morreram (mais de 2500 no mesmo período). Vimos imagens. Ouvimos relatos. Imagens que preferíamos não ter visto, relatos que seria melhor não termos escutado. Não podemos dizer que não reparámos. (...) Temos todos notícia dos muros que se multiplicam, das barreiras que levantam, da morosidade em encontrar apoios e soluções consistentes.”
Também sobre os que receiam uma “invasão de muçulmanos”, diz a comissão: “Num recente artigo de jornal (o Frankfurt Allgemeine Zeitung), um governante de um estado europeu afirma temer pela perda das raízes cristãs da Europa devido à chegada do grande número (fala de ‘invasão’) de refugiados, sobretudo muçulmanos. Diz ser ‘alarmante’ o facto de os povos europeus não conseguirem “defender os próprios valores cristãos”. A Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana considera alarmantes estas afirmações que contrariam objectivamente a pessoa de Jesus e o seu Evangelho.
Há uma “exigência da fraternidade” para enfrentar esta crise, acrescenta o documentoA Comissão Justiça e Paz intitula a sua nota com a pergunta do livro de Génesis: “Que fizeste do teu irmão?”. Para recordar que “ser fiel às raízes cristãs da cultura europeia não pode reduzir-se a uma proclamação formal, ou à conservação de sinais externos”, sendo incoerente com a fé cristã recusar “o acolhimento de refugiados por estes não partilharem a fé cristã”; e também que “entre nós há quem passe por dificuldades e situações graves de pobreza”, mas que “as situações de onde fogem estes refugiados (...) são, de um modo geral, muito mais graves do que aquelas com que nos deparamos”.
Para a CNJP, “a Europa não pode pretender ser um oásis de paz e prosperidade, protegido por fronteiras ou muros, num mundo onde prevalece a guerra e a pobreza”.
Neste sentido, vale a pena olhar para o que o governo da Hungria tem feito (o governo, que não muitos cidadãos, que continuam a querer ajudar os refugiados, apesar das normas governamentais que também o proíbem). Esse comportamento vergonhoso contraria todo o património cultural e humanista da construção europeia. E, nesse sentido, vale a pena perguntar porque espera o Partido Popular Europeu, no qual se integra o partido no poder na Hungria, para expulsar esse partido do seu seio? Ou perguntar, como já fez Henrique Monteiro, porque espera a própria UE para suspender a Hungria?
Que fizeste ao teu irmão? era também a pergunta que João Miguel Tavares fazia no Público, um dia depois de Rui Tavares ter desmontado também alguns argumentos sociais e políticos que tentam colocar dificuldades à resolução do problema.

Abolir fronteiras para os mercados, erguer muros para as pessoas

De que falamos quando falamos desta crise? De acordo com ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, mais de 300 mil pessoas atravessaram o Mediterrâneo, a maior parte deles em frágeis barcos ou botes de borracha e arriscando gravemente as suas vidas.
Desses, uns 200 mil aportaram à Grécia, outros 110 mil à Itália. Estes números representam um grande aumento em relação a 2014, quando 219 mil atravessaram o mar.
Para comparação, basta dizer que o maior campo de refugiados do mundo, que está no Quénia e não em qualquer país “civilizado” e rico, tem 600 mil refugiados somalis, numa situação que tem provocado também graves tensões.
Outro número: desde o ano 2000, de acordo com dados do projecto The Migrant Files, citados pelo Le Monde (30/31 Agosto), perto de 31 mil pessoas já morreram tentando alcançar a Europa.
A política dominante, em relação aos refugiados tem sido a de manter durante anos situações aflitivas e, perante as novas crises, agravar as medidas de segurança, sem atacar as verdadeiras causas dos diferentes problemas. Quando o muro de Berlim caiu, em 1989, havia outros 16 muros a separar fronteiras. Hoje, existem 65 muros e barreiras de separação.
Num texto publicado no Público a 30 de Agosto, Eric Randolph, da AFP, começava por recordar que a mundialização “aboliu as fronteiras para os mercados, mas para os seres humanos foram erguidos muros em todo o mundo”. E, para cúmulo, a sua eficácia tem sido relativa, como observam especialistas citados no texto.
Alguns deles, estão aqui mesmo ao lado, em Ceuta e Melilla, nos dois enclaves marroquinos sob administração espanhola, resquícios do colonialismo que teimam em desaparecer. Mas também há muros entre a Grécia e a Turquia, entre a Arábia Saudita e o Iraque, entre Israel e a Palestina, os Estados Unidos e o México, a Índia e o Bangladesh, ou ainda a dividir Belfast (Irlanda do Norte) ou Chipre a meio.
Ao muro erguido pela Hungria, na fronteira com a Sérvia (e que continuará agora, pelos vistos, na fronteira com a Roménia), chamou Sylvie Kauffmann, no Le Monde, de “nova cortina de ferro” – erguida pelo mesmo país de onde, em 1956, 200 mil pessoas fugiram para a Áustria e a ex-Jugoslávia à procura de refúgio e que, em 1989, abriu as suas portas para que 60 mil alemães deixassem a então Alemanha de Leste e entrassem no Ocidente.
Hoje, os países do Centro e Leste europeu (e não apenas a Hungria) estão perante um dilema, diz Sylvie Kauffmann (Le Monde, 30/31 Agosto): o de mostrar que a solidariedade não tem apenas um sentido único, recebendo precisamente a esse título verbas de fundos de coesão, mas que ela deve ser testada em momentos como o actual.

O que fazer?

Perante o que se passa, o que fazer então? Seguramente, não enviar os refugiados de volta para a guerra, o caos, a violência e a morte. Era essa, pelo menos, a opinião expressa há dia ao DN pelo padre Michael Czerny, do Conselho Pontifício Justiça e Paz).
As igrejas e muitos cristãos têm-se mobilizado na ajuda, solidariedade e apoio aos refugiados. Além dos exemplos já referidos da Igreja Católica, pode destacar-se que, no âmbito do Conselho Ecuménico (Mundial) de Igrejas (CEI), a ACT Alliance EU pediu já uma resposta colectiva dos Estados-membros da UE. A Conferência das Igrejas Europeias tem apelado ao empenhamento das comunidades locais. A Comissão das Igrejas para os Migrantes na Europa tem realizado diagnósticos e desenvolvido acções de aconselhamento legal focadas na reunificação familiar. Quer o CEI, quer a Conferência das Igrejas Europeias ou a Federação Luterana Mundial têm igualmente apoiado múltiplas iniciativas e tomado posição a favor de uma política comum europeia mais humanitária.
Tal como aconteceu também com o arcebispo anglicano de Cantuária, Justin Welby, que, numa declaração no início do mês, dizia: “Agora, talvez mais do que nunca na Europa do pós guerra, necessitamos de nos comprometer a juntar ações, reconhecendo a nossa comum responsabilidade e a nossa humanidade comum. Enquanto cristãos acreditamos que somos chamados a quebrar barreiras, a dar as boas vindas ao estrangeiro e amá-los como a nós próprios (Levítico 19:34), e a buscar a paz e a justiça do nosso Deus, no nosso mundo, hoje. (...) Não podemos voltar as nossas costas perante esta crise. Temos que responder com compaixão.”
Essas acções de apoio passaram já pelo acolhimento de refugiados em famílias ou pela recolha de fundos, como dá conta o semanário protestante suíço, La Réforme.
Há milhões de refugiados que não têm um lugar a que chamar casa, escrevia ontem Tony Magliano no National Catholic Reporter (A revista The Economist, de 29 de Agosto, titulava mesmo que estão á procura de casa ou a bater à porta do céu). Magliano citava alguns números mais, referidos por Matt Wilch, conselheiro da Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos para as migrações e os refugiados: os quatro milhões de refugiados sírios foram até agora acolhidos fundamentalmente pela Turquia (1,8 milhões), pelo Egipto (200 mil), Líbano (mais de um milhão) e Iraque (200 mil, apesar de o país estar ele próprio a ser devastado pela guerra e ser também um ponto de fuga de muitos dos seus cidadãos, nomeadamente cristãos, como recorda aqui o padre Luís Montes).
Os Estados Unidos, apesar de serem, com a União Europeia, os principais instigadores da guerra civil, acolheram, desde Março de 2011, o extraordinário número de 1554 sírios. “Isto é vergonhoso”, conclui Tony Magliano.

Texto anterior no blogue
A pergunta decisiva de Jesus e perguntas ao Sínodo dos Bispos - crónicas de Anselmo Borges e Vítor Gonçalves




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