Reportagem
Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Lisboa
(foto © Carlos Manuel Martins/Global Imagens)
No DN de hoje, uma reportagem assinada por Miguel Marujo, sobre o modo
como, afinal, os textos do Evangelho podem ajudar a formar opinião política em
tempo de campanha:
Sem iniciativas de campanha à
porta de igrejas, as leituras deste fim de semana tinham uma linguagem política
dura sobre a exploração dos trabalhadores e a capacidade de acolhimento pelos
cristãos
Longe da prática que se vê na
Madeira, com os candidatos que acorrem de microfone à saída das missas, à porta
das igrejas no centro de Lisboa não há campanha eleitoral e visíveis só os
cartazes que andam pelas ruas. No interior menos ainda, mas a política entra
pela porta das leituras deste domingo. A democracia amadureceu, como também os
cidadãos - e, entre estes, padres e leigos. São raros os que debitam votos do
púlpito. A César o que é de César, no apelo direto ao voto, mas Deus não se
afasta das coisas do mundo, avisou o Papa Francisco, ainda agora no Congresso
dos EUA. "Envolver-se na política é um dever cristão", disse. Assim
seja.
São Tiago, de quem se leu neste
fim de semana a sua epístola (Tg 5,1-6), é claro como a água. "É uma
linguagem violenta mas também colorida em que São Tiago diz verdades
fortes", antecipou o padre António Janela, na missa das 18.30 de sábado,
na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, a meia dúzia de passos do Marquês de
Pombal, em Lisboa.
O autor denuncia os ricos que
acumularam tesouros. "Privastes do salário os trabalhadores que ceifaram
as vossas terras. O seu salário clama; e os brados dos ceifeiros chegaram aos
ouvidos do Senhor do Universo. Levastes na terra uma vida regalada e libertina,
cevastes os vossos corações para o dia da matança. Condenastes e matastes o
justo e ele não vos resiste."
É uma leitura inequívoca para
estes tempos de crise, em que os salários e as pensões foram cortadas e o fosso
entre rendimentos mais altos e os mais baixos aumentou em Portugal, em que o
desemprego disparou e os apoios sociais diminuíram. Tiago escreve que acumular
bens à custa da miséria e da exploração dos trabalhadores é um crime abominável
a que Deus não pode fechar os olhos e deixar impune.
Na missa das 11.00 de ontem, na
Igreja de Santa Isabel, encravada em Campo de Ourique, o padre Alexandre Palma
sublinhou a necessidade de não se ficar a meio caminho, com opções claras.
"Como cristãos, importa acumular tesouros do Céu em vez de acumular
tesouros na terra." Despojamento que não se fecha no interior da Igreja
Católica, longe da conceção ultrapassada de que só Roma detém a verdade.
"Há pessoas que não são
cristãs que são capazes de lutar contra o mal", sublinhou António Janela.
O seu contrário também é verdade: entre os cristãos, há quem se ponha do lado
do mal. "Quem dera que todo o povo de Deus profetizasse", rematou
João Seabra, na Igreja da Encarnação, no Chiado, na sua homilia da missa das 12.30,
citando as palavras de Moisés no livro dos Números (Nm 11,25-29). Em frente, na
Igreja dos Italianos de Nossa Senhora do Loreto, o celebrante sublinharia pouco
depois: "O homem livre terá de fazer a sua história."
Em nenhuma das homilias ouvidas
pelo DN assoma a palavra campanha, nem sopra a espuma destes dias. Mas "a
linguagem forte e dura", como define António Janela, das leituras deste
26.º domingo do tempo comum, estão impregnadas de notas. Também na questão dos
refugiados: os cristãos têm de ser uma comunidade aberta. O Evangelho de São
Marcos (Mc 9,38-43.45-47--48) refere-se ao apelo de Jesus para que as
comunidades não "escandalizem" (ou seja, não afastem "da
comunidade do Reino") os pequenos, que é uma outra forma de pensar como
lidam os cristãos, enquanto pessoas e comunidades, com os pobres e os que vivem
nas margens.
Na missa em Coração de Jesus há 30
pessoas, entre elas dois casais estrangeiros (um que veio de Inglaterra, outro
de "Vegas, Las Vegas", nos EUA). Na oração dos fiéis, intercede-se
pela situação na Síria, no Iraque e na Nigéria - e pelos desempregados. Em
Santa Isabel, com a nave cheia de gente e muitas crianças, reza-se pelo
"silêncio de quem sofre" e outra para que a "comunidade viva a
comunhão da diversidade".
É este pluralismo que Manuel
Clemente regista numa "carta aos diocesanos de Lisboa", de 1 de
setembro. "Uma opção "cristã" é necessariamente solidária, com
consequências para o que temos ou possamos vir a ter, que sendo
"nosso" nunca o é exclusivamente assim", escreveu o cardeal-patriarca.
Entre o discurso habitual de
defesa da vida - a "proteção da vida desde o seu começo" tem sido
"mais contrariado do que promovido" -, D. Manuel avança com a
necessidade de optar à luz da doutrina social da Igreja, nomeadamente da "dignidade
da pessoa humana, bem comum, subsidiariedade e solidariedade", no que
respeita à "família, educação, trabalho, economia, política ou
cultura". É um outro discurso sobre a vida, muito por causa do Papa
Francisco. Que é citado ao avisar que "a orientação da economia favoreceu
um tipo de progresso tecnológico cuja finalidade é reduzir os custos de
produção com base na diminuição dos postos de trabalho, que são substituídos
por máquinas. [...] Renunciar ao investimento nas pessoas para se obter maior
receita imediata é um péssimo negócio para a sociedade". O voto dos
cristãos não é, pois, uma coisa tão óbvia como muitas vezes se quer pintar.
(texto e foto reproduzidos daqui)
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