Os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (I)
Life (Todos têm o direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal),
© Fernanda Fragateiro (para Amnistia Internacional)
Texto de Fernando Sousa
O mundo das últimas sete décadas causa realmente arrepios. Mas como seria ele sem a declaração de 1948? Homens e mulheres não nasceriam hoje menos iguais em dignidade e direitos? No dia em que se assinalam os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, RELIGIONLINE evoca a “constituição das constituições” e, numa série de pequenos textos, analisará o que se passa em relação à aplicação de alguns dos seus artigos.
Olhando para os últimos 70 anos, uma pessoa pergunta-se como foi possível conceber um texto como o que se comemora – a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nem o passado recente nem o ambiente permitiam então o pensamento quanto mais um acordo sobre direitos fundamentais e liberdades que durasse e fosse uma promessa.
As duas guerras mundiais, o fratricídio espanhol, o genocídio dos arménios e depois o dos judeus, ciganos ou homossexuais, os horrores de Hiroshima e Nagasaki, com um cortejo de muitos milhões de vítimas estavam frescos na memória de todos. Não havia grande espaço para o optimismo.
O momento também era cheio de nuvens. Na China, as tropas de Mao iam a caminho de Pequim, vários países da Europa Oriental estavam dominados por ditaduras de sinal comunista e, em Portugal e Espanha, dominavam Oliveira Salazar e Franco.
No Médio Oriente, israelitas, por um lado, independentes há oito meses, e palestinianos e árabes, por outro, preparavam-se para se matarem eternamente. E a América Latina já era uma cascata de golpes e um vai-vem de ditadores e guerras que projectavam durar décadas – como veio a acontecer com a colombiana, que só agora vai acabando.
Os embates depois das cinzas
Foi neste quadro de cinzas e novas ameaças que a recém-nascida ONU (Organização das Nações Unidas) criou uma comissão cuja composição não prometia à partida grande coisa, tal a sua diversidade política, cultural ou religiosa, e que se reuniu pela primeira vez em Janeiro de 1947. Presidida por Eleanor Roosevelt, viúva do falecido Presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt, integraram-na, entre outros, P. C. Chang, vice-presidente, chefe da delegação da China na ONU, o filósofo Charles H. Malik, do Líbano, um greco-ortodoxo convicto, René Cassin, da França, futuro Prémio Nobel da Paz, em 1968, John P. Humprey, do Canadá. Os cinco virão, aliás, a constituir o comité encarregado da proposta a ser votada em plenário.
Os que representavam os países da Europa Ocidental, com excepção do Reino Unido, insistiram nas liberdades e na igualdade. Os anglo-saxões debruçaram-se mais sobre os direitos políticos – sem esconderem a desconfiança na intervenção do Estado. Os países socialistas, defendendo a subordinação do indivíduo ao Estado e a primazia dos direitos económicos e sociais sobre os civis e políticos, temiam que o texto final lhes fosse desfavorável. Os latino-americanos juntaram-se à volta da IX Conferência Internacional de Bogotá, aprovada seis meses antes. Os países islâmicos não desejavam um resultado demasiado “ocidental” – querendo com isso dizer demasiado judaico-cristão. A agravar tudo pesou o tempo todo a tensão entre os Estados Unidos e a União Soviética.
Claro que os choques não demoraram. O primeiro foi sobre quem iria vigiar o cumprimento do que fosse decidido: todos temiam pelos seus direitos de soberania. Aqui, Eleanor marcou logo pontos adiando a questão para outra altura. Foi no mínimo previdente: ninguém estava disposto a admitir ingerências externas no seu direito, desde logo os países socialistas. Além disso, em vários estados do seu próprio país, os EUA, vigoravam leis raciais e espreitavam revoltas.
Butterflies (Ninguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou exilado)
© Nuno Saraiva (para Amnistia Internacional)
Outro embate foi por motivos religiosos. Alguns delegados acharam que citar “Deus” ficaria bem no texto. Foi o caso de Malik, que defendeu a sua inclusão logo no primeiro artigo. Cassin, temendo pela universalidade do documento, e Chang, um confucionista que levara uma vida a lançar pontes entre contrários, opuseram-se à ideia e ela morreu. As divisões também grassaram entre os muçulmanos, por exemplo com o Paquistão e o Egipto a aceitarem direitos iguais para homens e mulheres no casamento, com a oposição da Árábia Saudita, e sobre o direito de uma pessoa de mudar de religião, com indianos e egípcios a dizerem sim e os sauditas a dizerem não outra vez.
Alusões à “natureza” também foram afastadas. Direitos humanos inscritos por “natureza”? Nem pensar. Chang cortou a tentativa de raiz. O jusnaturalismo não era para ali chamado.
Finalmente, o texto foi aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em Paris, no Palais de Chaillot, no dia 10 de Dezembro de 1948, juntando pela primeira vez na história sensibilidades, culturas e ideias muito diferentes num mesmo papel. Votaram a favor 48 países dos ainda 56 membros da organização. Não houve votos contra. Abstiveram-se a Arábia Saudita, a África do Sul e seis países comunistas – Bielorrússia, Checoslováquia, Polónia, Ucrânia, URSS e Jugoslávia.
Um processo de séculos
Foi a mais completa das etapas de um processo de séculos e o começo do fim de um mundo de direitos exclusivos dos homens, brancos e europeus, que marginalizara povos colonizados, mulheres e minorias – todas as minorias, apesar de apelos de visionários adiantados aos seus tempos, como o missionário dominicano espanhol Bartolomeu de Las Casas (séculos XV-XVI) e o jesuíta português António Vieira (século XVII). Que já sabiam que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, o mundo é que ainda não.
Para trás, ficavam a revolta dos barões ingleses e a Magna Carta, de 1215, o “Habeas Corpus” de 1679, a Bill of Rights, de 1689, a lindíssima declaração do direito à busca da felicidade da Declaração do Bom Povo de Virgínia, de 1776. E ainda a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, evidentemente a Carta da ONU, de São Francisco (1945), estabelecendo como fins essenciais da nova organização a “realização da cooperação internacional [...] no desenvolvimento e estímulo do respeito pelos direitos humanos e as liberdades fundamentais de todos”, ou a Declaração Americana dos Direitos e dos Deveres do Homem, resultado da IX Conferência Internacional Americana, Bogotá, de 1948.
Os ecos da nova declaração não se fizeram esperar: as convenções de Genebra do Direito Internacional Humanitário (1949) e europeia dos Direitos Humanos (1950) e o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, completados por dois protocolos facultativos (um dos quais, de 1989, sobre o fim da pena de morte) ajudaram a concretizar o disposto na Declaração Universal. A par de outros documentos importantes, como o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (1966), a Declaração dos Direitos da Criança (1959) e os pactos contra a Tortura... Ou – destaque-se – o Pacto Global para Refugiados, o primeiro acordo intergovernamental negociado sob a égide das Nações Unidas e concebido para cobrir todas as situações da migração, uma das boas novidades de 2018, esta manhã mesmo adoptado em Marraquexe.
Ao mesmo tempo, os mecanismos de tutela exigidos nos primeiros dias de discussão, adiados por Eleanor para não complicar o diálogo e conseguir a maior unanimidade possível, foram aparecendo. Falamos de uma série de tribunais: o Internacional(Haia), criado para arbitrar conflitos ou julgar estados, o Interamericano (San José, Costa Rica), o Europeu (Estrasburgo).
Já no novo milénio e em resultados do complicado e muito demorado processo que levou à aprovação dos Estatutos de Roma, foi criado também o Tribunal Penal Internacional, igualmente sedeado em Haia, que já julga pessoas, mas cujo braço não chega aos países que não reconhecem a sua jurisdição, como os Estados Unidos ou Israel. Os tribunais de Nuremberga e Tóquio e, muito mais tarde, os ad hocpara a antiga Jugoslávia e o Ruanda, foram criações pontuais e específicas.
Depois das palmas e dos parabéns
Batidas as palmas e cantados os parabéns ao mais ambicioso dos textos universais de inspiração personalista que o mundo já aprovou - ponto de encontro do melhor da tradição iluminista e liberal, ou da tradição greco-romana (e sobretudo do direito) e cristã, e que junta como nunca direitos civis e políticos, sociais, económicos e culturais - voltaram velhos demónios arrastados por conflitos mal resolvidos, resultantes da tensão Leste-Oeste, das dores de crescimento das novas independências, ou das duas juntas, ou os que, à falta de melhor definição, foram marcando taras.
Cameleon (Todas as pessoas têm direito à liberdade de opinião e de expressão)
© Alberto Faria (para Amnistia Internacional)
A lista é um nunca acabar de sangue: as Coreias, o Vietname, as guerras indo-paquistanesas, o Laos, de que ninguém fala ou sequer se lembra, o Suez, o Yom Kipur, os seis dos piores dias de 1967, o Líbano, as Intifadas, a Faixa de Gaza, os países esmagados pela URSS ou pela China, as loucuras sanguinárias de Bokassa ou Idi Amin, os genocídios da Nigéria, Camboja ou dos Grandes Lagos, e ainda Timor, Angola, os Congos, a Somália, o Darfur, os anos de “chumbo” da América Latina, as tensões raciais dos estados... E esse México, pejado de valas comuns e com raiva às mulheres, e que faz do dia dos mortos a sua festa nacional, bem retratado por Roberto Bolaño no livro 2666...
Enfim, a armadilha – que não tem outro nome – em que caíram Zaida Catalán e Michael Sharp, os jovens investigadores das Nações Unidas assassinados no Congo no dia 12 de Março de 2017, ensombra em particular estes dias. Tem andado nas notícias. Ela, 36 anos, filha de um chileno e de uma sueca, ele, 34, um norte-americano do Kansas apostado em deixar o mundo melhor do que encontrara, estavam na RDC, antigo Zaire, a recolher provas de atropelos aos direitos humanos por parte dos grupos que ali lutam. Raptados por um deles, foram decapitados num vilarejo remoto da província central do Kasai. Um intérprete e três motoristas locais foram também mortos – ainda não se sabe deles.
Uma investigação conjunta realizada depois por jornalistas da Foreign Policy, Radio France Internationale, Le Monde, Sverige Television e Süddeutsche Zeitung encontrou indícios de que Zaida e Michael terão tropeçado em indícios comprometendo o próprio governo congolês em assassínios em massa, caso que a ONU terá preferido abafar por motivos diplomáticos. A mesma organização, que há 70 anos deu ao mundo a primeira declaração universal sobre direitos fundamentais.
Saudar o melhor que o mundo tem
As fragilidades da declaração ou o seu continuado e escandaloso incumprimento, desde logo por parte de quem mais obrigação tem de a fazer cumprir, não devem, no entanto, impedir que seja comemorada. É para todos os efeitos o melhor que o mundo tem em matéria de direitos fundamentais e liberdades públicas. É, por assim dizer, a constituição das constituições.
Claro que, entre os direitos lá inscritos, uns têm sido mais obedecidos do que outros. Os que terão tido mais “saída” serão os relativos à personalidade jurídica do indivíduo ou o direito à nacionalidade, talvez por o seu cumprimento interessar aos próprios estados. Os com menos sorte são os económicos, sociais e culturais, como o trabalho, a saúde, a habitação, a educação, a segurança social ou os do lazer ou do direito à cultura.
Há ainda novos direitos, os ditos de terceira e quarta geração, os colectivos ou os relacionados com aspectos da manipulação genética, a biotecnologia ou a bioengenharia, que esperam a oportunidade para se juntar aos anteriores.
Muitos dos hoje 185 membros das Nações Unidas continuam até a considerá-la um repositório de direitos ocidentais, para não falar do veneno relativista que vem considerando que não há valores absolutos, nem o da vida. Mas, no seu conjunto de direitos universais, interdependentes e indivisíveis, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, traduzida em 417 línguas e idiomas, tem um valor normativo único e incontornável. E custou demasiado sangue, demasiada infelicidade, para não ser saudada.
Amanhã: A vida por um fio (o que se passa no que respeita à aplicação do direito à vida)
Fernando Sousa é jornalista
Fernando Sousa é jornalista
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