Texto de Leonor Xavier
O rio Amazonas nos arredores de Manaus: um “infinito de medida na surpresa,
nos acontecimentos, nas emoções” (foto © António Marujo)
Menos de um ano antes do Sínodo Pan-Amazónico se realizar e a poucas semanas da tomada de posse de Jair Bolsonaro como Presidente do Brasil, a estratégia política do Governo brasileiro para a Amazónia é preocupante. Pareceu-me útil retomar o tema, relendo o artigo de opinião que há um ano escrevi para o Jornal Público.
O Brasil é infinito de medida na surpresa, nos acontecimentos, nas emoções. E já que o tema corrupção pouco abala a opinião pública, retomo a saga da Floresta Amazónica e da governação de Michel Temer, mais ainda agora contestada pela recente decisão de abrir à exploração de mineradoras multinacionais uma área de cerca de 50 mil km2, onde existem reservas indígenas e ambientais, onde há ouro, cobre, manganês, ferro.
Neste Brasil sempre inesperado e pasmoso, até hoje se revelam comunidades indígenas nunca vistas. Ainda se confrontam flechas e armas, a divisão entre vida e morte passa por um vírus de gripe, um produto tóxico, alguma substância que por má fé possa contagiar territórios onde não há defesa nem imunidade. Na demarcação das reservas indígenas, a guerra química é real, a violência é extrema. Há o conflito entre índios e garimpeiros, comprados como escravos, a trabalhar por valor de nada. Há o confronto entre as populações e os agentes ambientais, entre madeireiros, fornecedores do garimpo, fazendeiros, poderes locais. Há a disputa entre empresas, interesses e negócios políticos e privados. Háos lobbies para monopólios de mineração. Estes acontecimentos são notícia nacional quase diária, logo divulgada. A Floresta Amazónica é uma grande causa para o povo brasileiro.
Logo que publicado o decreto do presidente Temer, as instâncias do poder em Brasília contestaram-no. A política de abertura à mineração foi interpretada por muitos analistas como uma medida contra a crise económica que tem fraturado o país. Para outros, ao invés, uma estratégia de abertura com controlo federal seria melhor do que a atual situação em que três mil garimpeiros depredam ilegalmente a natureza. Houve reações da União Europeia, dos bispos, dos ambientalistas, dos ativistas políticos, dos mais variados setores da sociedade brasileira. Na justiça federal, foi alegada desobediência à Constituição, e foram proibidas outras possíveis decisões do presidente sobre mineração. Pela Igreja Católica, bispos de nove países amazónicos declararam o decreto como antidemocrático, considerando-o uma ameaça política para o Brasil. No Congresso, deputados ambientalistas, defenderam um projeto de lei para anular tais decisões. O Ministério Público do Amapá empreendeu uma ação civil pública e declarou a extinção daquela área de Reserva como ameaça à biodiversidade e ao ambiente, como atentado contra a vida, pronto a destruir as populações e as comunidades indígenas. E na abertura do Rock in Rio, a oposição ao decreto foi proclamada pela modelo Gisele Bundchen, ativista ambiental, com convicção, firmeza e comoção.
Em face das múltiplas manifestações na União e no mundo, um mês depois de anunciado o decreto, foi declarada a sua extinção, supostamente definitiva. Por esses dias em viagem oficial à China, o residente do Brasil comentava o assunto como sendo de menor importância. Na sua opinião, com “uma singeleza ímpar” se terá desenrolado o debate.
Desmatamento da Amazónia: o rio da Saudade
(foto © Gerard Moss/Projecto Brasil das Águas, Julho 2006)
Para além do complexo e sinuoso panorama da atual política brasileira, a Floresta Amazónica é sentida como património universal, símbolo sagrado de criação e de vida. Assim, têm especial importância a ação do Papa Francisco, atento à deterioração global do ambiente e à urgência de uma salvação por todos participada. Em Laudato si, a Carta Encíclica que exprime diretrizes fundamentais do seu pontificado, há um apelo à consciência, à conversão ecológica, à luta pela preservação da Terra, nossa casa comum. Há uma certeza: “As mudanças climáticas são um problema global com graves implicações ambientais, sociais, económicas, distributivas e políticas, constituindo atualmente um dos principais desafios para a humanidade.”
Em 15 de Outubro [de 2017], o Papa Francisco anunciou a realização, em outubro de 2019, de uma Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a Região Pan-Amazónica. Na missa de canonização de trinta mártires brasileiros, massacrados no séc. XVII, o Papa saudou os peregrinos e afirmou a importância da Região Amazónica na ordenação do mundo. O anúncio desta Assembleia Especial anima o cardeal Cláudio Hummes, presidente da Rede Eclesial Pan Amazónica e da Comissão da Amazónia na Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros. Conhecedor da imensidade de questões humanas e ambientais que na Pan-Amazónia envolvem nove países e mais de 30 milhões de pessoas, o cardeal Hummes acredita nas conclusões do Sínodo de 2019 para a proteção do ambiente, a sobrevivência das populações, a missão da Igreja nesta geografia imensa do mundo.
O desmatamento na Amazónia, 900 quilómetros a sudeste de Manaus
(foto © Gerard Moss/Projecto Brasil das Águas, Julho 2006)
Os conceitos de destruição, degradação, desmatamento são hoje falados em múltiplas línguas, como sinal de apreensão, consciência e responsabilidade.
São motivo de intervenção social, e também inspiração para variadas artes. Em música, é bem expressiva a letra de “Matança”, dos cantadores nordestinos Xangai e Geraldo Azevedo, que em janeiro de 1984 estreou no Teatro Castro Alves em Salvador e foi sucesso no espetáculo “Cantoria” a que assisti, ao vivo, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Acredito nas palavras em modo de luta contra as adversidades. Nada melhor que dizê-las em língua portuguesa clara e cantada, para aprender as árvores que morrem, imoladas. “Pra nosso espanto/ Tanta Mata haja vão matar/ Tal Mata Atlântica e a próxima Amazónica”, entoam os cantadores. E então, são enunciadas as árvores em música, na fantástica diversidade dos seus nomes: cipó, pinheiro, imburana, barriguda, cedro, sucupira, jacarandá, caviúna, cerejeira, baraúna, imbula, pau dárco, salva, juazeiro, jatobá, gonçalo-alves, paraíba, itaúba, louro, ipê, paracaúba, peraba, massaranduba, carvalho, mogno, canela, imbuzeiro, caruaba, janaúna, arueira, araribá, pau-ferro, angica, amargosa, gameleira, andiroba, capaíba, pau-brasil, jequitibá.
O desmatamento na Amazónia: “aprender as árvores que morrem, imoladas”
(foto © António Marujo)
(Leonor Xavier é escritora e jornalista)
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