Texto de Eduardo Jorge Madureira
O romancista israelita Sami Michael descreveu uma viagem de táxi em que o motorista se pôs a predicar sobre quão importante era para os judeus, como ele próprio e o seu passageiro, que se matassem todos os árabes. Sami Michael escutava-o com enorme paciência e, em vez de se mostrar horrorizado e o mandar calar, decidiu perguntar-lhe quem deveria ter o encargo de matar a totalidade dos árabes. O taxista respondeu o que se lhe afigurava óbvio: “Nós! Os judeus! Temos de matá-los! É ou nós ou eles! Você não vê o que eles estão sempre a fazer-nos!” O escritor decidiu insistir na interrogação sobre quem, exactamente, deveria matar todos os árabes: “O exército? A polícia? Serão os bombeiros? Ou os médicos de bata branca, com injecções?” O taxista, depois de uma pausa para calcular a melhor resposta, disse: “Temos de dividi-los irmãmente por cada um de nós. Cada homem judeu terá de matar uns quantos árabes”. Sami Michael prosseguiu a indagação: “Tudo bem. Digamos que você, por ser de Haifa, recebe um prédio de apartamentos em Haifa. Vai de porta em porta, toca à campainha e pergunta delicadamente aos moradores: ‘Perdão, serão por acaso árabes?’ Se a resposta for sim, dispara e mata-os. Quando acaba de matar todos os árabes do seu prédio, volta para casa, mas, antes de se afastar, ouve de repente do andar mais alto o choro de um bebé. O que fazer? Voltar atrás? Subir as escadas e matar o bebé? Sim ou não?” Depois de um demorado silêncio, o taxista responde a Sami Michael: “Escute, senhor, você é uma pessoa muito cruel!”
A história é contada pelo escritor israelita Amos Oz no livro Caros fanáticos. Fé, fanatismo e convivência no século XXI como exemplo da confusão que prevalece no espírito de um fanático: “uma combinação de inflexibilidade, de sentimentalismo e de falta de imaginação”. Para Amos Oz, que é também um militante pela paz, Sami Michael conseguiu, ao trazer o bebé para a história, confundir o motorista de táxi, tocando-lhe na “corda emocional”. O episódio oferece também uma, ainda que ténue, esperança, uma vez que, como escreve Amos Oz, ao se ser instado a imaginar os detalhes do horror de que se faz a apologia, emerge um embaraço que é “uma pequena brecha súbita no muro da inflexibilidade fanática”.
Editado em Setembro pelas Publicações D. Quixote, Caros fanáticos. Fé, fanatismo e convivência no século XXI é o mais recente livro do autor sobre o tema (em 2007, tinha sido publicado Contra o fanatismo). Colige três ensaios que, apesar de pretenderem ser “um olhar pessoal sobre questões controversas na sociedade israelita”, tem um alcance muitíssimo mais vasto.
É que o fanatismo, como explica Amos Oz, é mais antigo do que o Islão, do que o cristianismo e o judaísmo e do que todas as ideologias do mundo. O fanatismo “é a essência perene da natureza humana, o ‘gene mau’: aqueles que fazem explodir clínicas onde se fazem abortos, que matam refugiados na Europa, que assassinam mulheres e crianças em Israel, que lançam fogo a uma casa com toda uma família palestiniana lá dentro, pais e filhos, nos territórios ocupados por Israel, que profanam sinagogas, igrejas, mesquitas e cemitérios, todos estes, apesar de diferentes da Al-Qaeda e do Daesh pela extensão e gravidade dos seus actos, não o são na natureza dos seus crimes”. O fanatismo julga que os fins justificam os meios, não acreditando que “a vida é um objectivo e não um meio”.
Amos Oz chama a atenção para a existência de fanatismos “menos evidentes e menos visíveis, à nossa volta e por vezes até dentro de nós”, observando que, “mesmo na vida quotidiana de comunidades normais e de pessoas que conhecemos bem irrompem por vezes sinais, não necessariamente violentos, de fanatismo”. É que, “por detrás de certos sinais de dogmatismo intransigente esconde-se por vezes um germe mais ou menos encoberto de fanatismo, de inflexibilidade ou até de hostilidade face a posições não aceites”.
Como tantas vezes Amos Oz tem explicado, o fanatismo combate-se dialogando, desenvolvendo a curiosidade, a empatia e a compaixão. Colocar-se no lugar do outro – perguntando: “E se eu fosse ele?” – é algo que um fanático nunca faz. Também a arte e o humor enfraquecem o fanatismo. “Nunca encontrei fanáticos com sentido de humor”, escreve Amos Oz, acrescentando: “Nunca vi que alguém capaz de se rir de si próprio se tenha tornado fanático.”
Amos Oz, Caros Fanáticos. Fé, fanatismo e convivência no século XXI
Publicações D. Quixote, Alfragide, 2018
Tradução: Lúcia Liba Mucznik
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