sábado, 15 de dezembro de 2018

Bem-aventurados os puros de coração

Cinema
Texto de Manuel Mendes


Este filme tinha tudo para ser ‘arrumado’ na prateleira dos que, um dia, passariam pela televisão e, se calhasse, talvez desse para uma espreitadela disfarçada: uma história mais do que contada, a tender para o choradinho, pouco mais do que um entretenimento. Enfim, preconceitos são preconceitos mas, felizmente, seja porque que razão for, alguém nos ‘leva’ a ver o filme. As críticas são simpáticas, afinal parece interessante, e até Clara Ferreira Alves começa assim uma crónica: «Gostei muito de “Assim Nasce uma Estrela” (Expresso-Revista, 27 de Outubro). Vejamos então. E vale mesmo a pena gastar 135 minutos – é um filme longo – a ouvir e contemplar esta história de amor, de ascensão e queda, de encontro e desencontro, de verdade e mentira que, não sendo nova, é magnificamente recriada pelos dois actores (Bradley Cooper/Jackson Maine e Lady Gaga/Ally). Imperdível.
Talvez na vida real seja uma história impossível de acontecer, mas ainda bem que existe a ficção para nos fazer acreditar que ainda há homens e mulheres de coração puro, mesmo que não dure para sempre, mesmo que ‘acabe mal’.
Entremos por aqui: o filme também é sobre o impacto – forte e quase sagrado – que uma mulher pode ter num homem e vice-versa. Nenhum fica igual depois do encontro; e tudo poderia acabar bem se as pessoas fossem capazes de não ouvir as insídias do Diabo do Mercado que só pensa no lucro. Mas essa é a luta mais difícil.

Imprevisivelmente, e porque não aguenta não beber, Jackson Maine, numa quase madrugada, entra num bar de drag queens. E enquanto bebe, ouve uma voz poderosa e irresistível, diferente. E não desiste de a levar e ter consigo. Para além de ser um famoso cantor, dependente do álcool, ele é também um homem bom (repare-se naquele gesto quase imperceptível de trazer para o seu motorista um pacote de cheerios, quando vão a um supermercado à procura de gelo para pôr na mão dela que se tinha aleijado). No meio de algumas dúvidas e recusas – por parte dela – e de muitas insistências – por parte dele – descobrem-se a alma gémea um do outro. E é assim que a história vai até que o ‘Diabo’ passa a ser agente de Ally que se tinha revelado, entretanto, uma magnífica cantora. Jackson assiste impotente, mas sobretudo desolado, à ingénua transformação da sua cantora, que vai perdendo autenticidade, cai na vulgaridade, muda a imagem. Torna-se uma estrela segundo as regras do mainstream. Ainda por cima tem de ouvir do tal Diabo que ela não vai mais longe por causa dele. E ele, que estava ‘recuperado’ e feliz, decide morrer como pai.
Também eu gostei do filme: porque é bem filmado, tem uma boa fotografia, tem canções incríveis e soberbamente interpretadas, mas sobretudo é uma belíssima história de amor – os mais sensíveis deixarão sair ‘uma furtiva lágrima’ e não é vergonha nenhuma – a recordar-nos que o amor é mesmo possível, mas que continua a ser necessária uma força muito grande para resistir às tentações do Diabo mentiroso e divisor.
Uma nota final apenas para dizer que se trata, 42 anos depois, da quarta remake do filme ‘Assim Nasce Uma Estrela’ e que esta é talvez, segundo os cinéfilos mais atentos e sabedores, a melhor. Bom filme.

Manuel Mendes é padre católico; o texto é reproduzido da revista Mensageiro de Santo António, Dezembro 2018

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