D. Natércia costuma ir de comboio passar os sábados numa casa de Parada de Todeia. Ainda cheia de vida, nos seus setenta e muitos, faz-se habitualmente acompanhar da Dentuça, uma pequena cadela rafeira a que se afeiçoou, depois que um neto lhe deixou a incumbência.
O bicho é o cúmulo da pacatez e por causa dela nunca houve qualquer problema com ninguém. Pelo contrário: se calha de alguém se meter com ela, não se ensaia nada para devolver a atenção com gestos de apreço e carinho.
Naquele sábado, já o escuro se fazia sentir, foi, como de costume, para o apeadeiro da terra, para apanhar o comboio. Sítio esconso e ermo, onde, àquela hora, mais ninguém começa viagem.
Mal entra no transporte, aparece-lhe o revisor que lhe pergunta se trazia a documentação do canino. Natércia sabe que, para viajar com o animal se deve fazer acompanhar dos respectivos documentos. Explica que, como nunca ninguém lhe pedira os papeis, se esquecera de os meter na bolsa. O homem não tem mais: intima a senhora a abandonar o comboio. De nada valeram os protestos, a chamada de atenção de que o sítio era escuro, que estava frio, que só haveria novo transporte uma hora depois. A tudo o interlocutor se mostrou insensível. E ela teve mesmo de sair.
Foi então que um casal com quem D. Natércia havia já trocado, noutra viagem, algumas palavras, apercebendo-se do que se passava, sai do comboio e fica ali a fazer companhia à senhora.
[Dois dias depois, ganhou coragem e foi à CP apresentar reclamação pela desumanidade do trato. E fez muito bem].
Leitura complementar: Lucas, 10, 25-37
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