quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Como a Europa unida começou com a bicicleta de Robert Schuman

Há 50 anos, a 4 de Setembro de 1963, morria em Metz um dos “pais fundadores” da actual União Europeia, Robert Schuman. Aqui pode ler-se uma evocação da sua figura: “O que mais me tocou nele foi a irradiação da sua vida interior: estávamos diante de um homem consagrado... de uma total sinceridade e humildade intelectual, que apenas queria servir”, como dizia André Philip (1902-1970), deputado socialista e membro do Governo francês em diferentes ocasiões.
A ideia que Schuman foi alimentando, no sentido de acabar com as fronteiras, foi forjada por pequenas questões quotidianas, como a impossibilidade de circular de bicicleta. Quem já esteve na zona de fronteira entre a França, a Alemanha e o Luxemburgo, sabe que as mesmas estradas cruzam os três países no espaço de poucos metros. Por isso, Schuman começou a sonhar com uma Europa onde não fosse necessário passar fronteiras para andar de bicicleta.
Em 1992, na altura da primeira presidência portuguesa da Comunidade Europeia, entrevistei para o “Público”, o então chanceler da Universidade para a Paz, das Nações Unidas, que tinha sido companheiro e conterrâneo de Schuman. Robert Muller (1923-2010) era, como o seu amigo de infância, um homem que alimentou a sua vida ao serviço da paz entre os povos e os países.
Reproduzo aqui essa entrevista que, para lá dos pormenores datados, mantém ainda uma tremenda actualidade no que se refere ao papel da UE e da ONU.
(Foto: Schuman, à direita, com Jean Monet; reproduzida daqui)


Define-se como idealista maquiavélico, alguém que usa todos os meios para alcançar o ideal: quando, na segunda Guerra Mundial, viu companheiros da resistência a morrer, jurou lutar pela paz pela vida fora “e até depois da morte”. Quer mais autoridade para a ONU, tomando como modelo a Comunidade Europeia. Companheiro de Robert Schuman e de Jean Monnet, conta como a ideia de Europa surgiu por causa da bicicleta de Schuman...
Chanceler da Universidade para a Paz, desde 1989, Robert Muller, 69 anos, trabalha nas instituições das Nações Unidas praticamente desde a sua fundação. Defende que é chegado o momento de rever todo o sistema das Nações Unidas ou, pelo menos, dotar a organização de mais autoridade em relação a problemas vitais para o planeta. Esteve em Portugal recentemente, a participar no Congresso Internacional “Fátima e a Paz”.
P. — O professor Muller foi um dos que insistiu com Robert Schuman na ideia da Europa unida. Considera-se um dos pais dessa ideia?
ROBERT MULLER — O que se passou é que, depois da [Segunda Grande] Guerra, muitos alsacia-lorenos começaram a dizer: “Já fomos vítimas de tantas guerras entre a França e a Alemanha, isso deve acabar, é preciso reconciliar os dois países”. Robert Schuman foi empurrado para a via política por amigos meus que lhe disseram: “Você tem a responsabilidade de construir a unidade da Europa”. E ele aceitou o desafio.
Eu também saí desse grupo, e assumi como tarefa tentar reconciliar todas as nações, no seio das Nações Unidas. Parti para a ONU, passei lá 40 anos e devo dizer que estou surpreendido por termos evitado mais guerras e, sobretudo, uma guerra mundial. Depois de 1945, não tivemos nenhuma guerra mundial, o que foi extraordinário, numa situação em que ela poderia eclodir cada três meses.
P. — Mas o caminho para a unidade europeia não se ficou pela interpelação a Schuman. Recorda outros episódios?
R. — Lembro-me de uma pequena história, muito interessante. Jean Monnet sonhava com a reconciliação da França e da Alemanha e dizia que a única maneira de o fazer seria provando aos franceses e aos alemães que podiam trabalhar em conjunto em qualquer coisa de concreto.
Então, elaborou o plano da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço [CECA]. A Lorena tinha o minério de ferro e o Uhr, na Alemanha, tinha o carvão para fazer o coque com o qual se faria o aço. Esta Comunidade foi o início do processo que levaria à Comunidade Económica, agora também política — e deveria chegar mesmo à comunidade europeia espiritual, para preencher um outro sonho de Schuman.
Monnet chegou com esse plano ao escritório de Shuman e disse-lhe: “Vocês, os lorenos, que sofreram com as guerras entre a França e a Alemanha, têm que apoiar este plano, ao qual chamaremos Plano Schuman”.
P. — O plano acabou mesmo por ser concretizado...
R. — Sim. Mas Robert Schuman contou-me um dia, quando foi às Nações Unidas, a Nova Iorque, que, durante muito tempo teve esse plano na mesa sem saber o que fazer.
Acordou um dia a recordar-se que, quando era pequeno, cada vez que pegava na sua bicicleta, encontrava uma fronteira —  ele vivia no norte da Lorena, onde se juntam as fronteiras da Alemanha, da França e também do Luxemburgo. E ele jurou, ainda criança, que se alguma vez tivesse ocasião de suprimir as fronteiras, o faria. Foi a recordação desse episódio, disse-me ele, que o fez ir ao seu escritório e assinar o plano, sem ler mais nada. Veja lá como, às vezes, um grande plano do mundo pode depender do sonho de uma criança, do qual nos lembramos quando somos mais velhos.
P. — As suas propostas falam, agora, não só de uma Europa unida, mas de um governo único do mundo. Crê que isso é possível?
R. — O que eu peço é que, agora, uma vez terminada a guerra fria, os melhores espíritos e os governos se debrucem sobre o problema de como administrar melhor o mundo. Hoje, o que existe é um caos, cada país é soberano, cada um pode fazer o que lhe apetece. Ora, o planeta precisa de ser tratado e a humanidade deve ser considerada como uma só família humana.
O sistema de governo que temos hoje — legislativo, executivo e judicial — foi invenção de Montesquieu, há três séculos. Hoje, com cidades de vinte milhões de habitantes num país, regiões biológicas que se estendem por três ou quatro nações, ou grandes rios que colocam problemas entre vários países, talvez seja preciso mudar para qualquer outra coisa.
P. — Que caminhos concretos propõe?
R. — O primeiro passo é construir regiões económicas como se fez na Europa. Este movimento é já um progresso, mas é preciso integrar isso no quadro mundial. Caso contrário, em lugar de 175 governos soberanos, teremos cinco ou dez comunidades, também soberanas, com problemas entre elas.
P. — Mas esse não era o horizonte para o qual as Nações Unidas deveriam tender?
R. — Não, as Nações Unidas foram concebidas como o contrário de um governo mundial, não têm nenhuma autoridade, como sabe. O Conselho de Segurança tem uma pequena autoridade, mas que, mesmo essa, sempre foi quebrada pelo veto: há cinco países que podem dizer não e, quando isso acontece, não se passa nada de nada.
P. — Então propõe que a ONU dê um passo em frente e tome nas mãos a administração do planeta?
R. — Não exactamente. O primeiro passo é poder reflectir na transformação das Nações Unidas numa comunidade mundial. Se não se quer fazer isso, peguemos na ONU tal como existe e tentemos melhorá-la para poder gerir o mundo, através de conferências mundiais com poderes de decisão e de uma mudança do Conselho de Segurança — fazendo entrar outros países, que se tornaram importantes —, limitando ou mesmo suprimindo o direito de veto.
P. — Acha que os países actualmente com direito de veto vão aceitar?
R. — Mas isso não é razão para não o exigir. É preciso encostá-los à parede. Senão, eles continuarão a ser responsáveis do caos. A partir do momento em que se crie um verdadeiro governo mundial, com uma autoridade federal e uma descentralização que vá até ao município e ao indivíduo, podem colocar-se em comum recursos antes impensáveis. A Europa, por exemplo, já ultrapassou os Estados Unidos porque tem mais recursos comuns.
P. — Quais são os problemas “vitais” que pensa que deveriam ser entregues à autoridade das Nações Unidas?
R. — Para começar, uma aceleração do desarmamento, que já se está a fazer por todo o lado: começa a desmilitarização — na Nicarágua, houve uma redução de 94 mil para 27 mil militares, no Panamá acabou de se votar uma resolução para suprimir o exército, como já fez a Costa Rica; uma terceira década do desarmamento foi decidida pelas Nações Unidas; o Fundo Monetário Internacional e o Japão oferecem ajuda aos países que reduzirem o armamento; e os russos e americanos já começaram mesmo a destruir armas atómicas.
O segundo grande problema é o ambiente. O planeta está a sofrer e, daqui a 40 ou 100 anos, poderá tornar-se inabitável. A realização da Conferência do Rio confirma esta grande preocupação das Nações Unidas.
Depois, há que acelerar os esforços para reduzir o problema da sobre-população, especialmente nos países em vias de desenvolvimento. Éramos 2,5 mil milhões em 1951. Somos, agora, 5,5 mil milhões, seremos 6,1 mil milhões no ano 2000, e a população apenas parará nos 11 mil milhões, entre os anos 2100 e 2200.
O último desafio é ajudar os países pobres a ser menos miseráveis, pedindo também aos países ricos que vivam de um modo menos esbanjador. Damos uma má imagem aos povos pobres, porque eles admiram o Ocidente e, em lugar de beber sumos de fruta, querem coca-cola. Os países pobres podem ser mortos pelos países ricos, se continuarmos a vender o nosso género de vida como modelo.
P. — Com todas essas ideias, o senhor aponta para um mundo quase ideal. Como é que se define a si mesmo: utópico, visionário, optimista?
R. — Um idealista maquiavélico. Quer dizer: ter uma visão, um ideal, mas trabalhando de um modo maquiavélico para chegar a ele, utilizando a palavra, os escritos, a acção quotidiana, escrevendo a chefes de Estado, dando ideias. Sobretudo dar ideias, multiplicar as ideias e trabalhar pela paz nas pequenas coisas do dia e nas grandes coisas do mundo. Sabe? Durante a guerra, vi jovens mortos — eu estava na resistência francesa — e um dia havia quinze jovens à minha frente, mortos, depois de eu lhes ter prometido que os salvaria. Jurei a essa gente que consagraria a minha vida à paz. E estou contente por o fazer. Faço-o agora, durante a minha reforma na Costa Rica e espero mesmo fazê-lo depois da minha morte, se isso for possível.


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