Há 50 anos, a 4 de Setembro de 1963, morria
em Metz um dos “pais fundadores” da actual União Europeia, Robert Schuman. Aqui pode ler-se uma evocação da sua figura: “O que mais me tocou nele foi
a irradiação da sua vida interior: estávamos diante de um homem consagrado...
de uma total sinceridade e humildade intelectual, que apenas queria servir”,
como dizia André Philip (1902-1970), deputado socialista e membro do Governo
francês em diferentes ocasiões.
A ideia que Schuman foi alimentando, no
sentido de acabar com as fronteiras, foi forjada por pequenas questões
quotidianas, como a impossibilidade de circular de bicicleta. Quem já esteve na
zona de fronteira entre a França, a Alemanha e o Luxemburgo, sabe que as mesmas
estradas cruzam os três países no espaço de poucos metros. Por isso, Schuman
começou a sonhar com uma Europa onde não fosse necessário passar fronteiras
para andar de bicicleta.
Em 1992, na altura da primeira presidência
portuguesa da Comunidade Europeia, entrevistei para o “Público”, o então chanceler
da Universidade para a Paz, das Nações Unidas, que tinha sido companheiro e conterrâneo
de Schuman. Robert Muller (1923-2010) era, como o seu amigo de infância, um homem
que alimentou a sua vida ao serviço da paz entre os povos e os países.
Reproduzo aqui essa entrevista que, para lá
dos pormenores datados, mantém ainda uma tremenda actualidade no que se refere
ao papel da UE e da ONU.
Define-se como idealista maquiavélico, alguém
que usa todos os meios para alcançar o ideal: quando, na segunda Guerra
Mundial, viu companheiros da resistência a morrer, jurou lutar pela paz pela
vida fora “e até depois da morte”. Quer mais autoridade para a ONU, tomando
como modelo a Comunidade Europeia. Companheiro de Robert Schuman e de Jean
Monnet, conta como a ideia de Europa surgiu por causa da bicicleta de
Schuman...
Chanceler da Universidade para a Paz, desde
1989, Robert Muller, 69 anos, trabalha nas instituições das Nações Unidas
praticamente desde a sua fundação. Defende que é chegado o momento de rever
todo o sistema das Nações Unidas ou, pelo menos, dotar a organização de mais
autoridade em relação a problemas vitais para o planeta. Esteve em Portugal
recentemente, a participar no Congresso Internacional “Fátima e a Paz”.
P. — O professor Muller foi um dos que
insistiu com Robert Schuman na ideia da Europa unida. Considera-se um dos pais
dessa ideia?
ROBERT MULLER — O que se passou é que, depois
da [Segunda Grande] Guerra, muitos alsacia-lorenos começaram a dizer: “Já fomos
vítimas de tantas guerras entre a França e a Alemanha, isso deve acabar, é
preciso reconciliar os dois países”. Robert Schuman foi empurrado para a via
política por amigos meus que lhe disseram: “Você tem a responsabilidade de
construir a unidade da Europa”. E ele aceitou o desafio.
Eu também saí desse grupo, e assumi como
tarefa tentar reconciliar todas as nações, no seio das Nações Unidas. Parti
para a ONU, passei lá 40 anos e devo dizer que estou surpreendido por termos
evitado mais guerras e, sobretudo, uma guerra mundial. Depois de 1945, não
tivemos nenhuma guerra mundial, o que foi extraordinário, numa situação em que
ela poderia eclodir cada três meses.
P. — Mas o caminho para a unidade europeia
não se ficou pela interpelação a Schuman. Recorda outros episódios?
R. — Lembro-me de uma pequena história, muito
interessante. Jean Monnet sonhava com a reconciliação da França e da Alemanha e
dizia que a única maneira de o fazer seria provando aos franceses e aos alemães
que podiam trabalhar em conjunto em qualquer coisa de concreto.
Então, elaborou o plano da Comunidade
Europeia do Carvão e do Aço [CECA]. A Lorena tinha o minério de ferro e o Uhr,
na Alemanha, tinha o carvão para fazer o coque com o qual se faria o aço. Esta
Comunidade foi o início do processo que levaria à Comunidade Económica, agora
também política — e deveria chegar mesmo à comunidade europeia espiritual, para
preencher um outro sonho de Schuman.
Monnet chegou com esse plano ao escritório de
Shuman e disse-lhe: “Vocês, os lorenos, que sofreram com as guerras entre a
França e a Alemanha, têm que apoiar este plano, ao qual chamaremos Plano
Schuman”.
P. — O plano acabou mesmo por ser
concretizado...
R. — Sim. Mas Robert Schuman contou-me um
dia, quando foi às Nações Unidas, a Nova Iorque, que, durante muito tempo teve
esse plano na mesa sem saber o que fazer.
Acordou um dia a recordar-se que, quando era
pequeno, cada vez que pegava na sua bicicleta, encontrava uma fronteira — ele vivia no norte da Lorena, onde se juntam
as fronteiras da Alemanha, da França e também do Luxemburgo. E ele jurou, ainda
criança, que se alguma vez tivesse ocasião de suprimir as fronteiras, o faria.
Foi a recordação desse episódio, disse-me ele, que o fez ir ao seu escritório e
assinar o plano, sem ler mais nada. Veja lá como, às vezes, um grande plano do
mundo pode depender do sonho de uma criança, do qual nos lembramos quando somos
mais velhos.
P. — As suas propostas falam, agora, não só
de uma Europa unida, mas de um governo único do mundo. Crê que isso é possível?
R. — O que eu peço é que, agora, uma vez
terminada a guerra fria, os melhores espíritos e os governos se debrucem sobre
o problema de como administrar melhor o mundo. Hoje, o que existe é um caos,
cada país é soberano, cada um pode fazer o que lhe apetece. Ora, o planeta
precisa de ser tratado e a humanidade deve ser considerada como uma só família
humana.
O sistema de governo que temos hoje —
legislativo, executivo e judicial — foi invenção de Montesquieu, há três
séculos. Hoje, com cidades de vinte milhões de habitantes num país, regiões
biológicas que se estendem por três ou quatro nações, ou grandes rios que
colocam problemas entre vários países, talvez seja preciso mudar para qualquer
outra coisa.
P. — Que caminhos concretos propõe?
R. — O primeiro passo é construir regiões
económicas como se fez na Europa. Este movimento é já um progresso, mas é
preciso integrar isso no quadro mundial. Caso contrário, em lugar de 175
governos soberanos, teremos cinco ou dez comunidades, também soberanas, com
problemas entre elas.
P. — Mas esse não era o horizonte para o qual
as Nações Unidas deveriam tender?
R. — Não, as Nações Unidas foram concebidas
como o contrário de um governo mundial, não têm nenhuma autoridade, como sabe.
O Conselho de Segurança tem uma pequena autoridade, mas que, mesmo essa, sempre
foi quebrada pelo veto: há cinco países que podem dizer não e, quando isso
acontece, não se passa nada de nada.
P. — Então propõe que a ONU dê um passo em
frente e tome nas mãos a administração do planeta?
R. — Não exactamente. O primeiro passo é
poder reflectir na transformação das Nações Unidas numa comunidade mundial. Se
não se quer fazer isso, peguemos na ONU tal como existe e tentemos melhorá-la
para poder gerir o mundo, através de conferências mundiais com poderes de
decisão e de uma mudança do Conselho de Segurança — fazendo entrar outros
países, que se tornaram importantes —, limitando ou mesmo suprimindo o direito
de veto.
P. — Acha que os países actualmente com
direito de veto vão aceitar?
R. — Mas isso não é razão para não o exigir.
É preciso encostá-los à parede. Senão, eles continuarão a ser responsáveis do
caos. A partir do momento em que se crie um verdadeiro governo mundial, com uma
autoridade federal e uma descentralização que vá até ao município e ao
indivíduo, podem colocar-se em comum recursos antes impensáveis. A Europa, por
exemplo, já ultrapassou os Estados Unidos porque tem mais recursos comuns.
P. — Quais são os problemas “vitais” que
pensa que deveriam ser entregues à autoridade das Nações Unidas?
R. — Para começar, uma aceleração do
desarmamento, que já se está a fazer por todo o lado: começa a desmilitarização
— na Nicarágua, houve uma redução de 94 mil para 27 mil militares, no Panamá
acabou de se votar uma resolução para suprimir o exército, como já fez a Costa
Rica; uma terceira década do desarmamento foi decidida pelas Nações Unidas; o
Fundo Monetário Internacional e o Japão oferecem ajuda aos países que reduzirem
o armamento; e os russos e americanos já começaram mesmo a destruir armas
atómicas.
O segundo grande problema é o ambiente. O
planeta está a sofrer e, daqui a 40 ou 100 anos, poderá tornar-se inabitável. A
realização da Conferência do Rio confirma esta grande preocupação das Nações
Unidas.
Depois, há que acelerar os esforços para
reduzir o problema da sobre-população, especialmente nos países em vias de
desenvolvimento. Éramos 2,5 mil milhões em 1951. Somos, agora, 5,5 mil milhões,
seremos 6,1 mil milhões no ano 2000, e a população apenas parará nos 11 mil
milhões, entre os anos 2100 e 2200.
O último desafio é ajudar os países pobres a
ser menos miseráveis, pedindo também aos países ricos que vivam de um modo
menos esbanjador. Damos uma má imagem aos povos pobres, porque eles admiram o
Ocidente e, em lugar de beber sumos de fruta, querem coca-cola. Os países
pobres podem ser mortos pelos países ricos, se continuarmos a vender o nosso
género de vida como modelo.
P. — Com todas essas ideias, o senhor aponta
para um mundo quase ideal. Como é que se define a si mesmo: utópico,
visionário, optimista?
R. — Um idealista maquiavélico. Quer dizer:
ter uma visão, um ideal, mas trabalhando de um modo maquiavélico para chegar a
ele, utilizando a palavra, os escritos, a acção quotidiana, escrevendo a chefes
de Estado, dando ideias. Sobretudo dar ideias, multiplicar as ideias e
trabalhar pela paz nas pequenas coisas do dia e nas grandes coisas do mundo.
Sabe? Durante a guerra, vi jovens mortos — eu estava na resistência francesa —
e um dia havia quinze jovens à minha frente, mortos, depois de eu lhes ter
prometido que os salvaria. Jurei a essa gente que consagraria a minha vida à
paz. E estou contente por o fazer. Faço-o agora, durante a minha reforma na
Costa Rica e espero mesmo fazê-lo depois da minha morte, se isso for possível.
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