Livro
Porque Devemos Chamar-nos Cristãos, de Marcello Pera, é o primeiro título da
editora Frente e Verso, novo projecto editorial ligado aos jesuítas, cujo
aparecimento se deve saudar. Neste livro, Pera defende a ideia de que os liberais
e a Europa devem entender-se como cristãos.
A
nova marca editorial pretende ter uma presença significativa quer nos debates
culturais da sociedade portuguesa e europeia, através da perspectiva cristã,
entendendo esta como diversa; quer na formação teológica dos cristãos e de
outros interessados em reflectir e debater os “grandes temas do património
cristão”; e ainda no diálogo que faça a ponte entre “as várias expressões
culturais e a fé cristã”.
Uma
editora com estes objectivos deve saudar-se vivamente. Uma das graves
deficiências do catolicismo português é o seu baixíssimo nível cultural. Por
isso, a intenção de favorecer “a inteligência da fé cristã” é desafiadora.
Filósofo,
político italiano, senador desde 1996 e presidente do Senado italiano entre
2001 e 2006, Marcello Pera esteve no PS italiano com Bettino Craxi, foi depois
crítico dos partidos e apoiante dos juízes das “Mãos Limpas”, passou a condenar
os juízes e ligou-se à Forza Italia, de Berlusconi. Foi enquanto senador desse
partido que presidiu ao Senado, como recordou Marcelo Rebelo de Sousa na
apresentação do livro, feita terça-feira passada, dia 11, em Lisboa.
Inicialmente agnóstico, Pera converteu-se ao catolicismo, influenciado pelo
pensamento de Bento XVI, com quem o pensador tinha já publicado o livro Senza Radici (Sem raízes), dedicado à
questão das raízes cristãs da Europa.
O
prefácio deste Porque Devemos Chamar-nos
Cristãos é assinado precisamente por Bento XVI. No texto, o agora Papa
emérito escreve que “sem o enraizamento nos elementos essenciais da herança
cristã, o liberalismo perece por si próprio” e que “a democracia liberal, na
sua base filosófica, pressupõe esta herança e sustenta-se nela”.
Tal
como defendeu em várias outras intervenções, Bento XVI acrescenta: “A abertura
para a herança das diversidades culturais da humanidade pressupõe uma
identidade cultural própria; só assim poderão surgir fecundos encontros entre
culturas”.
Marcello
Pera assume-se como liberal europeu – ou seja, aquele que defende a “limitação
dos poderes governamentais”, a “autonomia da sociedade civil” e a “não
interferência do Estado no mercado”. Ou seja, assume-se como alguém que, na
Europa, pende para a direita política (por contraposição aos liberais
norte-americanos que, diz, pendem para a esquerda).
É
este ponto de partida que permite a Marcello Pera fazer um diagnóstico
cáustico, e muito acertado em vários pontos, da actual relação que predomina na
Europa, entre as sociedades e os estados, de um lado, e as igrejas,
nomeadamente a Igreja Católica, por outro. Por exemplo, quando diz que “o
laicismo não está a produzir uma convivência mais pacífica nas nossas
sociedades; muito pelo contrário”.
Convém
dizer, em abono da verdade, que Marcello Pera critica o seu próprio campo
político. Uma das suas teses centrais é esta: “Algumas das ideias que
prevalecem hoje entre os liberais – por exemplo, as de que a religião não
deveria emitir opiniões, que ela é irrelevante para a vida pública, que é um
obstáculo ou que se tornou obsoleta no mundo pós-moderno – são indefensáveis no
plano da teoria e desastrosas no da prática, especialmente na Europa, onde a
crise do liberalismo mais vivamente se sente.” (p. 32)
No
diagnóstico que faz, Marcello Pera aponta as suas críticas ao que denomina como
“equação laicista”. O que leva à afirmação do Estado liberal como laico, não
religioso, que exclui a religião do espaço público, que professa a religião da
laicidade. E critica a “Europa” que não refere as suas raízes judaico-cristãs
ou promove legislação que viola princípios cristãos. Ou, ainda, que impede um
Papa (Bento XVI) de falar numa universidade ou que esconde os seus símbolos
cristãos “porque não quer ofender os não crentes ou os membros de outras
religiões”.
Várias
destas críticas são justas. Mesmo se, por vezes, formuladas de forma enviesada:
por exemplo, não foi a “Europa” que proibiu Bento XVI de falar numa
universidade; foi o próprio Papa que optou por lá não ir, depois de conhecido o
protesto de um grupo de professores e estudantes da universidade La Sapienza, de
Roma.
Em
outros casos, essas críticas juntam também, numa mesma amálgama, realidades bem
diferentes: o que se passa em França é bem diferente do que se passa em
Portugal, Espanha e Itália, e ainda muito mais diferente de realidades como a
do Reino Unido, da Alemanha, dos países escandinavos, da Polónia, da Rússia ou
de vários países do antigo bloco de Leste.
Outro
problema é que Marcello Pera esconde ou esquece algumas causas importantes das
características do diagnóstico. Desde logo, o facto de terem sido as sociedades
liberais que geraram o monstro que ele próprio identifica – o que não é
estranho à própria concepção do liberalismo: ao acentuar e afirmar o papel do
indivíduo, as sociedades liberais europeias tenderam a menosprezar as formas
gregárias, entre as quais a comunidade religiosa. E ainda o facto de o
liberalismo e várias das suas afirmações (Marcello Pera chega a citar a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa) terem
surgido precisamente contra o poder e o espaço hegemónico que a Igreja e o
religioso tinham ocupado nas sociedades europeias.
Pera
critica que “entre os liberais se enraizou e desenvolveu um pensamento único
dominante”. Mas esquece que esse pensamento único é o que hoje domina as
sociedades europeias, no âmbito económico e financeiro – e precisamente ao
arrepio dos princípios fundamentais da doutrina social da Igreja. Aliás, o
autor ignora a importância do pensamento social católico e de muitos dos seus
princípios. Na apresentação do livro, Marcelo Rebelo de Sousa notava o facto de
a doutrina social da Igreja coincidir, em diferentes aspectos, muito mais com
correntes socialistas do que liberais. E, como também recordava, a salvação na
perspectiva cristã, “é comunitária”, sendo as bem-aventuranças “um caminho
político”.
O
autor do livro diz ainda que “a Igreja livrou a Europa dos que ameaçavam a sua
identidade (o Islão)”. Esquece Marcello Pera que o islão faz parte da
identidade europeia, tal como o cristianismo e o judaísmo – o islão esteve às
portas de Viena e ainda hoje a Bósnia e a Albânia reflectem a presença islâmica
em pleno coração da Europa; e esquece também que a maior construção política
dos nossos tempos – a União Europeia – foi pensada para acabar com a guerra
entre nações e povos que, ao longo da história, sempre se guerrearam entre si.
E que, por isso, a integração na UE de países como a Bósnia, a Albânia ou a
própria Turquia apenas estariam a corresponder à matriz original dos “pais
fundadores” da União – Schumann, Monet, De Gasperi e Adenauer, que a pensaram
assim exactamente porque eram cristãos.
Marcello
Pera critica ainda o multiculturalismo como “aplicação política do relativismo
nos dias de hoje” (p. 159) e diz que as “políticas de abertura das fronteiras”
e “o acolhimento de imigrantes” têm produzido “fricção social” e terras de
ninguém com uma autoridade própria” (p. 35). Mas estas críticas estão mal
direccionadas: o multiculturalismo falha quando é um remendo folclórico disso
mesmo e não uma verdadeiro diálogo cultural, no sentido de conhecer diferentes
expressões. E o acolhimento de imigrantes tem sido tudo – criação de guetos,
marginalização social e económica, desprezo cultural, etc. – menos isso.
Aliás,
na mesma linha, Pera diz que o diálogo inter-religioso, proposto pela declaração
Nostra Aetate, do Concílio Vaticano
II está “à partida”, condenado “ao fracasso”. Recorde-se que aquele texto tem
sido, desde então, saudado como um dos mais importantes do Concílio e um dos
que mais avanços significou na concepção da liberdade religiosa. Mas o que é
dramático é que Marcello Pera não entende que o diálogo só é verdadeiro diálogo
se se procurar entender a razão, a sabedoria, o modo de ser e de viver do
outro. Não para fazer igual, mas para o entender.
Pera
apresenta ainda um decálogo das razões para que os liberais se chamem cristãos;
e diz que metade dessas razões também deveriam identificar a Europa como
cristã, à semelhança da sociedade “homogénea e assinalada pelos valores
cristãos (como sucedera ao longo de séculos)” – ainda aqui, esquecendo que essa
homogeneidade foi, em muitos aspectos, nunca existiu. Mas, como diz na
introdução, “o que conta é se estamos, ou não, dispostos a debater os
problemas” – outra coisa que o liberalismo actual não nos deixa fazer. Façamos,
por isso, coro com Marcello Pera e debatamos os problemas.
Porque Devemos Chamar-nos
Cristãos – As Raízes Religiosas das Sociedades Livres
Marcello
Pera; prefácio de Bento XVI
Ed.
Frente e Verso
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