segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Um liberal no seu labirinto


Livro

Porque Devemos Chamar-nos Cristãos, de Marcello Pera, é o primeiro título da editora Frente e Verso, novo projecto editorial ligado aos jesuítas, cujo aparecimento se deve saudar. Neste livro, Pera defende a ideia de que os liberais e a Europa devem entender-se como cristãos.
A nova marca editorial pretende ter uma presença significativa quer nos debates culturais da sociedade portuguesa e europeia, através da perspectiva cristã, entendendo esta como diversa; quer na formação teológica dos cristãos e de outros interessados em reflectir e debater os “grandes temas do património cristão”; e ainda no diálogo que faça a ponte entre “as várias expressões culturais e a fé cristã”.
Uma editora com estes objectivos deve saudar-se vivamente. Uma das graves deficiências do catolicismo português é o seu baixíssimo nível cultural. Por isso, a intenção de favorecer “a inteligência da fé cristã” é desafiadora.
Filósofo, político italiano, senador desde 1996 e presidente do Senado italiano entre 2001 e 2006, Marcello Pera esteve no PS italiano com Bettino Craxi, foi depois crítico dos partidos e apoiante dos juízes das “Mãos Limpas”, passou a condenar os juízes e ligou-se à Forza Italia, de Berlusconi. Foi enquanto senador desse partido que presidiu ao Senado, como recordou Marcelo Rebelo de Sousa na apresentação do livro, feita terça-feira passada, dia 11, em Lisboa. Inicialmente agnóstico, Pera converteu-se ao catolicismo, influenciado pelo pensamento de Bento XVI, com quem o pensador tinha já publicado o livro Senza Radici (Sem raízes), dedicado à questão das raízes cristãs da Europa.

O prefácio deste Porque Devemos Chamar-nos Cristãos é assinado precisamente por Bento XVI. No texto, o agora Papa emérito escreve que “sem o enraizamento nos elementos essenciais da herança cristã, o liberalismo perece por si próprio” e que “a democracia liberal, na sua base filosófica, pressupõe esta herança e sustenta-se nela”.
Tal como defendeu em várias outras intervenções, Bento XVI acrescenta: “A abertura para a herança das diversidades culturais da humanidade pressupõe uma identidade cultural própria; só assim poderão surgir fecundos encontros entre culturas”.
Marcello Pera assume-se como liberal europeu – ou seja, aquele que defende a “limitação dos poderes governamentais”, a “autonomia da sociedade civil” e a “não interferência do Estado no mercado”. Ou seja, assume-se como alguém que, na Europa, pende para a direita política (por contraposição aos liberais norte-americanos que, diz, pendem para a esquerda).
É este ponto de partida que permite a Marcello Pera fazer um diagnóstico cáustico, e muito acertado em vários pontos, da actual relação que predomina na Europa, entre as sociedades e os estados, de um lado, e as igrejas, nomeadamente a Igreja Católica, por outro. Por exemplo, quando diz que “o laicismo não está a produzir uma convivência mais pacífica nas nossas sociedades; muito pelo contrário”.
Convém dizer, em abono da verdade, que Marcello Pera critica o seu próprio campo político. Uma das suas teses centrais é esta: “Algumas das ideias que prevalecem hoje entre os liberais – por exemplo, as de que a religião não deveria emitir opiniões, que ela é irrelevante para a vida pública, que é um obstáculo ou que se tornou obsoleta no mundo pós-moderno – são indefensáveis no plano da teoria e desastrosas no da prática, especialmente na Europa, onde a crise do liberalismo mais vivamente se sente.” (p. 32)
No diagnóstico que faz, Marcello Pera aponta as suas críticas ao que denomina como “equação laicista”. O que leva à afirmação do Estado liberal como laico, não religioso, que exclui a religião do espaço público, que professa a religião da laicidade. E critica a “Europa” que não refere as suas raízes judaico-cristãs ou promove legislação que viola princípios cristãos. Ou, ainda, que impede um Papa (Bento XVI) de falar numa universidade ou que esconde os seus símbolos cristãos “porque não quer ofender os não crentes ou os membros de outras religiões”.
Várias destas críticas são justas. Mesmo se, por vezes, formuladas de forma enviesada: por exemplo, não foi a “Europa” que proibiu Bento XVI de falar numa universidade; foi o próprio Papa que optou por lá não ir, depois de conhecido o protesto de um grupo de professores e estudantes da universidade La Sapienza, de Roma.
Em outros casos, essas críticas juntam também, numa mesma amálgama, realidades bem diferentes: o que se passa em França é bem diferente do que se passa em Portugal, Espanha e Itália, e ainda muito mais diferente de realidades como a do Reino Unido, da Alemanha, dos países escandinavos, da Polónia, da Rússia ou de vários países do antigo bloco de Leste.
Outro problema é que Marcello Pera esconde ou esquece algumas causas importantes das características do diagnóstico. Desde logo, o facto de terem sido as sociedades liberais que geraram o monstro que ele próprio identifica – o que não é estranho à própria concepção do liberalismo: ao acentuar e afirmar o papel do indivíduo, as sociedades liberais europeias tenderam a menosprezar as formas gregárias, entre as quais a comunidade religiosa. E ainda o facto de o liberalismo e várias das suas afirmações (Marcello Pera chega a citar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa) terem surgido precisamente contra o poder e o espaço hegemónico que a Igreja e o religioso tinham ocupado nas sociedades europeias.
Pera critica que “entre os liberais se enraizou e desenvolveu um pensamento único dominante”. Mas esquece que esse pensamento único é o que hoje domina as sociedades europeias, no âmbito económico e financeiro – e precisamente ao arrepio dos princípios fundamentais da doutrina social da Igreja. Aliás, o autor ignora a importância do pensamento social católico e de muitos dos seus princípios. Na apresentação do livro, Marcelo Rebelo de Sousa notava o facto de a doutrina social da Igreja coincidir, em diferentes aspectos, muito mais com correntes socialistas do que liberais. E, como também recordava, a salvação na perspectiva cristã, “é comunitária”, sendo as bem-aventuranças “um caminho político”.
O autor do livro diz ainda que “a Igreja livrou a Europa dos que ameaçavam a sua identidade (o Islão)”. Esquece Marcello Pera que o islão faz parte da identidade europeia, tal como o cristianismo e o judaísmo – o islão esteve às portas de Viena e ainda hoje a Bósnia e a Albânia reflectem a presença islâmica em pleno coração da Europa; e esquece também que a maior construção política dos nossos tempos – a União Europeia – foi pensada para acabar com a guerra entre nações e povos que, ao longo da história, sempre se guerrearam entre si. E que, por isso, a integração na UE de países como a Bósnia, a Albânia ou a própria Turquia apenas estariam a corresponder à matriz original dos “pais fundadores” da União – Schumann, Monet, De Gasperi e Adenauer, que a pensaram assim exactamente porque eram cristãos.
Marcello Pera critica ainda o multiculturalismo como “aplicação política do relativismo nos dias de hoje” (p. 159) e diz que as “políticas de abertura das fronteiras” e “o acolhimento de imigrantes” têm produzido “fricção social” e terras de ninguém com uma autoridade própria” (p. 35). Mas estas críticas estão mal direccionadas: o multiculturalismo falha quando é um remendo folclórico disso mesmo e não uma verdadeiro diálogo cultural, no sentido de conhecer diferentes expressões. E o acolhimento de imigrantes tem sido tudo – criação de guetos, marginalização social e económica, desprezo cultural, etc. – menos isso.
Aliás, na mesma linha, Pera diz que o diálogo inter-religioso, proposto pela declaração Nostra Aetate, do Concílio Vaticano II está “à partida”, condenado “ao fracasso”. Recorde-se que aquele texto tem sido, desde então, saudado como um dos mais importantes do Concílio e um dos que mais avanços significou na concepção da liberdade religiosa. Mas o que é dramático é que Marcello Pera não entende que o diálogo só é verdadeiro diálogo se se procurar entender a razão, a sabedoria, o modo de ser e de viver do outro. Não para fazer igual, mas para o entender.
Pera apresenta ainda um decálogo das razões para que os liberais se chamem cristãos; e diz que metade dessas razões também deveriam identificar a Europa como cristã, à semelhança da sociedade “homogénea e assinalada pelos valores cristãos (como sucedera ao longo de séculos)” – ainda aqui, esquecendo que essa homogeneidade foi, em muitos aspectos, nunca existiu. Mas, como diz na introdução, “o que conta é se estamos, ou não, dispostos a debater os problemas” – outra coisa que o liberalismo actual não nos deixa fazer. Façamos, por isso, coro com Marcello Pera e debatamos os problemas.

Porque Devemos Chamar-nos Cristãos – As Raízes Religiosas das Sociedades Livres
Marcello Pera; prefácio de Bento XVI



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