O padre António Pedro em 2015, no Hospital de Santa Maria (Lisboa);
actualmente, exerce funções de capelão hospitalar no Hospital de Santa Marta
e Maternidade Alfredo da Costa, também em Lisboa
A criadora da noção de cuidados
paliativos dizia que “quando já não há nada a fazer, está tudo por fazer”. O
padre António Pedro Monteiro, 31 anos, assistente religioso no maior hospital
do país, diz que, perante o sofrimento, importa construir um caminho que
integre a fragilidade e devolva a saúde pelo perdão de si mesmo e dos outros. E
o padre Augusto Cima, 78 anos, manifesta-se muito crítico na falta de
profissionalismo no acompanhamento dos doentes feito pelas estruturas católicas
(o Dia Mundial do Doente foi assinalado Domingo passado) – ver no final ligação
para uma entrevista na TSF.
Quando chega junto de uma das
camas, o padre António Pedro ajoelha. Vai conversar com uma doente que chamara
alguém da capelania do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Durante dois ou três
minutos permanece ajoelhado, pouco mais do que escutando, entre silêncios.
O pouco que vai dizendo aponta
para o presente e o futuro, para a alta que estará próxima, depois de oito meses
de internamento, tratamentos e outros sofrimentos. A cena inverte o quadro
habitual. “Importa mais escutar Deus que está no outro do que catequizar sobre
Deus ou catequizar o próprio Deus”, responderá, quando perguntado sobre tal
gesto.
Nascido a 12 de Setembro de 1983,
em Vizela (diocese de Braga), António Pedro Monteiro é padre do Sagrado Coração
de Jesus (dehoniano) desde 26 de Setembro de 2010. Faz parte da equipa de três
padres e um diácono que, diariamente, presta serviço de assistência religiosa, em
nome da Igreja Católica, no maior hospital do país.
Uma semana antes de ter sido
desafiado a fazer esse trabalho, em 2012, estava António Pedro na Madeira.
Contactara todas as escolas da ilha, trabalhava num seminário, numa escola de
enfermagem e num lar de idosos. Ao fim de dois anos, sentia que começava a
“coser várias pontas”. Foi quando o superior provincial lhe confidenciou a
possibilidade de um novo projecto pastoral: o patriarca D. José Policarpo
pedira um capelão em Santa Maria, mas não sabia como responder. Nesse momento,
nem um nem outro imaginavam que, três semanas depois, o diálogo ganharia um
sujeito com António Pedro.
O outro como lugar teológico
Aqui está agora, de bata branca,
acorrendo a quem chama – chegam à capelania uma média de 60 pedidos de
assistência espiritual por semana. “No hospital, temos de ser não só antenas,
mas patenas”, foi o que aprendeu na formação. “Se olhamos a pessoa doente como
coitadinha e carente do que tenho para dizer-lhe, encaixamos no modelo anterior
de assistência, que se propunha dar sacramentos e levar uma catequese
preparada. Se trato a pessoa com dignidade e singularidade, e tento ver nela o
rosto de Jesus, como propõe o texto de Mateus 25, então aprendemos que Deus
está nessa fragilidade.” Mais do que ir junto dessa pessoa para falar de Deus,
acrescenta, importa ter presente que se vai ter com o próprio Deus de Jesus: “A
mim o fizestes.”
O outro como lugar teológico. Esse
é um princípio muito negligenciado, diz. E que colide mesmo com modelos de
formação do clero: “Os padres são formados para a liderança, para ter a última
palavra.” Tudo ao arrepio do que é necessário no hospital. “Se não deixarmos
esse modelo de autoridade, não conseguiremos a empatia necessária para que o
doente se abra e inicie um processo de construção de saúde total, não só
biológica, mas biográfica. Nem aprenderemos que o Deus de Jesus Cristo também é
impotente e frágil como nós.”
É importante ver a pessoa para lá
da doença: “Já chega ter uma instituição centrada na saúde dos órgãos. A pessoa
é bem mais do que isso, tem uma vida inteira para narrar.” E isso não
acontecerá se apenas se olhar para a doença como se fosse o centro da vida da
pessoa doente.
O dia do padre António Pedro é
passado entre a capelania (onde diariamente celebra a eucaristia), os
corredores e as mais de mil camas das enfermarias. A escuta do outro – doentes,
mas também funcionários, médicos, enfermeiros, auxiliares, familiares dos
doentes – e a atenção à fragilidade de cada pessoa é o seu ministério
essencial.
Numa das homilias recentes,
comentava o episódio narrado por São Marcos, em que Jesus é chamado para curar
a filha de Jairo e, no caminho, cura a mulher que tinha um fluxo de sangue:
“Jesus age entre duas personagens femininas, entre uma idosa doente e uma adolescente
moribunda… o trânsito de Jesus acontece no cúmulo da fragilidade (...) A
re-lação, esse processo de não desistirmos dos laços, a fé, devolve saúde,
devolve a vida na sua inteireza e coloca-nos no lugar onde Jesus gosta de
estar: entre frágeis; entre semelhantes.”
(Algumas das suas homilias
publica-as num blogue;
por vezes, decide dar o púlpito aos Padres da Igreja. Como foi o caso de São
João Crisóstomo, no final de Fevereiro, sobre a reconciliação: “Faz assim com
os teus irmãos: logo que vejas que eles estão separados da tua amizade,
apressa-te tu a tentar a reconciliação.”)
O fascínio pela Bíblia
O padre António Pedro presidindo à eucaristia na capela do Hospital de Santa Maria
O evangelista Marcos não surge
aqui por acaso: “Gosto muito de ler Lucas e Marcos”, diz António Pedro. “Marcos
é o evangelho da periferia, que demora em lugares fora do centro: Jesus escolhe
morar em Cafarnaum, a Galileia praticamente passa ao lado da grande história de
Israel.” À volta de Jesus, aparecem ainda, no relato de Marcos, os que estão
“fora do centro: aleijados, cegos, paralíticos, todos os que não cumprem as
prescrições alimentares nem as regras do culto.”
Ou seja: “Jesus escolhe e permite
que o siga um grupo de desclassificados, sem lugar na cidade, na sociedade e na
religião, em clara oposição a uma religião pura.” Mas, dois mil anos depois,
“conseguimos converter o sonho de Jesus numa Igreja pura, muitas vezes em clara
oposição a quem julga desclassificado”.
O fascínio pelo texto bíblico
nasceu cedo: ainda criança, António
Pedro acompanhava um tio, monge em Singeverga, que viajava pelo país,
acompanhando grupos do Renovamento Carismático. “Ele incentivava as pessoas a
ler a Bíblia e os documentos do Concílio Vaticano II.” António Fernandes, o tio
monge, tinha uma forma de estar e celebrar próxima das pessoas que o sobrinho
admirava. “Quis sempre ser como ele.” Aos seis anos, já dizia a toda a gente
que queria ser padre. Os pais, ambos operários fabris, foram-se habituando à
ideia...
A segunda escolha viria aos 12
anos, quando os dehonianos, num trabalho vocacional na escola que frequentava,
o convidaram. A congregação foi sendo uma descoberta e uma integração natural,
diz. “A vantagem é não termos um carisma vinculado a uma obra, mas estarmos
disponíveis para servir onde for mais necessário, de forma cordial e próxima.”
O próprio fundador, o padre Léon
Dehon (1843-1925), apesar de ter bebido do ultramontanismo francês, “percebeu a
industrialização, a necessidade de cuidar dos operários, das crianças e
famílias, apoiar os marginalizados e de ir além do assistencialismo,
construindo com os patrões reflexão e modos de gestão com os critérios do
pensamento social da Igreja”.
Na Perfectae Caritatis, o decreto do Vaticano II sobre a renovação da
vida religiosa, António Pedro lê “frases ainda programáticas e não
concretizadas: os religiosos devem voltar às fontes do evangelho e à intenção
do fundador, que são sempre um ir para a margem”.
Contesta, por isso, ideias feitas:
há poucas vocações? “Na Europa, o número é inferior a outros tempos, talvez por
não levarmos a sério o estilo de vida ‘marginal’. A vida religiosa nasce como
uma radicalidade. Não tenho de andar de tanga, mas estar num hospital pode ser
um sinal dessa radicalidade.”
“A vida comunitária é um grande
desafio. É o maior tesouro mas também a maior penitência”, diz uma frase que
ouviu. E dá exemplos: ajustar feitios e sonhos, modos de pensar a teologia,
formas de entender o outro – como “alguém a converter ou alguém que é o rosto
de Jesus”... Por isso, os desajustes ou os adquiridos são quotidianos – como
nas famílias. “O desafio é ser cada um a criar comunidade”, contra a solidão
que hoje atravessa tantas casas de vida religiosa: “Por vezes, há gente mais
amada fora da sua comunidade do que dentro.”
É essa solidão radical, extrema,
que se encontra no hospital. Aí, a imagem que cada pessoa tem de Deus fica mais
viva: a doença ainda é, para muitas pessoas, sinal de que Deus não gosta delas;
para outras, é um presente que Deus dá aos seus amigos para os purificar, como
se o Deus-Amor amasse só os purificados.
Cita, por isso, Arnaldo Pangrazzi,
autor italiano que tem trabalhado na pastoral da saúde: “Debaixo da roupa
estamos todos nus.” E explica: “Mais dos que buscar razões ou culpados da
doença, importa reconhecermo-nos frágeis, carentes de outros, à semelhança do
Deus de Jesus. Se a doença inaugura um processo de perdas, de abandono por
Deus, no hospital é possível perceber essa ‘nudez’ comum a cuidadores e
cuidados e anterior a qualquer religião. E construir um caminho de sentido, de
integração da fragilidade, de devolução de saúde pela inteireza da vida, de
perdão de si e de outros.”
Cicely Saunders, a “mãe” dos
cuidados paliativos, dizia que “quando já não há nada a fazer, está tudo por
fazer”. Para António Pedro, está tudo por fazer.
(Este texto foi publicado no
número 357 da revista Bíblica, correspondente a Março-Abril 2015)
Augusto Cima: “A eutanásia é
suicídio assistido”
Na TSF, sábado passado, Manuel
Vilas Boas entrevistou o padre Augusto Cima, 78 anos. Monge beneditino, que
actualmente vive como eremita, é autor do livro Cuidar, Curar, Fazer Viver – A Missão da Igreja no Hospital (ed. Guerra e Paz) e capelão dos hospitais
Curry Cabral e Miguel Bombarda, tendo já trabalhado de perto com doentes de
sida e com pessoas com problemas mentais.
Crítico da falta de profissionalismo
na pastoral da saúde, Augusto Cima rumou, do mosteiro de
Singeverga, para a diocese do Luso, no sudoeste de Angola, onde esteve como
missionário. Trabalhou também na pastoral juvenil, ao mesmo tempo que fazia um
curso de Sociologia e Estudos Clássicos.
Sobre o debate acerca da eutanásia
diz que devem distinguir-se várias formas de acompanhar os doentes: “Eutanásia é
suicídio assistido” e hoje misturam-se coisas diferentes, explica.
A entrevista pode ser ouvida na íntegra aqui.
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