A carroça da Bíblia. “Bible Van. Built of style of cart from Alemtejo province”.
[s/d].
(In Photographs. Portugal – BSA/F2/5/2/7/7 – BFBS Archives – Cambridge
University Library)
O papel da Sociedade Bíblica na construção da liberdade religiosa
em Portugal durante a Monarquia Constitucional e a I República é o título do trabalho de Rita Mendonça Leite, vencedor do Prémio
Liberdade Religiosa 2017, que ontem foi entregue no Ministério da Justiça, em
Lisboa.
No trabalho (cuja conclusão se reproduz
mais à frente), a investigadora do Centro de Estudos de História Religiosa
(CEHR), da Universidade Católica Portuguesa, pretende mostrar como a
consolidação institucional da Sociedade Bíblica em Portugal e a sua integração
nas dinâmicas religiosas e culturais do país, ao longo do século XIX e XX, se
estruturaram sobre a actividade da divulgação bíblica. Um trabalho cujo início coincidiu com a Guerra Peninsular e as Invasões Francesas.
Uma tal actividade, resume a
investigadora, “definiu a instituição como um agente de mudança na sociedade
portuguesa”, quer na “dinamização do processo de diferenciação religiosa em
curso no país”, quer também na “promoção de um debate amplo, onde elementos
antropológicos, teológicos e políticos se cruzaram”.
O projecto de difusão da Bíblia,
liderado pela Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira (SBBE) em Portugal, reflectia
também “um conflito” que traduzia “o modo como a instituição progrediu no país
enquanto expressão da modernidade contemporânea”. Reflectia também o modo como a
Bíblia era “um espaço de confrontação onde os conceitos de Autoridade e de Liberdade, na sua variedade semântica, detinham
um protagonismo fundamental”.
“Colocando o problema fundamental da Autoridade da Bíblia, a SBBE
acabou inevitavelmente por se ver confrontada com o problema da autoridade no
seu sentido mais estrito e concreto”, escreve ainda a investigadora do CEHR. Ou
seja, esse confronto chegou também à relação “com as diferentes autoridades
que, no seio da sociedade portuguesa, intervinham nos campos da regulamentação
do religioso e, num sentido mais lato, na discussão sobre a liberdade religiosa
e na ordenação societária”.
O prémio, que ainda atribuiu duas
menções honrosas, é promovido pela Comissão de Liberdade Religiosa, que em
breve promoverá a publicação do texto vencedor. Na acta do júri, destaca-se que o processo de selecção teve
em conta, essencialmente, aspectos como “a focagem no problema da liberdade
religiosa na sociedade portuguesa; o grau de pericialidade das metodologias
utilizadas; o contributo para a construção do conhecimento; e o impacto social
da investigação/reflexão”.
Na mesma resolução, o trabalho de
Rita Mendonça Leite é considerado como “original e minucioso sobre fontes
primárias”. Mas o júri destaca ainda “a competência da sua abordagem multiscópica
a um fenómeno de diversificação religiosa na sociedade portuguesa”, como se
pode ler na acta do júri.
Reproduz-se a seguir o capítulo de conclusão
do trabalho vencedor:
A dinâmica de circulação bíblica como parte integrante e instância
ativa na construção da liberdade religiosa em Portugal
Texto de Rita Mendonça Leite
Inevitavelmente condicionada pela
agitação social e dificuldades financeiras que o país enfrentou durante a
primeira fase da República, a atividade de circulação bíblica acabaria por
conhecer na década de 20 [do século XIX] um verdadeiro ponto de viragem, conjugando
a capacidade de trabalho e eficácia da equipa de colaboradores com o
potenciamento de um processo de recomposição sócio-religiosa que procurou
precisamente contrariar aquele ciclo de turbulência política continuada e que
resultou num crescimento exponencial das vendas da SBBE em Portugal (A Agência
da SBBE em Portugal fez circular desde o ano do seu estabelecimento, em 1864, e
até 1940, 2 951 211 volumes bíblicos, sendo que se juntar a este número a
circulação pré-Agência, se atingem os 2 976 979 exemplares difundidos. Entre
1920 e 1940 foram feitos circular 2 089 356 daqueles volumes, isto é, 70% do
total).
Sendo claro que o entusiasmo
inicial da SBBE em relação à I República portuguesa foi progressivamente
matizado pela aplicação dos sucessivos programas governamentais e pelo impacto
social e efeitos culturais dos mesmos, subsistiu sempre como dominante no
discurso dos representantes da instituição em Portugal uma avaliação positiva
das alterações substanciais promovidas pelo novo regime, reconhecidas como
favorecendo em termos gerais a dinâmica da Sociedade Bíblica no país, o que
acabou por se comprovar também naquele aumento extraordinário dos números da
circulação.
Na perspetiva da SBBE, essa
inter-relação não se resumia aliás à promulgação da liberdade religiosa e aos
efeitos benéficos que esse reconhecimento teve no âmbito da dinâmica de difusão
bíblica, estendendo-se também às consequências negativas que o processo
revolucionário gerou, na medida em que a crise política e financeira acabava por
potenciar a aproximação dos portugueses em relação a núcleos de apoio
alternativos, designadamente os universos bíblico e evangélico, razão pela qual
a SBBE concluía em 1926: «The country has continued to suffer from economic
depression and violent political disturbances. In spite of this (and perhaps
partly because of it) the circulation of the Scriptures in Portugal has reached
a height never before attained and never, a few years ago, thought possible.» (The Hundred and Twenty-Second of the BFBS. London:
The Bible House, 1926, p.49).
De facto, mais do que
simplesmente beneficiar de medidas concretas proporcionadas pelas novas
condições políticas, a instituição procurou ela própria, adaptar-se às novas
circunstâncias, capacitando-se com novos recursos, expandindo os seus circuitos
de intervenção e ampliando a sua área de influência, dinamizando também a sua
própria recomposição e demonstrando uma capacidade de adaptação que, ao fim de
mais de um século de trabalho no país, era reforçada como uma das suas
principais marcas distintivas e, na verdade, como a sua grande mais-valia. Com
a I República, tal como com a Monarquia Constitucional, a Sociedade Bíblica não
se desenvolveu pois num ambiente de liberdade plena ou isenta de obstáculos,
mas confrontou-se, de facto, com as circunstâncias que lhe permitiram atingir
um grau de progressão – quer ao nível das vendas, quer ao nível da sua
influência sociocultural – que nunca tinha atingido no seu percurso no nosso
país.
A análise do percurso da
Sociedade Bíblica em Portugal permite constatar que a realidade sócio-religiosa
do Portugal do século XIX e primeira metade dos século XX é bastante mais
complexa do que muitas vezes se procura demonstrar, expondo uma experiência
social e cultural e múltiplas experiências pessoais que potenciaram um conjunto
de fraturas, mas também de consensos, que dinamizaram o longo processo de
secularização em curso, deslocando e recontextualizando na sociedade portuguesa
um conjunto de elementos e pontos de discussão anterior ou simultaneamente
associados a outros protagonistas e dinâmicas religiosas.
No decorrer do processo de
construção da sociedade liberal em Portugal, que coincide cronologicamente com
o da implantação da Sociedade Bíblica no país, o conceito de Verdade, tão caro
àquela instituição e tão abertamente colocado pela sua atividade difusora foi
acompanhado, e em certos contextos confrontado, com o conceito da Autoridade,
mas também com as categorias da Liberdade e da Legitimidade. Neste campo, a
dinâmica de recomposição que a sociedade portuguesa experienciou ao longo do
séc. XIX e princípios do séc. XX foi também dinamizada precisamente pelo facto
da noção de legalidade deixar progressivamente de ser, para alguns sectores da
sociedade, sinónimo de legitimidade, denotando-se ao longo daquele longo
período o desenvolvimento de atitudes de diferenciação entre aquilo que era
considerado legal e o que se entendia como sendo legítimo. Nesse sentido e
nesse contexto, a Sociedade Bíblica afirmou-se como instância ativa de regulação
da sociedade portuguesa e como parte integrante do processo de dinamização e
consolidação da liberdade religiosa em Portugal.
Colportores
(distribuidores de literatura religiosa) António Gil e Emílio Ferrette (?),
junto do Depósito Bíblico da SBBE, na Praça
Luís de Camões em Lisboa;
(“Gil and Ferrari [sic]. BFBS Colps. And Bible Cart. Lisbon”. [s/d]. In
Photographs.
Portugal – BSA/F2/5/2/7/7 – BFBS Archives – Cambridge University
Library)
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