O tema do acesso aos sacramentos
por parte de católicos divorciados que voltaram a casar tem provocado algum
debate nos média nacionais. Aqui se publicam um artigo do jornalista Joaquim
Franco e as ligações para alguns textos surgidos nos últimos dias (indicadas
no final do artigo).
Em consciência – reflexão
alternativa sobre a nota do patriarca
Texto de Joaquim Franco
(co-autor do livro Papa Francisco A Revolução Imparável)
Agora, que a poeira assentou,
podemos e devemos reanalisar as (des)orientações. O cardeal-patriarca de Lisboa
podia ter feito um documento sobre o acolhimento condicional e
condicionado dos divorciados recasados sem a polémica referência à
“abstinência sexual”? Podia. Mas fê-lo, à semelhança do que fizeram outros
bispos, embora com um contexto que faz a diferença.
1. As orientações do bispo
de Lisboa refletem também o seu pensamento. Antes do sínodo
da família, entrevistado na SIC, o cardeal-patriarca de Lisboa disse que não
via como seria possível os divorciados recasados voltarem aos sacramentos.
Pois, se o sacramento do matrimónio é indissolúvel, assim se mantém, e a
situação de recasados coloca-os em violação da integridade sacramental na
Igreja.
Depois do sínodo, conhecida já a
exortação Amoris Laetitia (AL), em que Francisco abre a porta do
discernimento como reentrada para os sacramentos, Manuel Clemente diria noutra
entrevista à SIC que aguardava que o Papa esclarecesse o que queria dizer.
Conferências episcopais e dioceses começavam a dar as orientações a partir da
exortação do Papa, mas Lisboa ainda precisava de esclarecimentos, que acabariam
por ser dados pela interpretação e orientações dos bispos argentinos,
legitimadas explicitamente pelo Papa, nas quais o patriarca diz que se baseia.
As orientações de Lisboa não
deixam de ir ao encontro da abertura apontada na Amoris Laetitia – o patriarca está também a
ser criticado pela ala mais conservadora e anti-Amoris, o que não deixa de ser irónico –, e
relembram a argumentação de João Paulo II na exortação Familiaris Consortio, de 1981.
Francisco recorda as anteriores
propostas de João Paulo II para dar força doutrinária à nova abordagem que
propõe na AL. Seria necessário
repeti-las no documento de Lisboa nos termos em que foram feitas? As
orientações do patriarca refletem as possibilidades de readmissão de católicos
divorciados recasados aos sacramentos, mas por via de um processo que se
afigura aparentemente mais rigoroso. Manuel Clemente faz questão de sublinhar o
“caráter restrito (em certos casos) e condicional (poderia)” destas
situações...
2. Quantos católicos
divorciados recasados viverão atormentados e com peso de consciência? Muitos
são já acompanhados por um padre ou outra pessoa da comunidade referenciada
para tal, e que, de forma discreta, sem grandes alaridos, praticam o princípio
da misericórdia.
É precisamente no plano da consciência
que as orientações de Lisboa suscitam perplexidade. Diz o documento da diocese
que “não pode ser senão o confessor, a certa altura, na sua consciência, depois
de muita reflexão e oração, a ter de assumir a responsabilidade perante Deus e
o penitente, e pedir que o acesso aos sacramentos se faça de forma reservada”.
Exigindo-se que seja um padre a
tutelar a decisão final, sobrepondo a consciência do “confessor” à consciência
do próprio indivíduo, pode não se permitir um verdadeiro e livre discernimento.
Até porque, num caminho de discernimento, que não tem fórmulas exatas –
“dinâmico”, pede o Papa, à maneira dos jesuítas –, é insondável o
potencial renovador da retoma do sacramento da
eucaristia (ou comunhão) naquele que acredita e a ela recorre.
Estamos no domínio da consciência,
que, sendo de fé, é formada, mas não deixa de ser individual. E se há revolução
na proposta de Francisco é precisamente porque reafirma o primado da
consciência.
Na AL, “o Papa fala 33 vezes
de «consciência», recorre 28 vezes ao termo «discernimento» e conjuga seis
vezes o verbo «discernir»” (como se regista no livro Papa Francisco - A
Revolução Imparável, 2017). Nunca um documento papal sobre a família tinha
valorizado tanto o papel da consciência. Há um caminho individual a fazer por
via do discernimento para a formação da consciência, com o apoio e empenho da
comunidade, a começar pelo padre, mas sem que a pessoa fique sujeita a uma
tutela condicionante.
O Papa realça que cada caso é um
caso, deve ser analisado no passado e no presente da nova vida em
casal. No nº 303 da exortação, apela a que a consciência das pessoas seja
“melhor incorporada na práxis da Igreja em algumas situações que não
realizam objetivamente” a conceção de matrimónio católico. Em derradeira
instância, é a pessoa, num processo de acompanhamento e discernimento, e
em consciência, que reentra na vida sacramental. Não há um tutor mandatado para
avaliar consciências, mas para ajudar a discernir. Isto implica, como se
percebe, uma grande responsabilidade dos pastores para a integração e
convivência nas comunidades de fiéis, que têm de ser prioritariamente
promotoras de um discernimento ativo, como forma de estar na
fé e de viver a misericórdia.
3. A polémica gerada obriga-nos a
retomar um antigo debate em contexto religioso. Porque é que se insiste em
limitar a avaliação de toda uma vida relacional e sentimental às relações
sexuais? É porventura essa a noção evangélica de Amor conjugal? Ou a
sexualidade física é a parte de um todo, relevante, central até, mas uma parte
do todo? Se, para avaliar a coerência sacramental na Igreja, se reduz uma
leitura do Amor conjugal à (in)capacidade de abstinência sexual, melhor será
negar já o afeto e a intimidade como integrantes do ser humano e expressões do
divino. O Papa Francisco não propõe que um casal abdique da sua vida
sexual. Leia-se o capítulo da Amoris Laetitia em que o Papa fala
do erotismo como “dom de Deus”.
Propor a um casal que abdique de
ter uma vida sexual normal é tão insólito quanto pedir a
um padre que abdique de ler o evangelho na eucaristia ou
de consagrar o pão e o vinho no altar.
Faltará o espaço e o tempo para
uma certa Igreja sair mais da zona de conforto, como sugere o Papa das
periferias, viver e conviver com outras possibilidades de felicidade familiar,
onde o Amor vivido, fértil e exemplar, reflete a experiência genuína de Deus
em muitas famílias reconstruídas após um divórcio.
O divórcio é uma tragédia, disse
alguém da hierarquia católica, mas também evita muitas tragédias, permite
reconstruir caminhos e refazer pontes para a felicidade conjugal, afetiva,
íntima, física e sentimental, corpo e alma, partilha e dependência, dimensões
que um celibatário dificilmente conseguirá entender.
Fechada na redoma (in)segura dos
bons costumes, há uma parte da Igreja que paira sobre o mundo real, ou, dito de
outra forma, aborda o real pela teoria. Antes segurar o rebanho que está à
beira do que correr o risco de as ovelhas saírem do redil.
É esta a grande diferença entre a
Igreja de Francisco – em saída, do risco, do “sim” – e a Igreja que lhe resiste
– fechada, autoreferencial, do “não”.
Uma derradeira nota. O tabu
sexual não é um exclusivo da religião. Mas amplia-se quando abordado num
contexto religioso construtor e fixador de valores que fazem cultura e são difíceis
de alterar.
A religião – Igreja católica, neste
caso – tem dificuldade em lidar com a sexualidade. E a sofreguidão
mediática não consegue conter-se diante de certos
temas. Igreja e sexo é um binómio mediaticamente sedutor, a
exigir dos pastores, sobretudo dos que têm maior exposição, parcimónia nos (pre)conceitos
e assertividade das palavras. Para que não se fique apenas pela rama das
emoções...
Alguns textos, entre outros, publicados nos
últimos dias:
Tal como no tempo de
Jesus Cristo, há quem prefira que o Papa, os bispos e os padres digam o que se
pode ou não se pode fazer. Compreende-se, porque se há coisa difícil de fazer é
cada um ter de pensar, discernir e encontrar soluções justas para a vida. Esse
era o medo dos fariseus, que no episódio da mulher adúltera não compreendiam
como é que Jesus superava a dicotomia entre a Lei e a misericórdia.
As diferentes opiniões de responsáveis
católicos em várias dioceses do país, num texto do Público e num outro do Diário de Notícias.
É uma alínea, entre outras.
Depende da consciência pessoal, devidamente acompanhada, como é próprio no que
diz respeito à Igreja.
É o casal quem deve
decidir a sua vida íntima. Nenhum padre, nenhum bispo, ninguém se pode
intrometer.
Um artigo de Leonor Xavier, no
Público, sobre a carta pastoral do arcebispo de Braga:
A surpresa marcou o recente pronunciamento do arcebispo
primaz de Braga sobre as inéditas e inovadoras reformas que vai empreender na sua
arquidiocese, de acordo com o pensamento do Papa, em face da crise que abala as
famílias e os casais, na realidade do nosso tempo. Esta abertura da Igreja é um
sinal de transformação importante no plano da espiritualidade para os muitos
leigos e consagrados que a têm como causa e esperança de que se concretizem, em
pleno, as conclusões do Concílio Vaticano II.
A crónica de João Miguel Tavares,
no Público, dedicada também à nota do patriarca de Lisboa:
O que é mais paradoxal nesta
proposta é ela nascer de uma vontade enorme de abertura demonstrada pelo Papa.
Francisco tem-se esforçado por aproximar as práticas da Igreja do espírito dos
Evangelhos – se Cristo não veio para os justos, mas para os pecadores, como
justificar que a Igreja recuse a confissão a quem falhou um casamento? Se a
Eucaristia não é o lugar onde se reúnem os cristãos perfeitos, mas todos
aqueles que procuram a misericórdia de Deus, como negar a comunhão a quem tenta
reconstruir a vida?
A crónica de Vicente Jorge Silva,
no Público:
Como cidadão de um país de maioria
confessionalmente católica (eu próprio fui baptizado, fiz a primeira comunhão
e, durante a adolescência, fui crente convicto) não me considero alheio à
intensa polémica suscitada pela posição do bispo de Lisboa, alvo de muitas
críticas, por vezes acerbas, de membros do clero e personalidades de vários
quadrantes.
Um artigo de Helena Margarida
Araújo no blogue Dois Dedos de Conversa:
Nos tempos que
correm, numa sociedade em que ir à igreja deixou de ser um acto com carácter de
obrigação social e se tornou cada vez mais uma escolha voluntária nascida da
sede de espiritualidade, querer pertencer a uma comunidade devia ser já em si
prova suficiente de Fé e de querer orientar os passos pela bússola de Jesus
Cristo.
Finalmente, dois outros textos, entre muitos, sobre a Amoris Laetitia e a sua aplicação: uma notícia acerca da visão do cardeal Blase Cupich, arcebispo de Chicago (em inglês), que considera a exortação apostólica do Papa como um ponto de
partida “revolucionário” para a Igreja na forma como ela interage e lida com a
família e que contraria uma “compreensão idealista do casamento e da família”; e ainda uma notícia sobre
diferentes e divergentes aplicações e visões da Amoris Laetitia, publicada no Crux,
antes ainda da nota do patriarca de Lisboa.
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