É uma voz rouca e profundamente
africana aquela que nos traz a voz do padre António Vieira: “Os Senhores
poucos, os Escravos muitos; os Senhores rompendo galas, os Escravos despidos, e
nus; os Senhores banqueteando, os Escravos perecendo à fome; os Senhores
nadando em ouro, e prata, os Escravos carregados de ferros; (...) Estes homens
não são filhos do mesmo Adão, e da mesma Eva? Estas almas não foram resgatadas
com o sangue do mesmo Cristo?”
Este excerto do XXVII Sermão do Rosário – Maria
Rosa Mística é um dos textos que Jordi Savall nos traz nest’As Rotas da Escravatura. O itinerário da
obra começa com a evocação da primeira expedição portuguesa para capturar
escravos na Guiné, em 1444, e termina 444 anos depois, em 1888, data da
abolição da escravatura no Brasil. O percurso musical traz-nos à memória o pico
de uma tragédia na qual Portugal tem um papel bem triste, mas que já existira
antes e ainda perdura nos nossos dias, mesmo que formalmente extinta.
O
programa deste duplo disco, livro e DVD (cujo espectáculo passou por Lisboa em Abril do ano passado) é um
diálogo intenso entre músicas do Mali, México, Colômbia e Brasil. São canções
que falam da religiosidade africana, dos sofrimentos e lamentos, dos trabalhos
e das penas, a par das pequenas alegrias, dos amores e rituais quotidianos,
quase sempre marcados pela música e pela dança – únicos espaços de liberdade
que ninguém podia tirar aos escravos, como escreve Jordi Savall.
Apesar de o
diálogo intercultural e inter-religioso através da música ser desde há muito
uma das marcas do humanismo savalliano, é a primeira vez que o maestro e
compositor catalão penetra na África subsariana. E o resultado é
verdadeiramente espantoso, com as vozes e os instrumentos dos três continentes
e no qual se destacam as vozes de Kassé Mady Diabaté ou Maria Juliana Linhares ou
a deliciosa kora de Ballaké Sissoko (mas é injusto deixar de lado os
restantes músicos, cantores e o
recitador). Savall devolve-nos a memória dos cerca de 25 milhões de africanos
sujeitos a este tráfico infame e que não podem ser esquecidos (um número equivalente continua, ainda hoje, sujeito a condições de escravatura). A beleza e
profundidade desta obra a isso nos obrigam.
Les Routes de l’Esclavage
Intérpretes: K. M. Diabaté, I.
Garcia, M. J. Linhares, B. Sangaré, B. Sissoko, La Capella Reial de Catalunya, Hespèrion
XXI, 3MA e Tembembe Ensamble Continuo; dir. Jordi Savall
Edição: Alia Vox
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