Foto reproduzida
daqui
Terminou ontem, dia 23, o encontro de exercícios espirituais de Quaresma, orientados pelo
padre José Tolentino Mendonça, para o Papa e os responsáveis da Cúria Romana.
Ao longo da semana, na página do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura,
foram sendo publicadas notícias com os resumos das diversas meditações do padre
Tolentino. Aqui fica um curto itinerário por excertos dessas sínteses, com as
respectivas ligações electrónicas onde se podem encontrar as notícias na íntegra:
Primeira meditação: Aprendizes do espanto
(...) Jesus que,
sentado no poço, pede à samaritana “dá-me de beber”, maravilha-nos, deixa-nos
desarmados pelo espanto. Um judeu que fala com uma mulher da Samaria, habitada
por dissidentes com os quais os judeus não estavam de acordo, surpreende-nos
como Jesus que se dirige a nós para nos pedir: “Dá-me aquilo que tens. Abre o
teu coração. Dá-me o que és”. (...) o pedido de Jesus provoca em nós perplexidade
e desconcerto, porque “somos nós aqueles que vão beber” do poço, e sabe-se que
a sede é fadiga e necessidade. Jesus está cansado da viagem e está sentado
junto ao poço. E no Evangelho aqueles que estão sentados para pedir são os
mendigos. Também Jesus mendiga, o seu corpo «experimenta o cansaço dos dias:
desgastado pelo cuidado amoroso pelos outros». Não é só o ser humano que é
mendigo de Deus. «Também Deus é mendigo do ser humano.»
Segunda meditação: A ciência da sede
(...) A última frase
pronunciada por Jesus no livro do Apocalipse é um convite: «Quem tem sede,
venha». (...) Jesus promete-nos saciar a sede quando reconhecemos que somos
«incompletos e em construção». Ele sabe quantos são os obstáculos que nos
travam e quantas são as «derivas que nos retardam». Estamos «tão próximos da
fonte e andamos tão longe». No desejo e na sede estão dois sentimentos em
contraste: a atracão e a distância, o ardor e a vigilância. Por isso a pergunta
a colocar é: desejamos Deus? Sabemos reconhecer a nossa sede? Damo-nos tempo
para a decifrar?
(...)
Se tivéssemos de
contar a parábola da nossa sede, prosseguiu, talvez emergissem os traços de
Jean, o protagonista masculino de “A sede e a fome”, de Ionesco. É uma figura
devorada por um «infinito vazio», por uma inquietação que nada parece poder
aplacar e que o torna num «homem sem raízes, nem casa, incapaz de criar laços,
perdido no vazio do labirinto em que escuta apenas o rumor solitário dos
próprios passos».
(...)
O consumismo, hoje,
não é apenas material, é também espiritual, e o que se diz de um ajuda a
compreender o outro. O facto é que as nossas sociedades, que «impõem o consumo
como critério de felicidade, transformam o desejo numa armadilha»: de cada vez
que pensamos apagar a nossa sede numa «montra», numa «aquisição», num «objeto»,
a posse comporta a sua desvalorização, e isso faz crescer em nós o vazio. O
objeto do nosso desejo é um «ente ausente», é um «objeto sempre em falta». Por
isso, «o Senhor não cessa de nos dizer: “Quem tem sede, venha; quem deseja,
beba gratuitamente a água da vida”».
Terceira meditação:
Dei-me conta de estar com sede
(...) «Construímos
um fenomenal castelo de abstrações. Não é por acaso que a teologia dos últimos
séculos se deteve tanto tempo a debater as questões levantadas pelo Iluminismo
e se tenha afastado das colocadas, por exemplo, pelo Romantismo, como as da
identidade, coletiva e pessoal, do emergir do sujeito ou do mal de viver. (...)
«O desejo humano
diferencia-se do desejo dos animais», e ser humano significa «sentir que a
existência depende deste reconhecimento mais do que qualquer outra coisa». Este
anseio é mortificado nas sociedades capitalistas, que exploram avidamente as
compulsões de satisfação de necessidade induzida, removendo a sede e o desejo
tipicamente humanos.
Na prática, o
discurso capitalista promete libertar o desejo das inibições da lei e da moral
em nome de uma satisfação ilimitada. E quando isto se verifica, «o prazer, a
paixão, a alegria a esgotarem-se num consumismo desenfreado, tanto de objetos
como de pessoas», chega-se à extinção da sede, à agonia do desejo. A vida perde
o seu horizonte. (...)
Quarta meditação: Contraa depressão é preciso mais que comprimidos
(...) «Quando
renunciamos à sede, então começamos a morrer. Quando desistimos de desejar, de
encontrar gosto nos encontros, nas conversa, nos intercâmbios, na saída de nós
mesmos, nos projetos, nos trabalhos, na própria oração», apontou o poeta e
biblista português na sua quarta reflexão.
Este desânimo que
atinge a relação com Deus tem outros sintomas: «Quando diminui a nossa
curiosidade pelo outro, a nossa abertura ao inédito, e tudo nos soa como um
requentado “déjà vu” que consideramos como um peso inútil, incongruente e
absurdo, que nos esmaga».
Parece que a vida
que «eu vivo» é a de outra pessoa, recordava Kierkegaard (séc. XIX), enquanto
que Evágrio Pôntico (séc. IV) falava do «demónio da acédia» e S. João Cassiano
(sécs. IV-V) recordava as consequências na vida dos monges: uma insatisfação
profunda que leva à perda do entusiasmo. (...)
Em geral, quando uma
pessoa se sente abandonada, permanece apenas um vazio, que se enche com
angústia ou com falsos paliativos, como a mundanidade, o álcool, as redes
sociais, o consumismo ou a hiperatividade. Há quem traga as feridas de lutas ou
fracassos, do abandono ou abusos quando eram crianças, da pobreza económica, da
guerra. (...)
Quinta meditação: A sede de Jesus é romper as cadeias do nosso egoísmo
Jesus e a mulher samaritana, de Paolo Veronese, c. 1585;
Kunsthistorisches Museum, Viena, Áustria (imagem reproduzida daqui)
(...) No Calvário
Jesus manifesta o seu desejo de beber, mas não é compreendido e em vez de água
recebe vinagre; depois de o ter recebido, diz «está cumprido» e, inclinada a
cabeça, restitui o espírito.
«A sede é assim o
selo do cumprimento da sua obra e, ao mesmo tempo, do desejo ardente de fazer
dom do Espírito, verdadeira água viva capaz de dessedentar radicalmente a sede
do coração humano», observou o vice-reitor da Universidade Católica. (...)
«Na verdade, a sede
de que Jesus fala é uma sede existencial, que se aplaca fazendo convergir a
nossa vida com a sua. Ter sede é ter sede dele. Somos assim chamados a viver de
uma centralidade em Cristo: sair de nós próprios e procurar nele essa água que
extingue a nossa sede, vencendo a tentação de auto-referencialidade que tanto
nos adoece e tiraniza» (...)
A sede de Jesus «é
romper as cadeias que se fecham na culpabilidade e no egoísmo, impedindo-nos de
avançar e de crescer na liberdade interior», acentuou o ensaísta e tradutor.
«A sua sede é
libertar as energias mais profundas ocultas em nós, para que possamos
tornar-nos homens e mulheres de compaixão, artesãos da paz como Ele, sem fugir
ao sofrimento e aos conflitos do nosso mundo fragmentado, mas tomando o nosso
lugar e criando comunidades e espaços de amor, de modo a levar uma esperança a
esta terra», declarou.
Sexta meditação: As lágrimas das mulheres dos evangelhos
(...) São
precisamente as mulheres dos Evangelhos que concedem cidadania às lágrimas,
mostrando a importância deste sinal, afirmou o sacerdote português, fazendo
referência à psicanalista Julis Kristeva.
Esta não crente
dizia que quando um paciente deprimido chegava ao ponto de chorar no divã,
acontecia uma coisa muito importante: estava a começar a afastar-se da tentação
do suicídio, porque as lágrimas não narram o desejo de morrer mas «a nossa sede
de vida». (...)
«A nossa biografia
pode ser contada também através das lágrimas: de alegria, de festa, de comoção
luminosa; e de noite escura, de laceração, de abandono, de arrependimento e de
contrição. (...)
Para Gregório de
Nazianzo as lágrimas são, em certo sentido, um quinto batismo. E Nelson
Mandela, na prisão, teve os olhos tão atacados que perdeu a capacidade de
derramar lágrimas, mas ainda assim não se extinguiu a sua sede de justiça.
Quando se chora,
ainda que haja um esforço para não mostrar ao outro que se choram a verdade é
que choramos sempre para que o outro veja. «É a sede do outro que nos faz
chorar». (...)
É precisamente a
impressionante qualidade do que a mulher dá a Jesus que permite constatar que
Simão, o chefe da casa, não disse nada. «É esta inédita hospitalidade que Jesus
pretende exaltar», «esta sede, de que as lágrimas são sinal e que nos toca
aprender».
Sétima meditação: Aprender a beber da própria sede
(...) O poeta e
biblista português associou a sede à Paixão de Jesus e recordou que a pobreza
de cada ser humano é o lugar onde Jesus intervém e que o maior obstáculo à vida
de Deus é a inflexibilidade e a presunção. Por isso é preciso aprender a beber
da própria sede.
A Igreja,
prosseguiu, não pode isolar-se numa torre de marfim e deve ser discípula,
abraçando uma experiência de nomadismo, afirmou o vice-reitor da Universidade
Católica, que mencionou o risco de impor a outros caminhos exigentes, enquanto
que fiéis permanecem sentados. É preciso que as comunidades cristãs estejam
atentas para que o sedentarismo não se torne também espiritual, como uma
atrofia interior.
Depois de realçar
que os não crentes podem olhar com frescura surpreendente para a vida de fé, o
P. Tolentino Mendonça referiu-se ao pensamento do teólogo peruano Gustavo
Gutiérrez, assinalando que o poço de onde se bebe a água que sacia a sede é a
vida espiritual concreta, mesmo que ferida de contingências e limitações.
«A humanidade que
temos dificuldade em abraçar, a nossa própria e a dos outros, é a humanidade
que Jesus abraça verdadeiramente, dado que Ele se inclina com amor sobre a
nossa realidade, e não sobre a idealização de nós mesmos que construímos. O
mistério da incarnação do Filho de Deus, em suma, comporta para nós uma visão
não ideológica da vida», destacou. (...)
Oitava meditação: Inveja e misericórdia na sempre actual parábola do filho pródigo
O regresso do filho pródigo (pormenor), de Rembrandt van Rijn, c. 1661–1669;
Museu Hermitage, S. Petersburgo, Rússia (imagem reproduzida daqui)
(...) «Dentro de
nós, na verdade, não há apenas coisas belas, harmoniosas, resolvidas. Dentro de
nós há sentimentos sufocados, muitas coisas a aclarar, patologias, inúmeros
fios a ligar. Há regiões de sofrimento, questões a reconciliar, memórias e
cesuras para deixar a Deus para que as cure», afirmou.
O tempo atual,
prosseguiu o poeta e biblista português, é dominado por «um desejo à deriva»
favorável ao surgimento de «filhos pródigos», através de atitudes como o
arbítrio fácil, o capricho, o hedonismo.
Estes modos de estar
desenvolvem-se num «vórtice enganador» ditado pela «sociedade dos consumos»,
que promete satisfazer tudo e todos ao identificar «a felicidade com a
saciedade». Estamos assim cheios, plenos, satisfeitos, domesticados». Mas esta
saciedade que se obtém com os consumos é «a prisão do desejo».
À necessidade de
liberdade do filho mais novo, impelido por «fantasias de omnipotência»,
acrescentam-se «as expectativas doentias» do filho maior, «as mesmas que com
grande facilidade se infiltram em nós».
Trata-se, apontou o
P. Tolentino Mendonça, da «dificuldade de viver a fraternidade, a pretensão de
condicionar as decisões do pai, a recusa de se alegrar com o bem do outro. Tudo
isto cria nele um ressentimento latente e a incapacidade de colher a lógica da
misericórdia». (...)
Ao lado das figuras
dos jovens, emerge a do pai, «ícone da misericórdia»: «Tem dois filhos e
compreende que relacionar-se com eles de maneiras diferentes, reservar a cada
qual um olhar único».
A misericórdia «não
é dar ao outro o que ele merece». A misericórdia é compaixão, bondade, perdão.
É «dar a mais, dar mais além, ir mais longe». É um «excesso de amor» que cura
as feridas. A misericórdia é um dos atributos de Deus. Por isso crer em Deus é
crer na misericórdia. A misericórdia é um Evangelho a descobrir, concluiu o
sacerdote.
Nona meditação: Escutar a sede das periferias
A periferia está na
identidade cristã mais profunda e é um horizonte no qual a Igreja deve
redescobrir-se, sublinhou na tarde desta quinta-feira o P. José Tolentino
Mendonça. (...)
«Onde está o nosso
irmão?» A pergunta de Deus no livro do Génesis inspirou a reflexão do biblista,
dedicada a «escutar a sede das periferias». O convite do poeta e ensaísta é de
«olhar de olhos bem abertos a realidade do mundo» e procurar o nosso irmão
entre os pobres e últimos do mundo, não separando a «sede espiritual» da «sede
literal».
Um dos critérios
para perceber o que é o centro e o que é a periferia do mundo é precisamente o
acesso à água, direito inalienável. Como é realçado na encíclica Laudato si’ e acentuado por dados de
organizações internacionais, mais de mil milhões de seres humanos não têm a
possibilidade de fruir de água potável.
Trata-se de uma
multidão literalmente sedenta, perante a qual é «urgente adotar uma autêntica
conversão dos estilos de vida e de coração», que «vá em direção contrária à
cultura do descarte e da desigualdade social». Enquanto que os países ricos
depauperam os seus recursos, «os outros vivem no suplício», afirmou o
vice-reitor da Universidade Católica.
Neste contexto, «a
Igreja não deve ter medo de ser profética e de meter o dedo na chaga», pelo que
só pode confrontar-se com as periferias do mundo. «Um discípulo de Jesus deve
sabê-lo convictamente», antes de mais porque «o próprio Jesus é um homem
periférico». (...)
«A periferia está no
ADN cristão, aproxima-o do seu contexto originário, mas também do seu programa.
É uma chave indispensável para a sua interpretação espiritual e existencial. Em
todas as épocas permanecerá para a experiência cristã o lugar privilegiado onde
encontrar e reencontrar Jesus», assinalou. (...)
«a vitalidade do
projeto cristão joga-se nas periferias», onde «muitas vezes não há sequer a
presença de uma igreja dentro de paredes e onde tudo é mais precário, rarefeito
ou apenas esboçado», observou. Por isso, para a Igreja a periferia é um
horizonte, e não um problema, e é onde pode sair de si mesma e redescobrir-se.
(...)
Como advertia S.
João Crisóstomo, a Igreja deve evitar o «terrível cisma» entre «aquilo que
separa o sacramento do altar do sacramento do irmão, aquilo que perigosamente
distancia o sacramento da Eucaristia do sacramento do pobre».
Décima meditação: A minha sede é a minha bem-aventurança
A Igreja é chamada a
abrir-se «sem medos, sem rigidez», a ser suave «no Espírito» e não mumificada
em «estruturas que a fecham», afirmou o papa ao agradecer pessoalmente ao P.
Tolentino Mendonça. (...) Para Francisco, a Igreja, «não é uma gaiola para o
Espírito Santo», porque este «também voa do lado de fora e trabalha» nos «não
crentes, nos “pagãos”, nas pessoas de outras confissões religiosas», dado que
Ele é «universal, é o Espírito de Deus, que é para todos».
Nesta décima
meditação, o biblista vincou que as bem-aventuranças são mais do que uma lei,
representando uma «configuração da vida», um «verdadeiro chamamento
existencial». (...)
Por outro lado, as
bem-aventuranças são igualmente o «auto-retrato de Jesus mais exato e
fascinante», a chave da sua vida, «pobre em espírito, manso e misericordioso,
sedento e homem de paz, com fome de justiça e com a capacidade de acolher
todos». (...)
É urgente
«redescobrir a bem-aventurança da sede»: a pior coisa para um crente é «estar
saciado de Deus». Pelo contrário, felizes aqueles que «têm fome e sede de
Deus»: a experiência da fé, com efeito, «não serve para resolver a sede», mas
para «dilatar o nosso desejo de Deus, para intensificar a nossa procura.
Precisamos, talvez, de nos reconciliar mais vezes com a nossa sede, repetindo a
nós próprios: “A minha sede é a minha bem-aventurança”». (...)
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