sábado, 24 de fevereiro de 2018

Tolentino Mendonça no retiro ao Papa e à Cúria: a sede e a aprendizagem do espanto



Foto reproduzida daqui

Terminou ontem, dia 23, o encontro de exercícios espirituais de Quaresma, orientados pelo padre José Tolentino Mendonça, para o Papa e os responsáveis da Cúria Romana. Ao longo da semana, na página do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, foram sendo publicadas notícias com os resumos das diversas meditações do padre Tolentino. Aqui fica um curto itinerário por excertos dessas sínteses, com as respectivas ligações electrónicas onde se podem encontrar as notícias na íntegra:

Primeira meditação: Aprendizes do espanto

(...) Jesus que, sentado no poço, pede à samaritana “dá-me de beber”, maravilha-nos, deixa-nos desarmados pelo espanto. Um judeu que fala com uma mulher da Samaria, habitada por dissidentes com os quais os judeus não estavam de acordo, surpreende-nos como Jesus que se dirige a nós para nos pedir: “Dá-me aquilo que tens. Abre o teu coração. Dá-me o que és”. (...) o pedido de Jesus provoca em nós perplexidade e desconcerto, porque “somos nós aqueles que vão beber” do poço, e sabe-se que a sede é fadiga e necessidade. Jesus está cansado da viagem e está sentado junto ao poço. E no Evangelho aqueles que estão sentados para pedir são os mendigos. Também Jesus mendiga, o seu corpo «experimenta o cansaço dos dias: desgastado pelo cuidado amoroso pelos outros». Não é só o ser humano que é mendigo de Deus. «Também Deus é mendigo do ser humano.»

Segunda meditação: A ciência da sede

(...) A última frase pronunciada por Jesus no livro do Apocalipse é um convite: «Quem tem sede, venha». (...) Jesus promete-nos saciar a sede quando reconhecemos que somos «incompletos e em construção». Ele sabe quantos são os obstáculos que nos travam e quantas são as «derivas que nos retardam». Estamos «tão próximos da fonte e andamos tão longe». No desejo e na sede estão dois sentimentos em contraste: a atracão e a distância, o ardor e a vigilância. Por isso a pergunta a colocar é: desejamos Deus? Sabemos reconhecer a nossa sede? Damo-nos tempo para a decifrar? (...)
Se tivéssemos de contar a parábola da nossa sede, prosseguiu, talvez emergissem os traços de Jean, o protagonista masculino de “A sede e a fome”, de Ionesco. É uma figura devorada por um «infinito vazio», por uma inquietação que nada parece poder aplacar e que o torna num «homem sem raízes, nem casa, incapaz de criar laços, perdido no vazio do labirinto em que escuta apenas o rumor solitário dos próprios passos». (...)
O consumismo, hoje, não é apenas material, é também espiritual, e o que se diz de um ajuda a compreender o outro. O facto é que as nossas sociedades, que «impõem o consumo como critério de felicidade, transformam o desejo numa armadilha»: de cada vez que pensamos apagar a nossa sede numa «montra», numa «aquisição», num «objeto», a posse comporta a sua desvalorização, e isso faz crescer em nós o vazio. O objeto do nosso desejo é um «ente ausente», é um «objeto sempre em falta». Por isso, «o Senhor não cessa de nos dizer: “Quem tem sede, venha; quem deseja, beba gratuitamente a água da vida”».

Terceira meditação: Dei-me conta de estar com sede

(...) «Construímos um fenomenal castelo de abstrações. Não é por acaso que a teologia dos últimos séculos se deteve tanto tempo a debater as questões levantadas pelo Iluminismo e se tenha afastado das colocadas, por exemplo, pelo Romantismo, como as da identidade, coletiva e pessoal, do emergir do sujeito ou do mal de viver. (...)
«O desejo humano diferencia-se do desejo dos animais», e ser humano significa «sentir que a existência depende deste reconhecimento mais do que qualquer outra coisa». Este anseio é mortificado nas sociedades capitalistas, que exploram avidamente as compulsões de satisfação de necessidade induzida, removendo a sede e o desejo tipicamente humanos.

Na prática, o discurso capitalista promete libertar o desejo das inibições da lei e da moral em nome de uma satisfação ilimitada. E quando isto se verifica, «o prazer, a paixão, a alegria a esgotarem-se num consumismo desenfreado, tanto de objetos como de pessoas», chega-se à extinção da sede, à agonia do desejo. A vida perde o seu horizonte. (...)


(...) «Quando renunciamos à sede, então começamos a morrer. Quando desistimos de desejar, de encontrar gosto nos encontros, nas conversa, nos intercâmbios, na saída de nós mesmos, nos projetos, nos trabalhos, na própria oração», apontou o poeta e biblista português na sua quarta reflexão.
Este desânimo que atinge a relação com Deus tem outros sintomas: «Quando diminui a nossa curiosidade pelo outro, a nossa abertura ao inédito, e tudo nos soa como um requentado “déjà vu” que consideramos como um peso inútil, incongruente e absurdo, que nos esmaga».
Parece que a vida que «eu vivo» é a de outra pessoa, recordava Kierkegaard (séc. XIX), enquanto que Evágrio Pôntico (séc. IV) falava do «demónio da acédia» e S. João Cassiano (sécs. IV-V) recordava as consequências na vida dos monges: uma insatisfação profunda que leva à perda do entusiasmo. (...)
Em geral, quando uma pessoa se sente abandonada, permanece apenas um vazio, que se enche com angústia ou com falsos paliativos, como a mundanidade, o álcool, as redes sociais, o consumismo ou a hiperatividade. Há quem traga as feridas de lutas ou fracassos, do abandono ou abusos quando eram crianças, da pobreza económica, da guerra. (...)



Jesus e a mulher samaritana, de Paolo Veronese, c. 1585; 
Kunsthistorisches Museum, Viena, Áustria (imagem reproduzida daqui)

(...) No Calvário Jesus manifesta o seu desejo de beber, mas não é compreendido e em vez de água recebe vinagre; depois de o ter recebido, diz «está cumprido» e, inclinada a cabeça, restitui o espírito.
«A sede é assim o selo do cumprimento da sua obra e, ao mesmo tempo, do desejo ardente de fazer dom do Espírito, verdadeira água viva capaz de dessedentar radicalmente a sede do coração humano», observou o vice-reitor da Universidade Católica. (...)
«Na verdade, a sede de que Jesus fala é uma sede existencial, que se aplaca fazendo convergir a nossa vida com a sua. Ter sede é ter sede dele. Somos assim chamados a viver de uma centralidade em Cristo: sair de nós próprios e procurar nele essa água que extingue a nossa sede, vencendo a tentação de auto-referencialidade que tanto nos adoece e tiraniza» (...)
A sede de Jesus «é romper as cadeias que se fecham na culpabilidade e no egoísmo, impedindo-nos de avançar e de crescer na liberdade interior», acentuou o ensaísta e tradutor.
«A sua sede é libertar as energias mais profundas ocultas em nós, para que possamos tornar-nos homens e mulheres de compaixão, artesãos da paz como Ele, sem fugir ao sofrimento e aos conflitos do nosso mundo fragmentado, mas tomando o nosso lugar e criando comunidades e espaços de amor, de modo a levar uma esperança a esta terra», declarou.


(...) São precisamente as mulheres dos Evangelhos que concedem cidadania às lágrimas, mostrando a importância deste sinal, afirmou o sacerdote português, fazendo referência à psicanalista Julis Kristeva.
Esta não crente dizia que quando um paciente deprimido chegava ao ponto de chorar no divã, acontecia uma coisa muito importante: estava a começar a afastar-se da tentação do suicídio, porque as lágrimas não narram o desejo de morrer mas «a nossa sede de vida». (...)
«A nossa biografia pode ser contada também através das lágrimas: de alegria, de festa, de comoção luminosa; e de noite escura, de laceração, de abandono, de arrependimento e de contrição. (...)
Para Gregório de Nazianzo as lágrimas são, em certo sentido, um quinto batismo. E Nelson Mandela, na prisão, teve os olhos tão atacados que perdeu a capacidade de derramar lágrimas, mas ainda assim não se extinguiu a sua sede de justiça.
Quando se chora, ainda que haja um esforço para não mostrar ao outro que se choram a verdade é que choramos sempre para que o outro veja. «É a sede do outro que nos faz chorar». (...)
É precisamente a impressionante qualidade do que a mulher dá a Jesus que permite constatar que Simão, o chefe da casa, não disse nada. «É esta inédita hospitalidade que Jesus pretende exaltar», «esta sede, de que as lágrimas são sinal e que nos toca aprender».

Sétima meditação: Aprender a beber da própria sede

(...) O poeta e biblista português associou a sede à Paixão de Jesus e recordou que a pobreza de cada ser humano é o lugar onde Jesus intervém e que o maior obstáculo à vida de Deus é a inflexibilidade e a presunção. Por isso é preciso aprender a beber da própria sede.
A Igreja, prosseguiu, não pode isolar-se numa torre de marfim e deve ser discípula, abraçando uma experiência de nomadismo, afirmou o vice-reitor da Universidade Católica, que mencionou o risco de impor a outros caminhos exigentes, enquanto que fiéis permanecem sentados. É preciso que as comunidades cristãs estejam atentas para que o sedentarismo não se torne também espiritual, como uma atrofia interior.
Depois de realçar que os não crentes podem olhar com frescura surpreendente para a vida de fé, o P. Tolentino Mendonça referiu-se ao pensamento do teólogo peruano Gustavo Gutiérrez, assinalando que o poço de onde se bebe a água que sacia a sede é a vida espiritual concreta, mesmo que ferida de contingências e limitações.
«A humanidade que temos dificuldade em abraçar, a nossa própria e a dos outros, é a humanidade que Jesus abraça verdadeiramente, dado que Ele se inclina com amor sobre a nossa realidade, e não sobre a idealização de nós mesmos que construímos. O mistério da incarnação do Filho de Deus, em suma, comporta para nós uma visão não ideológica da vida», destacou. (...)





O regresso do filho pródigo (pormenor), de Rembrandt van Rijn, c. 1661–1669; 
Museu Hermitage, S. Petersburgo, Rússia (imagem reproduzida daqui)
 
(...) «Dentro de nós, na verdade, não há apenas coisas belas, harmoniosas, resolvidas. Dentro de nós há sentimentos sufocados, muitas coisas a aclarar, patologias, inúmeros fios a ligar. Há regiões de sofrimento, questões a reconciliar, memórias e cesuras para deixar a Deus para que as cure», afirmou.
O tempo atual, prosseguiu o poeta e biblista português, é dominado por «um desejo à deriva» favorável ao surgimento de «filhos pródigos», através de atitudes como o arbítrio fácil, o capricho, o hedonismo.
Estes modos de estar desenvolvem-se num «vórtice enganador» ditado pela «sociedade dos consumos», que promete satisfazer tudo e todos ao identificar «a felicidade com a saciedade». Estamos assim cheios, plenos, satisfeitos, domesticados». Mas esta saciedade que se obtém com os consumos é «a prisão do desejo».
À necessidade de liberdade do filho mais novo, impelido por «fantasias de omnipotência», acrescentam-se «as expectativas doentias» do filho maior, «as mesmas que com grande facilidade se infiltram em nós».
Trata-se, apontou o P. Tolentino Mendonça, da «dificuldade de viver a fraternidade, a pretensão de condicionar as decisões do pai, a recusa de se alegrar com o bem do outro. Tudo isto cria nele um ressentimento latente e a incapacidade de colher a lógica da misericórdia». (...)
Ao lado das figuras dos jovens, emerge a do pai, «ícone da misericórdia»: «Tem dois filhos e compreende que relacionar-se com eles de maneiras diferentes, reservar a cada qual um olhar único».
A misericórdia «não é dar ao outro o que ele merece». A misericórdia é compaixão, bondade, perdão. É «dar a mais, dar mais além, ir mais longe». É um «excesso de amor» que cura as feridas. A misericórdia é um dos atributos de Deus. Por isso crer em Deus é crer na misericórdia. A misericórdia é um Evangelho a descobrir, concluiu o sacerdote.


A periferia está na identidade cristã mais profunda e é um horizonte no qual a Igreja deve redescobrir-se, sublinhou na tarde desta quinta-feira o P. José Tolentino Mendonça. (...)
«Onde está o nosso irmão?» A pergunta de Deus no livro do Génesis inspirou a reflexão do biblista, dedicada a «escutar a sede das periferias». O convite do poeta e ensaísta é de «olhar de olhos bem abertos a realidade do mundo» e procurar o nosso irmão entre os pobres e últimos do mundo, não separando a «sede espiritual» da «sede literal».
Um dos critérios para perceber o que é o centro e o que é a periferia do mundo é precisamente o acesso à água, direito inalienável. Como é realçado na encíclica Laudato si’ e acentuado por dados de organizações internacionais, mais de mil milhões de seres humanos não têm a possibilidade de fruir de água potável.
Trata-se de uma multidão literalmente sedenta, perante a qual é «urgente adotar uma autêntica conversão dos estilos de vida e de coração», que «vá em direção contrária à cultura do descarte e da desigualdade social». Enquanto que os países ricos depauperam os seus recursos, «os outros vivem no suplício», afirmou o vice-reitor da Universidade Católica.
Neste contexto, «a Igreja não deve ter medo de ser profética e de meter o dedo na chaga», pelo que só pode confrontar-se com as periferias do mundo. «Um discípulo de Jesus deve sabê-lo convictamente», antes de mais porque «o próprio Jesus é um homem periférico». (...)
«A periferia está no ADN cristão, aproxima-o do seu contexto originário, mas também do seu programa. É uma chave indispensável para a sua interpretação espiritual e existencial. Em todas as épocas permanecerá para a experiência cristã o lugar privilegiado onde encontrar e reencontrar Jesus», assinalou. (...)
«a vitalidade do projeto cristão joga-se nas periferias», onde «muitas vezes não há sequer a presença de uma igreja dentro de paredes e onde tudo é mais precário, rarefeito ou apenas esboçado», observou. Por isso, para a Igreja a periferia é um horizonte, e não um problema, e é onde pode sair de si mesma e redescobrir-se. (...)
Como advertia S. João Crisóstomo, a Igreja deve evitar o «terrível cisma» entre «aquilo que separa o sacramento do altar do sacramento do irmão, aquilo que perigosamente distancia o sacramento da Eucaristia do sacramento do pobre».


A Igreja é chamada a abrir-se «sem medos, sem rigidez», a ser suave «no Espírito» e não mumificada em «estruturas que a fecham», afirmou o papa ao agradecer pessoalmente ao P. Tolentino Mendonça. (...) Para Francisco, a Igreja, «não é uma gaiola para o Espírito Santo», porque este «também voa do lado de fora e trabalha» nos «não crentes, nos “pagãos”, nas pessoas de outras confissões religiosas», dado que Ele é «universal, é o Espírito de Deus, que é para todos».
Nesta décima meditação, o biblista vincou que as bem-aventuranças são mais do que uma lei, representando uma «configuração da vida», um «verdadeiro chamamento existencial». (...)
Por outro lado, as bem-aventuranças são igualmente o «auto-retrato de Jesus mais exato e fascinante», a chave da sua vida, «pobre em espírito, manso e misericordioso, sedento e homem de paz, com fome de justiça e com a capacidade de acolher todos». (...)
É urgente «redescobrir a bem-aventurança da sede»: a pior coisa para um crente é «estar saciado de Deus». Pelo contrário, felizes aqueles que «têm fome e sede de Deus»: a experiência da fé, com efeito, «não serve para resolver a sede», mas para «dilatar o nosso desejo de Deus, para intensificar a nossa procura. Precisamos, talvez, de nos reconciliar mais vezes com a nossa sede, repetindo a nós próprios: “A minha sede é a minha bem-aventurança”». (...)

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