sábado, 17 de fevereiro de 2018

90 anos de Pedro Casaldáliga: o bispo da “absurda” Esperança



Pedro Casaldáliga, bispo emérito de São Félix de Araguaia, Mato Grosso, Brasil
(foto reproduzida daqui)

Há pouco mais de 46 anos, o convite para a celebração de ordenação de bispo de Pedro Casaldáliga, então missionário dos padres claretianos no Brasil, dizia, com estas palavras em forma de poema:
Tua mitra
será um chapéu de palha sertanejo;
o sol e o luar; a chuva e o sereno;
o olhar dos pobres com quem caminhas
e o olhar glorioso de Cristo, o Senhor.
Teu báculo
será a verdade do Evangelho
e a confiança do teu povo em ti.
Teu anel
será a fidelidade à Nova Aliança
do Deus Libertador
e a fidelidade ao povo desta terra.
Não terás outro escudo
que a força da esperança
e a liberdade dos filhos de Deus
nem usarás outras luvas que
o serviço do Amor.
Ontem, 16 de Fevereiro de 2018, o bispo emérito de São Félix do Araguaia (Mato Grosso, no centro do Brasil, a sul da região amazónica) completou 90 anos de vida e uma celebração eucarística assinalou o facto. Uma vida em grande parte dedicada a fazer daqueles votos de consagração um horizonte de acção evangélica, através da defesa e da experiência de um cristianismo servo e pobre, dedicado à protecção dos mais pobres e desfavorecidos. Uma vida que levou a sério a promessa-convite da sua ordenação episcopal, tendo-se sempre recusado a usar símbolos que, na sua perspectiva, falavam mais do poder do que do serviço.
Não foi fácil a vida de Pedro Casaldáliga. Nascido Pere Casaldàliga i Pla, em Balsareny, na província catalã de Barcelona (Espanha), a 16 de Fevereiro de 1928 e emigrado para o Brasil, em 1968, como missionário da sua congregação, os padres claretianos, viria a sofrer várias ameaças de morte (numa das ocasiões, teve mesmo de se esconder, como Fernando Alves evocava na TSF em Dezembro de 2012), esteve várias vezes para ser expulso do Brasil durante a ditadura militar, sofreu incompreensões de algumas estruturas eclesiásticas, teve posições que muitas pessoas não entenderam. Mesmo assim, persistiu na sua forma de estar. 

No Brasil, com o Pacto das Catacumbas
Em 1968, chegado ao Brasil, o padre Casaldáliga encontrou no Mato Grosso uma região marcada pela imensa miséria e analfabetismo, pelo poder dos grandes latifundiários e por assassinatos frequentes dos líderes e das populações indígenas ou rurais.
Nomeado administrador apostólico de São Félix em 1970 e bispo no ano seguinte, recebeu a ordenação episcopal em Outubro de 1971. Na sua actividade episcopal, aderiu ao Pacto das Catacumbas, um documento assinado por vários bispos que tinham participado no Concílio Vaticano II, e que se comprometiam a viver de forma despojada e servindo o anúncio do Evangelho entre os mais pobres. O Pacto é uma das etapas fundamentais que levará ao aparecimento de líderes como o Papa Francisco.

Dom Pedro, como é carinhosamente tratado, privilegiou uma linha de actuação marcada pela construção de comunidades eclesiais de base, onde a Bíblia, a participação de todos e a diversidade dos ministérios eram orientações primordiais. A par dessa perspectiva, opôs-se civicamente à ditadura militar, na defesa dos direitos humanos e de uma sociedade mais justa e solidária.
Com outras vozes de bispos e teólogos brasileiros – Hélder Câmara, Paulo Arns, Aloísio Lorscheider, Leonardo Boff, Mauro Morelli, entre muitos outros – construiu uma linha eclesial marcada pela teologia da libertação – ou seja, pela perspectiva de que o evangelho pode ser uma força motriz para a libertação das diferentes formas de opressão que aprisionam pessoas e povos.
Nessa época – décadas de 1970-1980 – foi também um dos bispos impulsionadores do Conselho Indígena Missionário, da Comissão da Pastoral da Terra ou da Campanha da Fraternidade, entre vários organismos e iniciativas da Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) destinadas a concretizar as orientações pastorais sugeridas no Pacto das Catacumbas ou nos documentos das assembleias do episcopado latino-americano realizadas em Medellin (Colômbia, 1968) e Puebla (México, 1979).
Alvo de várias ameaças de morte, Casaldáliga chegou a ver um dos seus padres, o jesuíta João Bosco Burnier, ser agredido e alvejado na nuca. E por cinco vezes teve processos instaurados para sair do Brasil.
Sofrendo de Parkinson há vários anos (chama “Irmão Parkinson” à doença, como se recorda neste perfil publicado na edição brasileira do El País), nem por isso Dom Pedro deixou de se empenhar nas lutas do seu povo e na defesa dos mais desvalidos, tendo mesmo chegado, há dez anos, a criticar o governo do Presidente Lula por parecer que gostava mais dos mais ricos que dos mais pobres, como dizia nesta entrevista (em espanhol).
Apesar da doença, continua a ser “um santo vivo”, como notava José Manuel Vidal, director do ReligionDigital, nesta reportagem de Julho do ano passado.
Autor de várias obras em que cruza as ciências sociais com a teologia, Casaldáliga é também poeta e foi co-autor dos poemas da Missa dos Quilombos, composta por Milton Nascimento:
Estamos chegando do ventre das Minas,
estamos chegando dos tristes mocambos,
dos gritos calados nós somos,
viemos cobrar.
Estamos chegando da cruz dos engenhos,
estamos sangrando a cruz do Batismo,
marcados a ferro nós fomos,
viemos gritar.
(Os poemas completos da Missa dos Quilombos podem ser lidos aqui; o disco pode ser escutado aqui.

E este sol e estes rios...
 

O padre Ángel García Rodríguez, fundador dos Mensageiros da Paz (à esquerda), 
com o bispo Casaldáliga, em Julho do ano passado (foto reproduzida daqui)

Num outro dos seus poemas, retoma o compromisso tomado no convite para a sua ordenação episcopal:

Não ter nada.
Não levar nada.
Não poder nada.
Não pedir nada,
E, de passagem,
Não matar nada; não calar nada.
Somente o Evangelho, como uma faca afiada,
E o pranto e o riso no olhar,
e a mão estendida e apertada,
e a vida, a cavalo, dada.
E este sol e estes rios e esta terra comprada,
como testemunhas da Revolução já estalada.

E mais nada!

Desde o início da sua missão no Brasil, manteve correspondência com uma rede imensa de amigos espanhóis, aos quais enviada cartas abertas a falar dos problemas e das alegrias das suas tarefas missionárias, da realidade social e política, da vida e tensões internas do catolicismo. No início, as cartas eram policopiadas por um pequeno grupo e distribuídas a mais de 800 pessoas.
Com o tempo, essa rede foi-se alargando. Em 2011, as cartas enviadas entre 1980 e 2009 foram publicadas em Espanha. O teólogo Benjamín Forcano, que apresenta o livro, escreve que nunca encontrara uma pessoa que transmitisse “paixão pelo Evangelho e por viver em coerência com tanta liberdade, pobreza e profecia” como Pedro Casaldáliga. Ontem, o ReligionDigital publicou um testemunho escrito por Forcano e Xabier Pikaza.
Na primeira das cartas, escrita em Março de 1980, Casaldáliga fala do assassinato de Oscar Romero, o arcebispo de El Salvador que tinha sido vitimado por paramilitares ligados ao Governo do seu país – e que foi reconhecido como mártir em 2015 e finalmente beatificado em Maio desse ano.
“A morte de monsenhor Romero é um acontecimento histórico, de incalculáveis consequências, para a Igreja e para os povos da América Latina”, previa Casaldáliga. “Temos um novo mártir da libertação, outro santo da América.”
 Na mesma carta, antecipando a vivência da Páscoa, acrescentava: “Continuemos fiéis e simples, fortes na ‘absurda’ Esperança – a mesma de que falava no seu cartão de convite para a ordenação episcopal. Em todo o caso, Cristo é o Senhor. E a História acabará muito melhor do que nós imaginamos.”

Comunidades orantes, servidoras, proféticas...


A pequena capela da casa de Dom Pedro (foto reproduzida daqui)
Chamado ao Vaticano para explicar várias das suas opções, Casaldáliga insistia na sua opção radical pelo Evangelho. Também por isso, e pelo novo clima que se vive em diversas estruturas da Santa Sé, a Rádio Vaticana dizia dele, em Junho do ano passado, que Casaldáliga vivera “sempre e sem medo” a opção pelos pobres. E, a propósito dos seus 90 anos, o jornal L'Osservatore Romano dedicava-lhe um perfil, escrito por Óscar Elizalde Prada e que pode ser lido aqui em tradução portuguesa).
Na última das Cartas Abiertas (ed. Nueva Utopia, Madrid), propunha que o Vaticano deveria deixar de ser um Estado e o Papa chefe de Estado e que a Cúria Romana teria de ser reformada – o que está a acontecer, com o projecto promovido pelo Papa Francisco.
No mesmo texto, de 2009, acrescentava: “Como Igreja, queremos viver, à luz do Evangelho, a paixão obsessiva de Jesus, o Reino. Queremos ser Igreja da opção pelos pobres, comunidade ecuménica e macro-ecumémica também. O Deus em quem acreditamos, o Abbá de Jesus, não pode ser de modo nenhum causa de fundamentalismos, de exclusões, de inclusões absorventes, de orgulho proselitista. (...) A Igreja será uma rede de comunidade orantes, servidoras, proféticas, testemunhas da Boa Nova: uma Boa Nova de vida, de liberdade, de comunhão feliz. Uma Boa Nova de misericórdia, de acolhimento, de perdão, de ternura, samaritana de todos os caminhos da humanidade”, comprometida com “as grandes causas da humanidade da justiça e da paz, dos direitos humanos e da igualdade reconhecida de todos os povos”.

1 comentário:

MM disse...

http://servicioskoinonia.org/Casaldaliga/cartas/DeclaracaoDeAmor.htm#more


Eu, bispo à esquerda, poeta a caminho, vindo de outros mundos mas enxertado na Pátria Grande como um rebento mestiço de culturas e anelos, missionário com certa vocação para evangelizar «macedônios», e claretiano daquele que foi arcebispo de Santiago de Cuba, faço esta declaração, aos vinte e tantos de fevereiro de 1999, esperando que termine menos mal este milênio, «deslumbrante e cruel», enquanto a pós-modernidade anda sem rumo e querem declarar-nos «cansada» a utopia.

Eu venho do Brasil, que também é latino-americano, do rio Araguaia, fronteira de lua e pássaros e lutas da grande Amazônia. Venho do Santuário dos Mártires da Caminhada, onde se conserva viva a «memória perigosa» de todo o sangue derramado pela causa grande da Libertação; e onde, por certo, estão presentes, ecumenicamente, os jovens cubanos Frank Pais e Antonio Echeberría.

«Declaração de amor» digo, não de ódio, nem de desprezo nem de indiferença; porque - entre outras coisas para amar e para discutir e para corrigir - trata-se de uma revolução nossa, desta Pátria Grande que é Nossa América.

É uma declaração, em voz alta e de coração aberto, para que fiquem sabendo as ondas que vão e vêm pelo mar Caribe e os silêncios expectantes dos Andes e as geladas vidraças de Wall Street. Mas em parábola, para que não se entenda mais que o devido, e para que os irmãos e irmãs que queiram o entendam do coração e na esperança.

Acossada e acusada, a revolução deve continuar fazendo-se, mas total. E deve saber que o fracasso pode ser um fracasso processual, um fragmento do grande fracasso pascal que termina no triunfo da Vida.

Os adjetivos às vezes são substantivamente qualificativos, e por isso eu disse revolução «total». As revoluções, já se sabe, podem ser parciais, partidistas, talvez imediatistas. Como cristãos, dizemos - e cremos - que o Reino de Deus, que é a Revolução do próprio Deus, «já é, mas ainda não». Total há de ser, ademais, porque a boa revolução que sonhamos e que a gente quer para esta Cuba amada e para Nossa América e para o mundo, é a revolução das almas, a revolução das relações, a revolução das estruturas. Mas revolução, porque de reformas ao estilo das democracias formais já estamos mais que cansados. O que queremos é «a dignidade plena do homem (e da mulher)», como diria «o apóstolo» Martí; aquele «exercício íntegro» que ele desejava para sua pátria - e «que não corra perigo a liberdade no triunfo», advertia - e que ele deseja agora - vivo na pedra da história e na glória merecida -, para toda a «pátria que é Humanidade» e para toda esta «América de qual somos filhos e filhas».

Quanta sociologia puder proclamar e viver esta humana terra da família de Deus se reduz - quase nada! - a conjugar dialeticamente estas duas aspirações maiores de nossas vidas e nossos povos: a Liberdade e a Justiça. Conjugar simultaneamente, como cantava o poeta peruano, «a justiça e as rosas», e, acrescentemos, o vento, o Vento...