Pedro Casaldáliga, bispo emérito de São Félix de Araguaia, Mato Grosso, Brasil
(foto reproduzida daqui)
Há pouco mais de 46 anos, o
convite para a celebração de ordenação de bispo de Pedro Casaldáliga, então
missionário dos padres claretianos no Brasil, dizia, com estas palavras em forma
de poema:
“Tua mitra
será um chapéu de palha sertanejo;
o sol e o luar; a chuva e o sereno;
o olhar dos pobres com quem caminhas
e o olhar glorioso de Cristo, o Senhor.
Teu báculo
será a verdade do Evangelho
e a confiança do teu povo em ti.
Teu anel
será a fidelidade à Nova Aliança
do Deus Libertador
e a fidelidade ao povo desta terra.
Não terás outro escudo
que a força da esperança
e a liberdade dos filhos de Deus
nem usarás outras luvas que
o serviço do Amor.”
Ontem, 16 de Fevereiro de 2018, o bispo
emérito de São Félix do Araguaia (Mato Grosso, no centro do Brasil, a sul da
região amazónica) completou 90 anos de vida e uma celebração eucarística assinalou o facto. Uma vida em grande parte dedicada a
fazer daqueles votos de consagração um horizonte de acção evangélica, através
da defesa e da experiência de um cristianismo servo e pobre, dedicado à
protecção dos mais pobres e desfavorecidos. Uma vida que levou a sério a
promessa-convite da sua ordenação episcopal, tendo-se sempre recusado a usar
símbolos que, na sua perspectiva, falavam mais do poder do que do serviço.
Não foi fácil a vida de Pedro
Casaldáliga. Nascido Pere Casaldàliga i Pla, em Balsareny, na província catalã
de Barcelona (Espanha), a 16 de Fevereiro de 1928 e emigrado para o Brasil, em
1968, como missionário da sua congregação, os padres claretianos, viria a
sofrer várias ameaças de morte (numa das ocasiões, teve mesmo de se esconder,
como Fernando Alves evocava na TSF em Dezembro de 2012),
esteve várias vezes para ser
expulso do Brasil durante a ditadura militar, sofreu incompreensões de algumas
estruturas eclesiásticas, teve posições que muitas pessoas não entenderam. Mesmo
assim, persistiu na sua forma de estar.
No Brasil, com o Pacto das Catacumbas
Em 1968, chegado ao Brasil, o
padre Casaldáliga encontrou no Mato Grosso uma região marcada pela imensa
miséria e analfabetismo, pelo poder dos grandes latifundiários e por
assassinatos frequentes dos líderes e das populações indígenas ou rurais.
Nomeado administrador apostólico
de São Félix em 1970 e bispo no ano seguinte, recebeu a ordenação episcopal em
Outubro de 1971. Na sua actividade episcopal, aderiu ao Pacto das Catacumbas, um documento assinado por vários
bispos que tinham participado no Concílio Vaticano II, e que se comprometiam a
viver de forma despojada e servindo o anúncio do Evangelho entre os mais
pobres. O Pacto é uma das etapas fundamentais que levará ao aparecimento de
líderes como o Papa Francisco.
Dom Pedro, como é carinhosamente
tratado, privilegiou uma linha de actuação marcada pela construção de
comunidades eclesiais de base, onde a Bíblia, a participação de todos e a diversidade
dos ministérios eram orientações primordiais. A par dessa perspectiva, opôs-se
civicamente à ditadura militar, na defesa dos direitos humanos e de uma
sociedade mais justa e solidária.
Com outras vozes de bispos e
teólogos brasileiros – Hélder Câmara, Paulo Arns, Aloísio Lorscheider, Leonardo
Boff, Mauro Morelli, entre muitos outros – construiu uma linha eclesial marcada
pela teologia da libertação – ou seja, pela perspectiva de que o evangelho pode
ser uma força motriz para a libertação das diferentes formas de opressão que
aprisionam pessoas e povos.
Nessa época – décadas de 1970-1980
– foi também um dos bispos impulsionadores do Conselho Indígena Missionário, da
Comissão da Pastoral da Terra ou da Campanha da Fraternidade, entre vários
organismos e iniciativas da Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB)
destinadas a concretizar as orientações pastorais sugeridas no Pacto das
Catacumbas ou nos documentos das assembleias do episcopado latino-americano realizadas
em Medellin (Colômbia, 1968) e Puebla (México, 1979).
Alvo de várias ameaças de morte,
Casaldáliga chegou a ver um dos seus padres, o jesuíta João Bosco Burnier, ser
agredido e alvejado na nuca. E por cinco vezes teve processos instaurados para
sair do Brasil.
Sofrendo de Parkinson há vários
anos (chama “Irmão Parkinson” à doença, como se recorda neste perfil publicado na edição brasileira do El País), nem por isso Dom Pedro deixou
de se empenhar nas lutas do seu povo e na defesa dos mais desvalidos, tendo
mesmo chegado, há dez anos, a criticar o governo do Presidente Lula por parecer
que gostava mais dos mais ricos que dos mais pobres, como dizia nesta
entrevista (em espanhol).
Apesar da doença, continua a ser
“um santo vivo”, como notava José Manuel Vidal, director do ReligionDigital,
nesta reportagem de Julho do ano passado.
Autor de várias obras em que cruza
as ciências sociais com a teologia, Casaldáliga é também poeta e foi co-autor
dos poemas da Missa dos Quilombos,
composta por Milton Nascimento:
Estamos chegando do ventre das Minas,
estamos chegando dos tristes mocambos,
dos gritos calados nós somos,
viemos cobrar.
Estamos chegando da cruz dos engenhos,
estamos sangrando a cruz do Batismo,
marcados a ferro nós fomos,
viemos gritar.
“E este sol e estes rios...”
O padre Ángel García Rodríguez, fundador dos Mensageiros da Paz (à esquerda),
com o bispo Casaldáliga, em Julho do ano passado (foto reproduzida daqui)
Num outro dos seus poemas, retoma
o compromisso tomado no convite para a sua ordenação episcopal:
Não ter nada.
Não levar nada.
Não poder nada.
Não pedir nada,
E, de passagem,
Não matar nada; não calar nada.
Somente o Evangelho, como uma faca afiada,
E o pranto e o riso no olhar,
e a mão estendida e apertada,
e a vida, a cavalo, dada.
E este sol e estes rios e esta terra comprada,
como testemunhas da Revolução já estalada.
E mais nada!
Desde o início da sua missão no
Brasil, manteve correspondência com uma rede imensa de amigos espanhóis, aos
quais enviada cartas abertas a falar dos problemas e das alegrias das suas
tarefas missionárias, da realidade social e política, da vida e tensões
internas do catolicismo. No início, as cartas eram policopiadas por um pequeno
grupo e distribuídas a mais de 800 pessoas.
Com o tempo, essa rede foi-se
alargando. Em 2011, as cartas enviadas entre 1980 e 2009 foram publicadas em
Espanha. O teólogo Benjamín Forcano, que apresenta o livro, escreve que nunca
encontrara uma pessoa que transmitisse “paixão pelo Evangelho e por viver em
coerência com tanta liberdade, pobreza e profecia” como Pedro Casaldáliga. Ontem,
o ReligionDigital publicou um testemunho escrito por Forcano e Xabier Pikaza.
Na primeira das cartas, escrita em
Março de 1980, Casaldáliga fala do assassinato de Oscar Romero, o arcebispo de
El Salvador que tinha sido vitimado por paramilitares ligados ao Governo do seu
país – e que foi reconhecido como mártir em 2015 e finalmente beatificado em Maio desse ano.
“A morte de monsenhor Romero é um
acontecimento histórico, de incalculáveis consequências, para a Igreja e para
os povos da América Latina”, previa Casaldáliga. “Temos um novo mártir da
libertação, outro santo da América.”
Na mesma carta, antecipando a vivência da
Páscoa, acrescentava: “Continuemos fiéis e simples, fortes na ‘absurda’
Esperança
– a mesma de que falava no seu cartão de convite para
a ordenação episcopal. Em todo o caso, Cristo é o Senhor. E a História acabará muito melhor
do que nós imaginamos.”
Comunidades orantes, servidoras, proféticas...
A pequena capela da casa de Dom Pedro (foto reproduzida daqui)
Chamado ao Vaticano para explicar
várias das suas opções, Casaldáliga insistia na sua opção radical pelo
Evangelho. Também por isso, e pelo novo clima que se vive em diversas
estruturas da Santa Sé, a Rádio Vaticana dizia dele, em Junho do ano passado,
que Casaldáliga vivera “sempre e sem medo” a opção pelos pobres.
E, a propósito dos seus 90 anos, o jornal L'Osservatore Romano dedicava-lhe um
perfil, escrito por Óscar Elizalde Prada
e que pode ser lido aqui em tradução portuguesa).
Na última das Cartas Abiertas (ed. Nueva Utopia, Madrid), propunha que o Vaticano deveria
deixar de ser um Estado e o Papa chefe de Estado e que a Cúria Romana teria de
ser reformada – o que está a acontecer, com o projecto promovido pelo Papa Francisco.
No mesmo texto, de 2009,
acrescentava: “Como Igreja, queremos viver, à luz do Evangelho, a paixão obsessiva
de Jesus, o Reino. Queremos ser Igreja da opção pelos pobres, comunidade
ecuménica e macro-ecumémica também. O Deus em quem acreditamos, o Abbá de
Jesus, não pode ser de modo nenhum causa de fundamentalismos, de exclusões, de
inclusões absorventes, de orgulho proselitista. (...) A Igreja será uma rede de
comunidade orantes, servidoras, proféticas, testemunhas da Boa Nova: uma Boa
Nova de vida, de liberdade, de comunhão feliz. Uma Boa Nova de misericórdia, de
acolhimento, de perdão, de ternura, samaritana de todos os caminhos da
humanidade”, comprometida com “as grandes causas da humanidade da justiça e da
paz, dos direitos humanos e da igualdade reconhecida de todos os povos”.
1 comentário:
http://servicioskoinonia.org/Casaldaliga/cartas/DeclaracaoDeAmor.htm#more
Eu, bispo à esquerda, poeta a caminho, vindo de outros mundos mas enxertado na Pátria Grande como um rebento mestiço de culturas e anelos, missionário com certa vocação para evangelizar «macedônios», e claretiano daquele que foi arcebispo de Santiago de Cuba, faço esta declaração, aos vinte e tantos de fevereiro de 1999, esperando que termine menos mal este milênio, «deslumbrante e cruel», enquanto a pós-modernidade anda sem rumo e querem declarar-nos «cansada» a utopia.
Eu venho do Brasil, que também é latino-americano, do rio Araguaia, fronteira de lua e pássaros e lutas da grande Amazônia. Venho do Santuário dos Mártires da Caminhada, onde se conserva viva a «memória perigosa» de todo o sangue derramado pela causa grande da Libertação; e onde, por certo, estão presentes, ecumenicamente, os jovens cubanos Frank Pais e Antonio Echeberría.
«Declaração de amor» digo, não de ódio, nem de desprezo nem de indiferença; porque - entre outras coisas para amar e para discutir e para corrigir - trata-se de uma revolução nossa, desta Pátria Grande que é Nossa América.
É uma declaração, em voz alta e de coração aberto, para que fiquem sabendo as ondas que vão e vêm pelo mar Caribe e os silêncios expectantes dos Andes e as geladas vidraças de Wall Street. Mas em parábola, para que não se entenda mais que o devido, e para que os irmãos e irmãs que queiram o entendam do coração e na esperança.
Acossada e acusada, a revolução deve continuar fazendo-se, mas total. E deve saber que o fracasso pode ser um fracasso processual, um fragmento do grande fracasso pascal que termina no triunfo da Vida.
Os adjetivos às vezes são substantivamente qualificativos, e por isso eu disse revolução «total». As revoluções, já se sabe, podem ser parciais, partidistas, talvez imediatistas. Como cristãos, dizemos - e cremos - que o Reino de Deus, que é a Revolução do próprio Deus, «já é, mas ainda não». Total há de ser, ademais, porque a boa revolução que sonhamos e que a gente quer para esta Cuba amada e para Nossa América e para o mundo, é a revolução das almas, a revolução das relações, a revolução das estruturas. Mas revolução, porque de reformas ao estilo das democracias formais já estamos mais que cansados. O que queremos é «a dignidade plena do homem (e da mulher)», como diria «o apóstolo» Martí; aquele «exercício íntegro» que ele desejava para sua pátria - e «que não corra perigo a liberdade no triunfo», advertia - e que ele deseja agora - vivo na pedra da história e na glória merecida -, para toda a «pátria que é Humanidade» e para toda esta «América de qual somos filhos e filhas».
Quanta sociologia puder proclamar e viver esta humana terra da família de Deus se reduz - quase nada! - a conjugar dialeticamente estas duas aspirações maiores de nossas vidas e nossos povos: a Liberdade e a Justiça. Conjugar simultaneamente, como cantava o poeta peruano, «a justiça e as rosas», e, acrescentemos, o vento, o Vento...
Enviar um comentário