Análise
A entrevista do Papa às revistas jesuítas tem sido muito comentada, desde a sua divulgação, quinta-feira passada. Nos media, destacaram-se sobretudo os temas de sempre – aborto, homossexualidade, contracepção... Mas a entrevista é verdadeiramente inovadora (e vale a pena ser lida na íntegra, o que é possível fazer já em linha aqui, no sítio da Brotéria e, dentro de poucos dias, na edição da revista em papel; a foto, do Papa com o jesuíta Antonio Spadaro, que o entrevistou, foi também reproduzida do sítio da Brotéria).
Este
documento é inovador não tanto pelo tom utilizado pelo Papa, e que já começamos
a reconhecer, mas pela leitura e pelas propostas concretas que ele faz para a
acção da Igreja. Por exemplo, em relação ao papel das mulheres na Igreja (onde
o Papa diz muito mais do que parece à primeira vista) ou sobre o processo
ecuménico e o diálogo com protestantes e ortodoxos acerca do ministério do bispo
de Roma.
Nesse
sentido, é uma entrevista que procura retomar a plenitude do espírito conciliar,
precisamente na forma e nas questões em que o Concílio Vaticano II (1962-65) ficara
bloqueado: a colegialidade, a missão da Igreja no serviço ao mundo, a essência
do cristianismo.
Uma
grande novidade: o papel da mulher
Antes
disso, importa reter aquilo que me parece uma profunda novidade, quando o Papa
se refere ao lugar da mulher (das mulheres) na Igreja. Diz ele na entrevista
(fica a citação completa, que vale a pena):
“É necessário ampliar
os espaços de uma presença feminina mais incisiva na Igreja. Temo a solução do
‘machismo de saias’, porque, na verdade, a mulher tem uma estrutura diferente
do homem. E, pelo contrário, os argumentos que oiço sobre o papel da mulher são
muitas vezes inspirados precisamente numa ideologia machista. As mulheres têm
vindo a colocar perguntas profundas que devem ser tratadas. A Igreja não pode
ser ela própria sem a mulher e o seu papel. A mulher, para Igreja, é
imprescindível. Maria, uma mulher, é mais importante que os bispos. Digo isto,
porque não se deve confundir a função com a dignidade. É necessário, pois,
aprofundar melhor a figura da mulher na Igreja. É preciso trabalhar mais para
fazer uma teologia profunda da mulher. Só realizando esta etapa se poderá
reflectir melhor sobre a função da mulher no interior da Igreja. O génio
feminino é necessário nos lugares em que se tomam as decisões importantes. O
desafio hoje é exactamente esse: reflectir sobre o lugar específico da mulher,
precisamente também onde se exerce a autoridade nos vários âmbitos da Igreja.”
É nestas últimas frases
que leio a grande novidade. Mas, antes, recuemos ao voo do Rio de Janeiro para
Roma, em Julho, após a Jornada Mundial da Juventude. Na ocasião, o Papa dissera
ser “necessário fazer uma profunda teologia da mulher”. Certo: logo a
seguir, afirmou também, sobre a hipótese de ordenação de mulheres, que a Igreja
(João Paulo II) já dissera que não e que essa era uma porta fechada.
Agora, às revistas jesuítas, o Papa volta
a repetir a necessidade de uma “teologia profunda” e não fala da ordenação. Mas
diz que “o génio feminino é necessário nos lugares em que se tomam as decisões
importantes” e que o desafio actual é “reflectir sobre o lugar específico da
mulher, precisamente também onde se exerce a autoridade nos vários âmbitos da
Igreja.”
Ora, o exercício da
autoridade, nos vários âmbitos da Igreja, está, por enquanto, confinado à
hierarquia e ao ministério do presbiterado. O que o Papa está a dizer,
portanto, é que é preciso reflectir sobre o papel da mulher também no âmbito em
que se exerce a autoridade – ou seja, no âmbito hierárquico.
Isto não significa,
claro, abrir já a porta à ordenação. Mas, sabendo que a exegese bíblica nos diz
cada vez mais que as mulheres tiveram um lugar destacado no grupo que
acompanhava Jesus e que havia mulheres na liderança de várias comunidades
paulinas, o debate sobre esse tema será apenas uma questão de tempo, se quisermos
ser fiéis à intuição de Jesus e do cristianismo primitivo. Mesmo sabendo que
qualquer mudança levará tempo, como também reconhece o Papa quando fala da
mudança em geral: “Será sempre necessário tempo para lançar as bases de uma
mudança verdadeira e eficaz.”
Ler o Concílio
Vaticano II à luz deste tempo
A resposta sobre as
mulheres na Igreja reflecte uma outra atitude do Papa nesta entrevista notável.
Ao falar do Concílio, diz ele: “O Vaticano II foi uma releitura do Evangelho à luz da cultura contemporânea.
Produziu um movimento de renovação que vem simplesmente do próprio Evangelho.
Os frutos são enormes. Basta recordar a liturgia. (...) Sim, existem linhas de
hermenêutica de continuidade e de descontinuidade. Todavia, uma coisa é clara:
a dinâmica de leitura do Evangelho no hoje, que é própria do Concílio, é
absolutamente irreversível.”
Duas notas sobre este
parágrafo: a hermenêutica do Concílio implica que a atitude que levou à sua
convocatória – “reler o evangelho à luz da cultura contemporânea” – deve
orientar permanentemente a atitude fundamental da Igreja. Sabendo também que o
que era válido há 50 anos pode já não ser hoje. E que só essa “dinâmica de
leitura do Evangelho” deve ser “absolutamente irreversível”. Ou seja, a leitura
do Concílio Vaticano II implica também perceber aquilo que são problemas novos,
aos quais os textos do Concílio não respondem plenamente, mas sobre os quais
podem servir de orientação.
Quem
diz Concílio, diz Sínodo
Diz
o Papa ainda, nas suas respostas: “Talvez seja tempo de
mudar a metodologia do sínodo, porque a actual parece-me estática. Isto poderá
também ter valor ecuménico, especialmente com os nossos irmãos ortodoxos. Deles
se pode aprender mais sobre o sentido da colegialidade episcopal e sobre a
tradição da sinodalidade.”
Desde a instituição do
Sínodo dos Bispos, após o Concílio Vaticano II, muitas vozes se foram fazendo
ouvir no sentido de tornar esta estrutura mais fiel ao espírito que tinha
levado à sua criação: o de ser um órgão de consulta do Papa. Apesar disso, o
Sínodo foi sendo reduzido cada vez mais a uma assembleia que se limitava a dar
sugestões para futuros textos dos papas. O papel da Cúria Romana nesse controlo
e nesse processo de fechamento foi sendo evidente.
No seu diagnóstico, o
Papa Francisco diz que a actual metodologia do sínodo é “estática” e que a sua
alteração pode ser positiva, também para o diálogo ecuménico. E mais: a Igreja
Católica pode aprender mais, dos ortodoxos, “sobre o sentido da colegialidade
episcopal e sobre a tradição da sinodalidade.”
Noutra passagem, diz o
Papa Francisco: “Os Consistórios e os Sínodos são, por exemplo, lugares
importantes para tornar verdadeira e activa esta consulta. É necessário
torná-los, no entanto, menos rígidos na forma. Quero consultas reais, não
formais.” E acrescenta, quando fala do sentir da Igreja: “Não é preciso sequer
pensar que a compreensão do sentir com a Igreja esteja ligada somente ao sentir
com a sua parte hierárquica.”
O Papa não o diz
taxativamente, mas está implícito nestas afirmações: é essencial alargar o
processo sinodal a todos os âmbitos da Igreja. A participação do povo de Deus
nos âmbitos da Igreja em que se move é uma condição requerida pelo Concílio
Vaticano II. Só uma dinâmica sinodal, de auscultação de todos e em que todos
tenham direito a fazer-se ouvir e a fazer ouvir o seu “sentir”, permitirá
alargar essa mentalidade.
Escuta,
escuta, escuta
Essa
atitude de escuta e de atenção à realidade é a que deve nortear toda a acção da
Igreja. É disso que se trata quando o Papa se refere ao discernimento, à
oração, ao diálogo, ao modo como os cristãos devem estar na vida ou à forma de
procurar Deus. Como nas citações que aqui ficam, a finalizar, como aperitivo à
leitura integral da entrevista:
“Eu não me via padre
sozinho: preciso de uma comunidade.”
“o discernimento
realiza-se sempre na presença do Senhor, vendo os sinais, escutando as coisas
que acontecem, o sentir das pessoas, especialmente dos pobres. As minhas
escolhas, mesmo aquelas ligadas à vida quotidiana, como usar um automóvel
modesto, estão ligadas a um discernimento espiritual que responde a uma
exigência que nasce das coisas, das pessoas, da leitura dos sinais dos tempos.
O discernimento no Senhor guia-me no meu modo de governar.”
(Sobre o que o
impressiona em Pedro Fabro, um dos primeiros companheiros de Inácio de Loiola):
“O diálogo com todos, mesmo os mais afastados e os adversários; a piedade
simples, talvez uma certa ingenuidade, a disponibilidade imediata, o seu atento
discernimento interior, o facto de ser um homem de grandes e fortes decisões e
ao mesmo tempo capaz de ser assim doce, doce…”
“Na minha experiência
de superior na Companhia, para dizer a verdade, nem sempre me comportei assim,
ou seja, fazendo as necessárias consultas. E isso não foi uma boa coisa.”
“O meu modo autoritário e rápido de tomar decisões levou-me a ter sérios
problemas e a ser acusado de ser ultraconservador. Vivi um tempo de grande
crise interior quando estava em Córdova. Claro, não, não sou certamente como a
Beata Imelda, mas nunca fui de direita. Foi o meu modo autoritário de tomar
decisões que criou problemas.”
“Esta Igreja com a
qual devemos ‘sentir’ é a casa de todos, não uma pequena capela que só pode
conter um grupinho de pessoas seleccionadas. Não devemos reduzir o seio da
Igreja universal a um ninho protector da nossa mediocridade. E a Igreja é Mãe.
A Igreja é fecunda, deve sê-lo. Veja: quando me apercebo de comportamentos
negativos de ministros da Igreja ou de consagrados ou consagradas, a primeira
coisa que me vem à cabeça é: ‘Cá está um solteirão’ ou ‘Cá está uma solteirona’.
Não são nem pais, nem mães. Não são capazes de gerar vida. Pelo contrário,
quando leio, por exemplo, a vida dos missionários salesianos que foram para a
Patagónia, leio uma história de vida, de fecundidade.”
“Os ministros da
Igreja devem ser misericordiosos, tomar a seu cargo as pessoas, acompanhando-as
como o bom samaritano que lava, limpa, levanta o seu próximo. Isto é Evangelho
puro. Deus é maior que o pecado. As reformas organizativas e estruturais são
secundárias, isto é, vêm depois. A primeira reforma deve ser a da atitude.
“Em vez de ser apenas
uma Igreja que acolhe e recebe, tendo as portas abertas, procuramos mesmo ser
uma Igreja que encontra novos caminhos, que é capaz de sair de si mesma e ir ao
encontro de quem não a frequenta, de quem a abandonou ou lhe é indiferente. Quem
a abandonou fê-lo, por vezes, por razões que, se forem bem compreendidas e
avaliadas, podem levar a um regresso. Mas é necessário audácia, coragem.”
“A homilia é a pedra de comparação para calibrar a proximidade e a
capacidade de encontro de um pastor com o seu povo, porque quem prega deve
reconhecer o coração da sua comunidade para procurar onde está vivo e ardente o
desejo de Deus. A mensagem evangélica não pode limitar-se, portanto, apenas a
alguns dos seus aspectos, que, mesmo importantes, sozinhos não manifestam o
coração do ensinamento de Jesus.
“Os queixumes nunca, nunca, nos ajudam a encontrar Deus. As queixas de hoje
de como o mundo anda ‘bárbaro’ acabam por fazer nascer dentro da Igreja desejos
de ordem entendidos como pura conservação, defesa. Não. Deus deve ser
encontrado no hoje.”
“Tenho uma certeza
dogmática: Deus está na vida de cada pessoa. Deus está na vida de cada um.
Mesmo se a vida de uma pessoa foi um desastre, se se encontra destruída pelos
vícios, pela droga ou por qualquer outra coisa, Deus está na sua vida. Pode-se
e deve-se procurar na vida humana. Mesmo se a vida de uma pessoa é um terreno
cheio de espinhos e ervas daninhas, há sempre um espaço onde a semente boa pode
crescer. É preciso confiar em Deus.”
2 comentários:
A propósito da primeira parte da pertinente análise de António Marujo, vale a pena ler o artigo do jornalista Juan Arías, de El País, intitulado "Una mujer cardenal?". Para ler, clicar aqui:
http://internacional.elpais.com/internacional/2013/09/22/actualidad/1379871188_970752.html
O (longo e especulativo) texto de Juan Arías implode neste parágrafo: "Llegada la mujer al diaconado, puede ya, sin cambiar el actual Derecho Canónico, hacer a una mujer cardenal con el título de diaconisa". Pura e simplesmente, isto não é verdade, o que revela ignorância ou, pior, má vontade.
Criar expectativas irreais de mudança serve também para demolir um pontificado, junto da opinião pública, porque daqui a uns anos estarão muitos a dizer que Francisco, afinal, não fez nada do que se "esperava".
O Papa abre caminhos de reflexão nesta entrevista, sobre temas muito delicados, mas fica claro que as decisões, como bem se sublinha aqui, serão tomadas após um processo de escuta e discerimento.
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