Em
1999, Jorge Wemans e eu publicámos o livro Igreja e
Democracia (ed. Multinova), que recolhia uma longa entrevista com D. José Policarpo. Na
hora da morte do ex-patriarca de Lisboa, retomo aqui excertos do capítulo dedicado aos temas da cultura e da igualdade.
A cultura é inevitavelmente dialéctica
P.
– A Igreja tem uma grande preocupação em definir os campos permitidos à
cultura, ao afirmar que determinadas expressões culturais são anti-cultura. Não
há uma relação muito fácil entre a hierarquia católica e a produção cultural
que, em algumas das suas expressões, é apontada pela Igreja como
anti-cultura...
D.
José Policarpo – Penso
que é próprio de um juízo cultural — talvez mais do que em relação a qualquer
outro sector humano — a dimensão ética e moral, que também faz parte da
cultura. A cultura supõe discernimentos. Um ser humano que não sabe discernir e
seleccionar os horizontes do aprofundamento cultural acaba por se perder
no mare magnum das hipóteses. É próprio que cada grupo faça o
discernimento cultural com aquilo que pensa da pessoa humana. Quando não estou
de acordo, no discernimento cultural que faço, com a maneira como o Homem é
concebido e proposto em certos autores ou em certos horizontes culturais, não
significa que não os reconheça como cultura. Significa que é uma cultura com a
qual estou em diálogo dialéctico, porventura em confronto, na medida em que a
cultura é inevitavelmente dialéctica.
O
conceito de anti-cultura entrou na linguagem contemporânea recentemente e é
difícil de definir. Mas, em última análise, significa a proposta e a defesa de
dimensões e de caminhos práticos para o Homem que nós sabemos, pela experiência
histórica (e nós, os cristãos, também pela convicção da nossa fé) que se
acabarão por revoltar contra o Homem. A uma corrente de interpretação da vida e
da sociedade que, por exemplo, não respeite a vida humana, que relativize o
valor supremo da vida humana, posso chamar-lhe anti-cultura.
A
atitude da Igreja não é hoje a de afirmar que há áreas de produção cultural com
a qual nem o contacto é positivo ao conhecimento. Mas por vezes temos a
sensação de que quase há uma certa oposição...
A
Igreja, no seu discernimento cultural tem uma proposta, que é a da dignidade da
pessoa humana na sua relação com Deus e na relação fraterna com os irmãos. Essa
proposta que é o Homem na sua inspiração evangélica (que não significa
necessariamente o praticante, estamos diante da compreensão profunda do que é o
mistério do Homem), leva a Igreja inevitavelmente a fazer discernimento. Mas a
Igreja também é muito plural: pode haver quem se irrite com o que o vizinho do
lado defende e quem não se irrite.
Fazendo
uma comparação histórica, verificamos que já houve épocas em que a relação da
Igreja com o fenómeno cultural era uma relação mecenática, de apoio ao
desenvolvimento das artes, e hoje essa relação quase não existe.
E
porque é que isso aconteceu? Aconteceu porque a Igreja foi, durante muito
tempo, nas sociedades ocidentais, a principal, senão a única expressão
comunitária. É muito difícil que, fora de um contexto comunitário, as pessoas,
os indivíduos encontrem o lugar para a sua produção e o seu desenvolvimento
cultural. A Igreja foi foco e mecenas de cultura porque era, na maior parte dos
casos, a única expressão comunitária.
Também
nunca foi completamente a única. Houve sempre expressões culturais, mesmo no
universo do Ocidente, que aconteceram fora do horizonte específico da Igreja.
Tão pouco hoje é a única, há outros enquadramentos e outros dinamismos de
valorização comunitária. E quando hoje se diz que a Europa é um continente cuja
cultura é de inspiração cristã, podemos dizer que o cristianismo foi a
componente principal, mas não exclusiva, do caldear da cultura europeia. O
judaísmo teve sempre um papel importante e a presença dos árabes foi também uma
grande componente no caldear dessa cultura.
Essa
cultura é uma cultura da igualdade, contudo há novas e crescentes
desigualdades. Qual é a base para poder definir em que é que as pessoas são
iguais: Porque ocupam o mesmo espaço geográfico? Pela sua raça? Pela sua
língua?
A
Declaração Universal dos Direitos do Homem, quando diz que todos os seres são
iguais, refere-se à dignidade fundamental do ser humano. À dignidade da sua
vida, da pessoa humana como projecto, da pessoa humana como qualquer coisa de
sagrado. Significa que qualquer discriminação da pessoa, venha ela por fonte
política, ideológica ou étnica, se se consagra no campo dos princípios, é
injusta. Todos os seres humanos são iguais.
Nas
sociedades contemporâneas voltámos, curiosamente, à intuição da Revolução
Francesa, indo um pouco mais longe que esta declaração de princípios de igualdade,
ao olhar para a igualdade realizada, ao modo como a igualdade acontece nos
contextos sociais em que estamos. Na nossa cultura, neste momento, sublinha-se
muito uma coisa com que estou completamente de acordo, que é a igualdade de
oportunidades. Uma sociedade justa tem de garantir, o mais possível, que todos
os seres humanos, exactamente porque eles têm essa igualdade fundamental, têm o
direito de ser pessoas, de construir a sua própria história.
Não
há igualdades feitas à partida. As igualdades sociais que sejam produzidas por
uma força exterior à pessoa acabarão por ser opressoras. A pessoa humana tem de
ter uma margem de auto-realização, de construção do seu projecto e, para isso,
a igualdade de oportunidades parece-me uma boa definição do que é uma aplicação
da igualdade já em sentido prático.
Há
também as diversas igualdades que se vão discutindo. Hoje fala-se muito da
igualdade entre homens e mulheres, na medida em que seja a afirmação da
igualdade da dignidade como ser humano, a afirmação da igualdade de
oportunidades e a exclusão de discriminações concretas na vida social pelo
facto de se ser homem ou de ser mulher — como também de ser preto ou de ser
branco, de ser isto ou ser aquilo. Tudo isso são concretizações pelas quais
devemos lutar.
O
conceito fundamental de igualdade e de igualdade de oportunidades inclui, no
entanto, e necessariamente, o conceito do direito à diferença. Igualdades que
sejam homogeneidades deixam de ser realizações positivas da igualdade. Às vezes
esquecemos que a luta pelas igualdades não se traduz necessariamente por sermos
a cópia uns dos outros ou termos os mesmos direitos ou a mesma realização. A
diferença homem/mulher, por exemplo, é a grande divisão que a natureza nos
proporcionou, mas que revela também uma enorme complementaridade.
As
diferenças culturais têm a ver com o conceito de tolerância, de que já falámos.
Uma tolerância que não seja apenas o não me importar que o vizinho do lado
exista, mas que seja uma abertura e um reconhecimento dos valores que ele tem e
que eu não tenho e que posso, pelo menos, apreciar e, porventura, partilhar.
Fala-se
muito de interculturalidade, de diálogo intercultural. Não há diálogo
intercultural fecundo se não há atenção à diferença, se não há esta consciência
de que o outro é diferente de mim e que eu posso, no mínimo dos mínimos, ter a
alegria de contemplar essa diferença. Mas que até posso partilhá-la.
Há mulheres capazes de exercer o ministério sacerdotal
Ninguém
quer homogeneizar os sexos, mas a igualdade de oportunidades para ambos os
sexos, em Portugal, está ainda muito longe de ser uma realidade, não lhe
parece?
Penso
que sim. Parece que historicamente é inelutável — na dialéctica de Marx, uma
das formas históricas da revolução era a dialéctica entre os homens e as mulheres
—, mas tenho pena que tenham que ser as mulheres sozinhas a reivindicar. A luta
por um lugar dignificante da mulher na sociedade deve ser uma luta de homens e
mulheres. Penso que é uma pena e um empobrecimento quando essa luta é só das
mulheres. Claro que elas são as primeiras visadas e têm certamente, do seu
universo, uma compreensão mais plena. Mas é isso que é interessante: por mais
avançadas que sejam as sociedades, há aqui um mistério insondável do ser
humano, pois dificilmente um homem penetra no universo feminino e vice-versa.
O
único caminho onde isso ainda é possível é o amor e muitas vezes, nas
sociedades, reage-se pragmaticamente a estes grandes fenómenos, a estes grandes
movimentos. Pessoalmente não tenho uma simpatia congénita por movimentos
feministas, mas tenho uma simpatia muito grande por todos os movimentos que
sejam de defesa daquilo que há de mais precioso (que até nós, homens, temos),
que é a complementaridade das nossas irmãs mulheres. Descobri uma coisa muito
simples: é que dignificar a mulher é dignificar a sociedade, é dignificar a
cultura, é dignificar o próprio homem.
Como
é que encara nesse contexto o debate sobre as quotas de mulheres para os
lugares políticos?
É
uma questão menor num problema grande. Acho uma tentativa um pouco coxa,
justificável numa dialéctica momentânea dos partidos. Eu diria que, do mal, o
menos. Mas parece coxo porque fica por resolver a questão fundamental, de uma
sociedade de verdadeira igualdade de oportunidades, onde ninguém é excluído da
responsabilidade política mas onde não se chega à política por se ser isto ou
aquilo. É evidente que isto só é possível com uma grande mudança de mentalidade
e com uma sociedade que proteja a mulher nas tarefas em que ela é
insubstituível.
É
um sintoma mais grave o que se passa ao nível da violência sobre as mulheres?
É
com certeza mais grave. Porque a violência sobre as mulheres oprime-as a elas,
mas é o sintoma mais grave e mais triste do aviltamento do homem. Um homem que
violenta uma mulher é um homem que desce o mais baixo que pode descer. A
violência sobre a mulher não é um sintoma grave só para as mulheres, é um
sintoma grave da sociedade, é um sintoma grave do próprio homem como ser
masculino.
Como
é que um país como o nosso, tradicionalmente católico, com um fundo religioso,
chegou a este fenómeno de violência?
Como
é que chegou ou como é que ainda não saiu dele?
Ou
como não saiu dele?... A mensagem cristã não penetrou na cultura das pessoas?
Tenho
uma visão muito mais simplista. O fenómeno é velho. A violência entre homens e
mulheres não se pode isolar da violência da sociedade. Talvez ela hoje se
exprima mais. E infelizmente, como se tem visto nas notícias e nos estudos que
têm sido feitos, tem sido trazido ao de cima o rosto silencioso e sofrido da violência
no seio familiar, que era menos conhecido. Hoje, as ciências de análise
revelam-nos coisas que se passavam muitas vezes no silêncio e na intimidade do
lar. Certamente, esse é um contexto onde as coisas podem acontecer, mas não se
pode desligar da violência no seu todo. Um ser humano que não venceu a etapa da
violência, reage com violência na relação pai-filho, homem-mulher,
patrão-empregado. O que há a vencer é a etapa da violência. Isso é uma luta que
a humanidade há-de travar até ao fim porque não creio que alguma vez, neste
mundo, ela se ultrapasse completamente.
Quando
digo que tenho sobre isto uma análise muito mais simplista é porque penso que,
na nossa sociedade, o que isso denuncia é a tremenda fragilidade na educação. É
pura e simplesmente uma fragilidade educacional. Um ser humano que tenha uma
educação sã, sadia e que foi educado no respeito pelo outro e pela sociedade,
há certas coisas que não faz: não rouba carteiras na rua, não bate nas
mulheres... (...)
Falando
ainda da igualdade de dignidade entre os sexos: não faz falta à hierarquia
católica a presença também de um modo feminino de ser pastor?
Essa
é uma questão hoje muito disputada. Ao nível da consciência colectiva e
dos mass media, foi levantada nos últimos anos.
Há
na Igreja Católica, para já, uma posição quase dirimente do acesso das mulheres
ao ministério ordenado. Respondo a isso contando uma história. Durante alguns
anos, representei os bispos portugueses na Comissão dos Episcopados da
Comunidade Europeia. Um dia, perguntei ao representante da Dinamarca como é
que, naquele país, tinha corrido a experiência das mulheres-presbíteros na
Igreja Luterana. Ele deu-me uma resposta curiosa: quando a novidade surgiu,
criou uma certa polémica social, pois a sociedade dinamarquesa não estava
preparada para ver a mulher num lugar cimeiro da comunidade eclesial, na
confissão maioritária que é a luterana; mas, ultrapassado esse primeiro momento
de impacto social, elas são muito bem aceites em certas tarefas, como a de
capelães hospitalares. São menos aceites na condução litúrgica da comunidade.
De qualquer maneira, o juízo deste senhor era positivo, no que dizia respeito à
experiência da Igreja Luterana na Dinamarca.
É
difícil responder a essa questão na Igreja Católica, que deu sempre um lugar
muito importante à mulher, mas noutras tarefas e noutros sectores. Se alguma
vez isso viesse a acontecer, teríamos inevitavelmente um período de adaptação
das comunidades e das pessoas à presença das mulheres nesse ministério. Que
elas eram capazes — as que tivessem vocação para isso —, não tenho dúvidas. Há
mulheres capazes de exercer esse ministério.
As
razões pelas quais a Igreja Católica não se abriu ainda a essa hipótese são
sobretudo as da tradição apostólica, que foi sempre de homens. Não creio que as
coisas estejam ainda amadurecidas e não é por via da reivindicação que se lá
chega. Terão que ser as comunidades e a Igreja, como um todo, a amadurecer o
assunto. É um facto que hoje, mesmo dentro da Igreja Católica, se aceitam
mulheres em papéis que há trinta anos eram impensáveis. Eu responderia assim à
pergunta, num sentido mais amplo...
Mas,
num sentido amplo, reconhece que, olhando para a História, é pena que a Igreja
Católica não tenha esse modo feminino de ser pastor como tradição? Podia ser um
enriquecimento.
Esta
questão tem muito a ver com uma outra, de que nós estamos agora a começar a
sair e a fazer a síntese: a de uma Igreja demasiadamente clericalizada, feita a
partir da hierarquia. Na medida em que a Igreja seja mais Povo de Deus e que
este ministério seja estritamente para o essencial do que é o ministério
ordenado, penso que ganhará mais realce a Igreja-comunidade, a Igreja-Povo de
Deus. E ressaltará muito mais a dimensão pastoral da presença feminina do que
neste esquema de Igreja clericalizada.
Nessa
hipótese, não tenho dúvidas nenhumas em dizer que a Igreja, como comunidade,
não só precisa mas ganha com isso, e tem já uma presença feminina muito forte,
mesmo ao nível pastoral. Há mulheres que exercem responsabilidades pastorais em
sectores importantes da vida da comunidade e já não sei imaginar a Igreja sem a
força dessa presença feminina.
Migrações obrigam a repensar cidadania
Reconhecermo-nos
cidadãos de uma mesma democracia envolve não só a afirmação da igualdade, mas
alguma identificação entre as pessoas. Em sociedades abertas, a imigração e as
desigualdades colocam o problema de saber a quem se reconhece a cidadania. Não
estamos a caminhar no sentido de uma definição demasiado restritiva de quem é
cidadão e pode ter todos os direitos?
A
questão é muito complexa, porque a Humanidade está num ponto de viragem. A
cidadania é uma das categorias que dão fundamento à organização humana. Durante
séculos, ela foi constituída por pólos de unidade: a mesma cultura, a mesma
raça (embora a pluralidade étnica desde há muito se tenha introduzido nas
sociedades), a mesma língua (dificilmente se pode imaginar a cidadania sem uma
mesma língua). O fenómeno da transmutação de populações, as emigrações e as
migrações internas, sejam por que motivos forem (económicos, políticos, de
segurança), nunca como hoje se verificaram na história da Humanidade.
Do
conceito de emigração faz parte o da comunidade que acolhe e daqueles que são
acolhidos. No caso concreto de Portugal, pode haver pessoas ou grupos que
desembarcam aqui por serem refugiados políticos ou por virem à procura de um
mercado de trabalho mais amplo e de uma melhor situação económica.
Eles estão na situação de serem acolhidos — logo, tem que haver uma comunidade
que acolhe. Não seria bom que esses imigrantes chegassem e se confundissem com
toda a gente. Isso levaria a comunidade que acolhe a correr o risco de perder a
alma e a identidade. Quando, numa casa, já não se sabe quem é visita e quem é
da família que recebe, as coisas não correm bem.
Dentro
deste conceito, muito simples, de uma comunidade acolhedora e da pessoa que é
acolhida, há uma fronteira de cidadania política. Quem chega é um hóspede e
quem acolhe é capaz de o fazer, mas não se identifica, à partida e
imediatamente, com os acolhidos.
Hoje,
as comunidades de acolhimento estão sob grandes pressões, que levam ao fenómeno
de se fecharem as portas, como estamos a verificar nas sociedades ocidentais.
São tantos os que batem à porta que esse facto acaba por criar uma atitude de
defesa: “Não temos lugar para todos, tenham paciência, já acolhemos vinte, não
podemos acolher vinte e cinco.”
A
restrição ao acolhimento é um problema sério, que nos vai certamente obrigar a
pensar a humanidade em que queremos viver. É preocupante o que se passa, neste
momento, na União Europeia. Com acordos como o de Schengen, corre-se o risco —
embora tal não esteja na intenção moral de nenhum líder europeu actual — de, na
prática, acabarmos por construir uma espécie de fortaleza protegida contra os
povos do mundo e os forasteiros que olham para o Ocidente mais rico e
desenvolvido como uma pátria de acolhimento.
Há
também o problema da integração, a médio e a longo prazo, das pessoas que
chegam, facto que leva as sociedades a criar mecanismos legais. Essas leis têm
que ser feitas com abertura, mas, ao mesmo tempo, com prudência e sabedoria.
São esses mecanismos legais os únicos que permitem que, sem rupturas — ou seja,
sem deixar de saber quem acolhe e quem é acolhido — se realize a inserção, em
plena cidadania, das pessoas que estão cá há bastante tempo, que têm laços.
Hoje relativizou-se muito a dimensão étnica...
Ainda
que haja guerra na Europa...
Mas,
na consciência internacional, essa dimensão está relativizada. A China ainda
valoriza muito a dimensão étnica no acolhimento da cidadania, mas no resto do
Mundo esse não é hoje o critério mais importante. Conhecer e falar a língua ou
identificar-se com uma história são motivações mais importantes. Curiosamente,
um país como os Estados Unidos, que foi um dos países de acolhimento mais
abertos dos últimos dois séculos, um país que acolhe toda a gente desde que se
consiga lá entrar, mantém-se restritivo em relação à assunção da cidadania.
Mas, os que a obtêm é porque mostraram ser capazes de viver naquela sociedade como
americanos, identificando-se com a história do país e com um conhecimento da
língua. São dados mínimos... (...)
Há
um fenómeno que toca franjas das populações imigrantes, mas não só, que é o das
pessoas que estão à margem do sistema, sem direitos. Preocupa-o esta situação?
Preocupa.
Neste problema, a grande questão não é política, é social. A fronteira acaba
sempre por ser entre os pobres e os ricos e, nesse caso, a situação complica-se
e ganha outros horizontes. No fenómeno da migração económica, passámos de
pequenos grupos que era fácil acolher para multidões vindas dos países pobres
em busca de trabalho em sociedades que, por sua vez, podem entrar em crise
interna, com o desencadeamento de fenómenos de egoísmo e auto-defesa. Há
reacções que são já fruto da auto-defesa interna dos grupos que construíram,
durante um período de tempo, uma história e uma situação social de bem-estar e
que não estão dispostos, de maneira nenhuma, a vê-los postos em questão pela
quantidade de gente que vem de fora e exige esse acolhimento.
Mais
uma vez, este é um problema de prudência e de sabedoria: os nossos irmãos que
vêm das antigas colónias por vezes nem sequer facilitam a integração mínima que
é a legalização como emigrantes. São um alvo fácil para todo o tipo de exploração
porque infelizmente, na sociedade, há sempre alguém que está disposto a
explorar alguém.
O
governo português tem tido uma política, cujas últimas manifestações foram
generosas, de facilitação da legalização das pessoas que estavam sem
documentos. Mas muitas não querem e outras nem sequer deram por isso, o que faz
com que o conjunto de pessoas na clandestinidade ainda seja muito grande. O que
não é bom. As sociedades contemporâneas, super-organizadas como as ocidentais,
não podem ter uma percentagem de coabitantes sem saberem que eles cá estão: o
mínimo que precisamos de saber é quem cá está. Até para sabermos como havemos
de os acolher...
Voltamos
à ideia do acolhimento. Este fenómeno da clandestinidade acontece hoje em todas
as sociedades. Nós, portugueses, temos nisso uma longa e dolorosa experiência.
É uma das componentes maiores da mobilidade entre os povos. E as sociedades,
nos últimos trinta anos, deram passos significativos para acabar com essa
marginalidade social.
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