terça-feira, 4 de março de 2014

Vencer o abismo entre as convicções dos cristãos e a doutrina da Igreja sobre o casamento e a família

A intervenção do cardeal Walter Kasper no consistório de cardeais; o debate sobre o acesso dos divorciados à comunhão; mulheres à frente de organismos da Cúria Romana e um casal a presidir ao Conselho Pontifício para a Família?


(Michelangelo, Queda e Expulsão do Éden; ilustração reproduzida daqui)

“Devemos ser honestos e admitir que, entre a doutrina da Igreja sobre o matrimónio e sobre a família e as convicções vividas por muitos cristãos criou-se um abismo.” A afirmação, sem rodeios, é do cardeal Walter Kasper, ex-presidente do Conselho Pontifício para a Unidade dos Cristãos, no último consistório convocado pelo Papa Francisco, e que reuniu dias 20 e 21 de Fevereiro, antes da cerimónia formal de entrega do anel e barrete cardinalícios a 19 novos cardeais.
Na sua intervenção, que mereceria depois um profundo agradecimento e elogio do Papa, o cardeal Kasper enuncia cinco situações em que se poderia ultrapassar a proibição da comunhão para os divorciados que voltaram a casar: “Não basta considerar o problema só do ponto de vista e da perspectiva da Igreja como instituição sacramental; precisamos de uma mudança de paradigma e devemos – como fez o bom samaritano (Lc 10, 29-37) – considerar a situação também a partir da perspectiva de quem sofre e pede ajuda.”
A intervenção pode ser lida aqui na íntegra (ou aqui, num resumo dos seus pontos essenciais). Nela, Walter Kasper considerou que o ensino da Igreja aparece hoje, para muitos cristãos, como  “distante da realidade e da vida”. E citou a exortação Evangelii gaudium, do Papa Francisco: “A família atravessa uma crise cultural profunda, como todas as comunidades e vínculos sociais. No caso da família, a fragilidade dos vínculos reveste-se de especial gravidade, porque se trata da célula básica da sociedade.” (EG 66).

Grandes dificuldades”, polémica entre cardeais

O cardeal alemão acrescentou que muitas famílias se confrontam hoje com “grandes dificuldades”, referindo especificamente situações como a “migração, fuga e afastamento”, as “condições de miséria indignas do homem”, o “individualismo e o consumismo”, as “condições económicas e de trabalho”. Para concluir: “O número daqueles que têm medo de fundar uma família ou que fracassam na realização do seu projeto de vida aumentou de modo dramático, como também o das crianças que não têm a sorte de crescer em uma família ordenada.”, tal como há um “rápido crescimento das famílias desagregadas, [que] parece ser uma tragédia ainda maior”. E por isso a Igreja “é desafiada por essa situação”, disse.

Além do elogio que fez à intervenção do cardeal Kasper, o Papa falou do tema de novo, na sua homilia da missa matinal na Casa de Santa Marta. Falando do casamento e da sua beleza, Francisco disse que “o amor muitas vezes fracassa” e apelou a que os cristãos sejam capazes de “sentir a dor deste fracasso” e de “acompanhar as pessoas que sofreram este fracasso do próprio amor.”. E apelou: “Não condenem! Caminhem com eles.”
Apesar da intervenção do cardeal e das intervenções do Papa, nada está resolvido. O próprio Walter Kasper disse que compete ao “Sínodo em sintonia com o Papa” reflectir e tomar uma posição sobre o tema. E, em clara oposição ao seu compatriota, está o actual prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Gerhard Ludwig Müller, que já afirmou que “está em jogo o matrimónio como instituição divina” e que, “se o matrimónio é indissolúvel, não pode ser dissolvido”.
O arcebispo de Munique e Freising, cardeal Reinhard Marx, também declarou que a intervenção de Kasper teve a discordância de vários cardeais. Aliás, o mesmo cardeal Marx considerou de uma “prudência incompreensível” as reservas do consistório em que o texto de Kasper fosse divulgado publicamente. Acabou por ser o jornal Il Foglio, sábado passado, a publicá-lo na íntegra, antes da prometida edição em livro. A polémica, bem como outras justificações de Müller para a sua defesa da não dissolução do matrimónio, foi resumida aqui.
À margem desta questão, surge uma outra: a do papel dos leigos católicos – e dos casais – num Sínodo que vai debater questões da família e nas próprias estruturas do Vaticano que tratam dessas questões. O cardeal Óscar Rodriguez Maradiaga, arcebispo de Tegucigalpa (Honduras) e coordenador do grupo de oito conselheiros do Papa, defendeu numa entrevista ao La Croix (aqui citada e resumida), que seria natural um casal presidir ao Conselho Pontifício para a Família. E, numa outra entrevista ao jornal italiano Avvenire (órgão da Conferência Episcopal Italiana), cuja síntese foi publicada aquio cardeal Walter Kasper defendeu também que haja mulheres a presidir alguns conselhos pontifícios e que as nomeações para organismos da Cúria poderiam ser temporárias, evitando o “imobilismo clerical” e a dedicação dos bispos a tarefas burocráticas em vez do múnus pastoral.

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