Antologia de crónicas de frei Bento Domingues sobre questões sociais e políticas está desde hoje à venda.
Com
edição do Círculo de Leitores e da Temas & Debates é posto hoje à venda, no
circuito comercial, o livro Um Mundo que Falta Fazer, antologia de crónicas de frei Bento Domingues no Público. Dedicado a
questões sociais e políticas, este volume pretende ser o primeiro de outros
dedicados a diferentes temas, abordados nestes mais de 20 anos e mil crónicas que frei
Bento já escreveu, desde 2 de Maio de 1992. Reproduz-se a seguir a
apresentação deste volume.
Texto
de António Marujo e Maria Julieta Mendes Dias
A
28 de janeiro de 2001, sob o título “O centro na periferia”, frei Bento
Domingues escrevia assim: “Foi rebentado o Muro de Berlim. É preciso quebrar a
redoma de vidro dos privilegiados. Os gritos e as denúncias, as recomendações,
as esmolas, os remendos, as solidariedades e os perdões da dívida não bastam.
São urgentes propostas discutíveis que coloquem o centro na periferia. Cristo
não nos deixou uma teoria para realizar essa deslocação. na periferia
estabeleceu a sua tenda.”
Foi
isto escrito doze anos antes de o cardeal Jorge Mario Bergoglio ser eleito Papa
com o nome de Francisco e ter começado a falar da importância de dar atenção às
periferias – seja na Igreja seja na sociedade e na política.
Uma
das coisas que impressiona em frei Bento Domingues é, precisamente, a sua
capacidade de perscrutar sinais do porvir no presente que nos envolve. Desde há
muito que a sua voz lúcida, livre e bem‐humorada nos habituou a esse exercício – seja nas suas
crónicas semanais, seja em livros ou em intervenções públicas. O seu modo de
fazer teologia na praça pública há muito que o converteu numa voz original e
incontornável na sociedade portuguesa e na Igreja Católica, em particular.
Seria,
assim, uma lacuna grave para a cultura portuguesa e a teologia cristã se não
pudéssemos voltar a reler muitas das crónicas que, desde há mais de vinte anos
e de mil semanas completadas neste final de 2013, frei Bento Domingues nos dá a
ler no Público, domingo a
domingo.
O
exercício de escolha desses textos, sabemo‐lo, não é fácil, pela qualidade generalizada das
crónicas. Tendo em conta que as crónicas dos primeiros quatro anos e meio (1992‐1996) foram já editadas em quatro volumes, pela
Figueirinhas, ao longo da década de 1990, fizemos uma escolha dos restantes dezasseis
anos, selecionando crónicas relativas a questões sociais e políticas. Para este
trabalho inicial, tivemos a preciosa ajuda de Leonor Sousa, do Centro de
documentação do Público, a quem deixamos aqui um agradecimento reconhecido
e grato. Outros volumes deverão seguir‐se, relativos a outros temas, embora tenhamos claro
que ficará de fora uma parte significativa dos mais de mil textos já publicados
até esta data.
***
No
seu labor teológico, Bento Domingues assume uma interrogação permanente sobre
as razões da sua fé. Nada o deixa sossegado, porque, para ele, o cristianismo é
uma provocação constante: provocação pessoal, provocação aos poderes e ao
próprio modo de se entender a religião. A fé cristã de Bento Domingues é
inconformista, não se quer deixar adormecer.
Isto
é verdade quando os seus textos falam da Igreja ou do poder religioso, mas
também quando trata das questões sociais ou políticas. Nesta matéria, frei
Bento tem tido a preocupação de denunciar o escândalo a que o desnorte (ou o
norte muito bem orientado só para o interesse de poucos) da política e da
finança nos têm conduzido.
Há
mais de uma década, em julho de 2003, escrevia ele, evocando outra figura maior
da Igreja e da cultura (o padre João Resina Rodrigues), que há um “fosso
crescente e vergonhoso entre ricos e pobres, marcado por números assustadores”
e que a “genuína convicção cristã” é a de que “não há entendimento possível com
Deus, se continuarmos de olhos cegos para o mundo dos pobres”. E rematava: “Deus
nos livre da moda atual, que esquece as exigências de transformação da vida
interior e as da transformação da sociedade.”
A
direta implicação entre uma fé que tem a pessoa como horizonte e a intervenção
política que deve concretizar essa dimensão é uma das suas insistências. Numa
outra crónica mais recente (27 de novembro de 2011), frei Bento alertava para a
desumanidade que começa “quando a cura das finanças não se importa com a sorte
das pessoas”.
A
humanidade “é o primeiro caminho que a Igreja deve percorrer no cumprimento da
sua missão”, escrevia João Paulo II no n.º 14 da sua primeira encíclica, O Redentor do Homem (1979). Bento
Domingues soube lê‐lo desde há muito, não desligando a sua condição de
frade dominicano, padre e teólogo do compromisso permanente com os problemas
dos seus concidadãos. O que traduziu em coisas tão diferentes como a Comissão
Nacional de Socorro aos Presos Políticos do regime fascista, como na denúncia
mais recente de que, se aceitarmos “a linguagem perversa de que não há
alternativas [à atual deriva político-financeira], deixamos o campo livre ao
determinismo mais imbecil, optando pelo grau zero do pensamento, desistindo da
condição humana”.
No
livro Frei Bento Domingues e o
Incómodo da Coerência (Paulinas), que recolhe um conjunto de textos de
diferentes pessoas sobre a personalidade e o pensamento do nosso autor, escreve
Anselmo Borges, acerca da teologia de Bento Domingues: “Trata-se de uma
teologia do Reino de Deus [que é] o futuro de Deus enquanto ‘o horizonte mais
abrangente de esperança’ para o mundo em todos os domínios da vida, incluindo,
portanto, a política, a cultura, a economia, a ecologia.”
De
todos esses temas tratam as crónicas antologiadas neste volume: a presente
crise económico‐financeira e os estragos que ela está a provocar à
democracia e à Europa, a reflexão ética sobre o exercício do poder, o escândalo
gritante da miséria de tantos em contraste com a opulência de alguns, a busca
da justiça social, o absurdo da guerra e da corrida armamentista, o diálogo
entre culturas e religiões como caminho para a paz, a laicidade como
possibilidade de exercício da dimensão religiosa das pessoas em sociedades
democráticas. Também a (falta de) alma da Europa, o desafio da paz e da
esperança no Médio Oriente, as ilusões e utopias da América Latina ou a busca
de novos rumos para a martirizada África marcam a reflexão de frei Bento que
aqui se reúne. É o “mundo que falta fazer”, na expressão feliz do título de uma
das crónicas, adotada para título desta antologia.
O
facto de esta antologia ser publicada durante o primeiro ano do ministério do
Papa Francisco também não é casual: há muito que Bento Domingues vem afirmando
muita coisa que, agora, e de outro modo, o Papa também vem insistindo com mais
veemência do que aquela a que estávamos habituados: o evangelho como fonte
primordial, a importância de uma Igreja de acolhimento, a primazia da pessoa
sobre o dinheiro, a centralidade dos pobres, a necessária reforma da igreja...
Podemos, assim, ler com outro olhar o que Bento Domingues foi escrevendo ao
longo de duas décadas e que, agora, tantas vezes é confirmado nas suas
intuições, como aludíamos no início.
Frei
Bento revela nos seus textos, entre outras, ainda mais duas virtudes: a
linguagem incisiva das crónicas cruza‐se, muitas vezes, com os textos da liturgia católica
de cada domingo, num exercício que busca iluminar o quotidiano e a humanidade
com aquela que é a fonte de vida de frei Bento Domingues – a pessoa e o
evangelho de Jesus.
A
segunda tem a ver com o humor. Numa entrevista ao Público, em 1995, a propósito
da primeira coletânea de crónicas (A
Humanidade de Deus, Figueirinhas), dizia frei Bento: “autocrítica é
flagelação, não acho que tenha piada. Eu exerço uma certa contenção nos textos
porque o que me apetecia, muitas vezes, era rir de tudo e escrever textos de
humor. Uma vez, na revista espanhola Vida
Nueva, havia um cartoon de um Menino Jesus nas escadas de uma
igreja a rir‐se do que encontrou lá dentro. Em relação a tudo,
sempre vivi assim. Vi‐me sempre assim.”
Essa
capacidade de olhar para o humor de Deus e de o tentar trazer para os seus
textos é outra das características da sua personalidade e dos seus escritos. Em
fevereiro de 2006, escrevia Bento Domingues: “Se houvesse, nas religiões, mais
humoristas do que apologetas e fanáticos, talvez elas pudessem manifestar
melhor o humor de Deus – mesmo no meio das nossas loucuras – sem nos humilhar e
sem O tornar ridículo. São João escreveu textos de dura controvérsia e cartas
bem polémicas e eram ‘para que a nossa alegria fosse completa’...”
Estes
textos servirão também para tornar a nossa alegria mais completa.
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