Teatro
Maria Rueff (Daja) e Luís Vicente (Nathan) num dos momentos da peça
(foto reproduzida daqui)
O encenador Rodrigo Francisco
confessa qual é a passagem que prefere em Nathan,
o Sábio (em cena no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada e, em Março,
no teatro de São João, no Porto), texto escrito em 1779 por Gotthold Ephraim
Lessing (1729-1781): “Na minha passagem favorita deste poema dramático que Nathan o Sábio é, e que acontece no
primeiro encontro entre o protagonista e o Cavaleiro Templário, este último
lança ao judeu a tirada seguinte: ‘Sabeis,
Nathan, qual foi o povo que pela primeira vez se designou como povo eleito? Quando
e como surgiu a piedosa loucura de ter o melhor Deus, de o impor ao mundo como
o melhor de todos? Esquecei o que vos disse e deixai-me ir embora.’
Resposta de Nathan: ‘Vinde, temos mesmo
de ser amigos.’
Nesta citação, Rodrigo Francisco –
que confessa depois não ser religioso – lê dois argumentos implícitos: “Àquilo
que na época de Lessing (e não só) era palavra corrente no que tocava ao ataque
aos judeus por se considerarem um ‘povo eleito’, o autor faz corresponder uma
resposta na qual ecoa de algum modo o princípio cristão de ‘oferecer a outra face’. ‘Temos mesmo de ser amigos’: já repararam
na importância do provérbio nesta réplica?
No caderno Textos d’Almada (nº 66), dedicado a Nathan o Sábio, Rodrigo Francisco acrescenta a completa pertinência
e actualidade do texto de Lessing: ‘Se há cerca de um ano, quando anunciámos
que montaríamos este texto, ainda restassem algumas dúvidas quanto à sua
pertinência nos dias de hoje, elas ter-se-iam dissipado definitivamente em
Julho passado, quando um grupo de pessoas veio exigir que anulássemos um
espectáculo de uma companhia de dança israelita no Festival de Almada.
Naturalmente, rejeitámos esse acto de censura.”
Nathan, o Sábio, não é apenas a
história da sabedoria do protagonista. É também uma bela história de
cruzamentos tão improváveis quanto possíveis, tão singulares quanto universais:
um judeu que educa uma cristã como filha adoptiva, uma aia cristã que quer
reaver para a sua fé a criança ‘perdida’, um sultão (Saladino) que nos deixará
a perguntar, a partir do meio da peça, quem terá ele visto no cruzado para além
do rosto do seu próprio irmão. E que mistério, pensará também o espectador,
estará por detrás da paixão do cruzado Konrad por Recha – paixão que, afinal,
terá de se transfigurar em outra coisa.
Tolerância, mistérios, histórias
improváveis são servidos aos espectadores com uma encenação depurada: palco
vazio, apenas com as pinturas de Pedro Calapez a servir de quadros de fundo identificadores/cenários
de cada cena, com os respectivos jogos de luzes. Isso permite ao espectador
concentrar-se nos actores (com desempenhos essenciais para nos ajudar a entrar no texto, nos seus ditos e implícitos), nas personagens, no texto.
E este é, de facto, um texto que
des-absolutiza regras que não têm de ser absolutas, que nos ajuda a entender
que o outro pode ser o contrário do que pensamos. Que ajuda a perceber que a
nossa própria identidade pode não ser aquela que julgamos. O teatro, escreverá
ainda o encenador, quer se esteja no palco ou na plateia, “equipa-nos com a tal
ferramenta que nos leva a procurar entender aquilo que nos é estranho. E que
nos aguça o gosto pelo debate, em detrimento do dogma. Mesmo nos casos em que o
que temos diante de nós se encontre nos antípodas daquilo que somos, essa
ferramenta revela-nos também que a tolerância é bastante útil.”
Como também escreve o capuchinho
frei Fernando Ventura no mesmo caderno: “Em Nathan, o sábio, em Nathan, o
homem, está aquele que é capaz de amar para além das diferenças, capaz de ser
ele próprio, diante de si mesmo, diante dos outros e diante de Deus. Mesmo que
Deus não entenda tudo, mesmo que de si próprio não tenha certezas absolutas,
tem a certeza certa de que o seu espaço só pode ser um espaço de construção: um
espaço de construção de relações redimidas! (...) com o coração grande de
Nathan e Saladino; um coração capaz de confundir a lógica de qualquer cruzado
ou de qualquer ‘dono’ de qualquer religião.”
Nathan, o Sábio tem esse coração grande.
Nathan, o Sábio
Teatro Municipal Joaquim Benite, Almada
Até 28 de Janeiro
Quinta a sábado, 21h; quarta e domingo, 16h
Quinta a sábado, 21h; quarta e domingo, 16h
Teatro Nacional de São João, Porto
22 a 25 de Março
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