Texto e fotos de
Filipa Correia/Igreja Viva (Diário do Minho)
Aurora e Maria: empatia imediata desde o início
“Levanta-te
perante uma cabeça branca e honra a pessoa do ancião.
Teme
o teu Deus. Eu sou o Senhor.”
(Levítico 19:32)
Aurora,
de 69 anos, “adoptou” uma neta. Tem dois filhos emigrados. O mais velho mora
perto, mas “tem a vida dele”. Diz ser tímida e por isso não fazer muitas
amizades. Recebeu Maria em sua casa, uma estudante que procurava alojamento.
Faz-lhe companhia. Já não passa os dias e as noites só. E assim se cumpre o
principal objectivo do programa Avóspedagem: alojar estudantes em casa
de idosos para combater a solidão e o isolamento social da população
sénior.
Um
sofá para dois
Aurora,
ou “D. Aurora”, como lhe chama Maria, nasceu numa aldeia em Vila Verde.
Sentia-se só. Mudou-se para o centro de Braga para ter “mais companhia, ver
mais pessoas”. Morava sozinha e o rebuliço da cidade não atenuou o seu
sentimento de solidão. “Uma pessoa sente sempre quando está só.
Quando tem alguém em casa há sempre aquele «bom dia», «boa
noite»,
«até
logo»”, explica. A noite era o que mais lhe custava. Entristecia-a o facto de
“não ter ninguém com quem conversar, desabafar, dizer alguma coisa”. Hoje tem
a companhia de Maria, uma estudante de 18 anos. Ao fim do jantar já não fica
sozinha no sofá. Sempre que possível, sentam-se as duas a ver a novela.
Maria
não tinha por hábito ver televisão, mas a hora da novela já passou a fazer
parte da sua rotina. Natural de Lisboa, veio para Braga para estudar
Psicologia. Quando soube que ficou colocada na Universidade do Minho, começou
a procurar casa, tarefa que se revelou mais difícil do que imaginava. Uma
pesquisa pelo site da Universidade deu-lhe a conhecer o programa Avóspedagem.
O facto de não conhecer a cidade nem ninguém fazia com que se sentisse “desamparada”,
por isso a oportunidade de morar com a “D. Aurora” pareceu-lhe a alternativa
ideal. Vivem juntas desde Outubro. Maria não se arrepende. Não é
de “grandes noitadas”, o que abona a favor da integração no programa. Mas sai
com os amigos de vez em quando, geralmente durante a tarde. Cada uma tem as
suas rotinas e garantem que não se privam de nada. Avisam quando saem e se
vão demorar mais do que o habitual, apenas para que a outra não fique
preocupada. E Aurora faz questão de frisar: “Quem manda nela são os pais,
não sou eu”.
Os
horários das refeições raramente coincidem. Aurora toma o pequeno-almoço
fora. “Tenho algumas amigas que vêm ter comigo, conversamos um bocadinho e
passo assim a manhã. A vida da Maria é diferente da minha”, conta. Por norma,
as suas refeições são num horário mais tardio que as da estudante: “Eu só lá
para as 21h é que como a minha sopinha. E ao almoço é igual, é
sempre mais tarde, lá para as 13h30/14h. A Maria faz ao jeito dela, pode
calhar de comermos ao mesmo tempo ou não. A gente entende-se”. Maria já
conheceu uma das suas netas. “Ela gostou muito da Maria”, revela Aurora. “E eu
também gostei muito da sua neta”, responde Maria, de
imediato.
Aurora
sublinha que foi uma opção sua receber alguém em casa. O filho mais velho, que vive em Braga, sente “um
bocado de ciúmes”. Mas isso não impediu a mãe de acolher a hóspede. Até porque tanto o filho
como a nora trabalham, têm filhos, e o
tempo que sobra para estarem consigo não é muito.
Acima de tudo, preza o facto de agora ter companhia: “A Maria pode até estar
no cantinho dela a estudar, mas sei que está ali alguém, sei que não estou
sozinha. Isso para mim é o mais importante”.
Velhice: sinónimo
de solidão?
Até
à vinda de Maria, Aurora fazia parte dos cerca de 60% de idosos em Portugal
que vivem sós ou na companhia de outros idosos, de acordo com os Censos de
2011. Este valor tem tendência a aumentar, uma vez
que, segundo o Instituto Nacional de Estatística, o agravamento do
envelhecimento demográfico só tenderá a estabilizar daqui a
cerca de 40 anos. Entre 2015 e 2080 prevê-se uma diminuição do número de
jovens de 1,5 para 0,9 milhões, acompanhada de um aumento do número de
idosos, de 2,1 para 2,8 milhões. Assim, o índice de envelhecimento mais do
que duplicará, passando de 147 para 317 idosos por cada 100 jovens, em 2080.
O
Papa Francisco dedicou as suas intenções
de oração
para Dezembro [de 2017] aos idosos de todas as culturas, pedindo “respeito e
consideração” por esta faixa da população.
No [pen]último “O Vídeo do Papa”, Francisco alertou para o crescimento acelerado da população
idosa (com mais de 65 anos), que em 2016 se situava nos 8,48%. Entre os países
com maior percentagem de idosos encontra-se Portugal, com valores
correspondentes a 21% da população.
Tendo
em conta estes dados e uma preocupação em combater o isolamento social dos
mais velhos, em 2012 foi criado o programa Avóspedagem, uma iniciativa
do Fundo Social da Câmara Municipal de Braga em parceria com o Gabinete de
Acção Social. Aliando-se à Universidade do Minho, à Universidade Católica
[pólo de Braga] e à Rede Social de Braga, o programa pretende ainda facilitar a integração
dos estudantes na cidade. Os custos para o estudante são baixos, cingem-se a
um contributo para as despesas com a água, luz e gás, e um valor de 20€
destinado ao Fundo Social, esclarece a directora técnica do Fundo, Marta Sousa.
O programa destina-se a estudantes com idades entre os 18 e os 35 anos que
vivam fora do concelho. Os séniores, por outro lado, deverão ter 60 anos ou
mais e viver sós ou com o cônjuge.
Troca-se
companhia por alojamento, numa partilha intergeracional com mais valias para jovens
e idosos.
Como
referiu o Papa Francisco num encontro com avós no Vaticano, “o futuro de um
povo requer o encontro entre jovens e idosos: os jovens são a vitalidade de um
povo a caminho e os idosos reforçam esta vitalidade com a memória e
sabedoria”.
Marta Sousa, coordenadora do Fundo Social de Braga
Acolher
um desconhecido
Aurora
já falou sobre o Avóspedagem às amigas, mas muitas delas “preferem
estar sozinhas e livres”. “Há pessoas que são muito desconfiadas...”,
acrescenta. Marta Sousa refere que a lista de estudantes que se candidatam ao
programa é bem maior do que a de séniores. O principal desafio que enfrenta é
precisamente transmitir a confiança necessária aos
idosos para acolherem uma pessoa desconhecida em casa. Por vezes, são mesmo os
familiares que não aceitam. Marta explica que para garantir que tudo corre
bem, a equipa faz uma selecção criteriosa dos candidatos ao programa e um
acompanhamento próximo ao longo do período de acolhimento, com visitas e
telefonemas regulares.
Após
uma pré-selecção dos candidatos, é feita uma entrevista
onde procuram perceber as intenções e expectativas do estudante e traçar o
seu perfil, saber se tem uma boa base familiar, se é uma pessoa
tranquila e conhecer os seus gostos pessoais e interesses para que estudante e
idoso sejam o mais compatíveis possível. Logo na entrevista inicial procuram
também perceber se o estudante irá sair à noite com frequência. “Explicamos
muito abertamente que o intuito do programa é fazer companhia ao sénior, e
muitos dos candidatos quando percebem isso optam por não avançar. Se
pretendem aproveitar mais a vida académica,
como é
natural, acabam por não encaixar tanto no programa”,
explica a directora técnica.
Por
outro lado, procuram explicar ao sénior que as suas rotinas poderão sofrer
algumas alterações com a vinda de outra pessoa para casa e saber se o idoso
está receptivo a isso.
Terminada a fase de selecção, estudante e
sénior conhecem-se e decidem se querem avançar ou não, se houve uma “empatia
inicial”.
Marta
e Aurora recordam um acolhimento anterior, de uma estudante de Macau, que não
foi tão bem sucedido. “O que aconteceu é que se tratavam de duas tradições
diferentes. O modo de estar na vida acaba por ser
diferente de nós
portugueses, e isso levou a algumas incompatibilidades”, explica Marta. Mas com
Maria a empatia foi imediata. E até hoje, nenhuma tem motivo de queixa uma da
outra. “A Maria é diferente, é uma menina sensata,
responsável, não é como a maior parte das miúdas de agora
que pouco tempo está em casa”, diz Aurora. Maria sorri. “Felizmente elas gostaram
muito uma da outra”, sublinha Marta.
(Texto
publicado no suplemento Igreja Viva,
suplemento do Diário do Minho, de 4
de Janeiro de 2018)
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