“Nos últimos anos, pensávamos que
os líderes religiosos punidos tinham começado a corrigir os erros do passado.
Estávamos enganados. O Sumo Pontífice aparentemente não aprendeu essa
lição”, afirma o editorial desta terça-feira do National Catholic Reporter, aqui traduzido por Luísa Flores
Somavilla para a página do Instituto Humanitas da Unisinos
(Brasil). Eis o texto:
É difícil sequer imaginar o
sofrimento que as vítimas de abuso sexual clerical tiveram de
suportar. Depois de serem estupradas ou violentadas por pessoas que suas
comunidades tinham lhes ensinado a ver como quase infalíveis, muitos foram
mantidos em silêncio por décadas, envergonhadas ou apenas sem conseguir falar.
Quando realmente se pronunciaram,
seus motivos foram questionados e sua integridade contestada. Foram atacadas,
vitimadas novamente, em processos judiciais e pronunciamentos públicos, já que
bispos, advogados diocesanos e autoridades da igreja negaram as acusações.
A história mostrou que a maioria
das vítimas estava dizendo a verdade. Qualquer reforma que
aconteceu na Igreja deve-se à sua determinação corajosa. A hierarquia foi
apanhada em suas mentiras e humilhada, mas não antes de uma série de fiéis
desconhecidos serem expulsos da Igreja Católica. O escândalo custou a autoridade
moral da Igreja, sua credibilidade e bilhões de dólares.
Nos últimos anos, pensávamos que
os líderes religiosos punidos tinham começado a corrigir os erros do
passado. Estávamos enganados. O Sumo Pontífice aparentemente não aprendeu
essa lição.
Em quatro dias, o Papa
Francisco caluniou vítimas de abuso duas vezes. No voo papal do Peru,
em 21 de janeiro, ele voltou a chamar o testemunho contra o bispo
chileno Juan Barros Madrid de "calúnia". Apesar do relato
de pelo menos três vítimas em contrário, ele voltou a dizer que não havia visto
provas do envolvimento de Barros em um encobrimento para proteger o
notório abusador Pe. Fernando Karadima.
Essas observações são no mínimo
vergonhosas. No máximo, sugerem que Francisco poderia ter-se tornado
cúmplice do encobrimento. O roteiro é bastante familiar: desacreditar o
testemunho das vítimas, apoiar o prelado em questão e contar com o fato de a
atenção pública passar para outra coisa.
É difícil de entender a
insistência com que Francisco defende Barros. Três jornalistas
no voo papal deram oportunidade a que o Papa dissesse exatamente por que
acreditava no bispo, e não nas vítimas que o acusavam. A segunda
jornalista a perguntar sobre Barros a Francisco no voo era uma chilena. Ao
falar com o Papa, sua voz ficou embargada pelo nervosismo ao questionar o
principal líder da Igreja. Ela perguntou: "Por que os testemunhos das
vítimas não são prova para o senhor? Por que não acredita neles?" O Papa
não deu nenhuma resposta satisfatória, apenas repetiu a afirmação de que não há
"nenhuma evidência" contra o bispo.
Infelizmente, a defesa de
Francisco a Barros é apenas a última de uma série de declarações feitas
por ele nos quase cinco anos de papado que machucaram sobreviventes e todo o
corpo da Igreja.
As declarações
do Papa sobre a tolerância zero para abusadores têm sido fortes, mas
ele tem se recusado reiteradamente a lidar com quem acobertou os abusadores de
forma decisiva. Quando se reuniu com os bispos dos Estados Unidos em
setembro de 2015, por exemplo, ele elogiou a "coragem" que tinham
demonstrado nos "momentos difíceis" da crise de casos de abuso e
chegou a observar "o quanto a dor dos últimos anos pesou sobre vós".
Um psicólogo que trabalha
com vítimas de abuso sexual disse, na época, que esses comentários
eram para elas como "um soco no estômago por um papa católico que
descontava o seu sofrimento para evitar o possível sofrimento dos bispos".
No Chile, na semana
passada, Francisco realizou uma reunião com membros do clero do país.
Ele falou sobre vários tipos de dor que o abuso clerical havia causado no país,
como a das vítimas e suas famílias, mas também falou da dor sofrida por
sacerdotes que não foram apanhdos no escândalo.
"Sei que às vezes alguém pode
ter sido xingado no metro ou andando na rua, e que se paga um preço alto por
andar de traje clerical em muitos lugares", disse o Papa ao
clero.
Como é que o Papa pode
comparar ser xingado no metro com o terror de uma criança ser estuprada? Como?
Parece que nenhum dos
colaboradores mais próximos de Francisco ficou chocado com
observações de Francisco de dois dias depois, quando ele se esquivou de
perguntas dos jornalistas sobre Barros e chamou as acusações contra o
bispo de "calúnia" pela primeira vez. Em uma crítica aberta em uma
declaração, como as que temos lutado para encontrar casos semelhantes na
história recente da Igreja, o cardeal de Boston, Sean O'Malley, disse que
a calúnia do Papa às vítimas causou-lhes "grande sofrimento”.
É preciso aplaudir a ação
de O'Malley. Ele poderia ter falado baixinho para Francisco. Talvez
ele soubesse que tinha deixado vítimas de abuso sem qualquer defensor
proeminente mais uma vez.
Francisco tem uma bela metáfora
para o trabalho dos bispos e padres como pastores que andam entre o rebanho e,
às vezes, atrás, permitindo que as ovelhas sigam o caminho que sentem que devem
seguir. O Papa foi muito avisado sobre o que esperar no Chile. O fato
de ele não ter seguido seu próprio conselho e ter ouvido as pessoas é muito
mais do que decepcionante.
A argumentação colorida
de Francisco contra o clericalismo é frequentemente recontada. Ele
repreendeu a burocracia do Vaticano pela fofoca e oportunismo e descreveu as
"doenças" que os afligem. Em 2014, disse que uma delas é a
"petrificação mental e espiritual" daqueles "que têm um coração
de pedra e insistem no erro”.
Será que Francisco iria
gostar de saber que é assim que muitos classificariam suas palavras
no Chile e no avião papal? Quando se trata de confrontar o
clericalismo, que é a base do abuso, o semblante de pedra do Papa também faz
parte do problema. A pergunta que devemos fazer é: Por que Francisco não está
ouvindo?»
Ler também:
“É preciso uma nova lógica na luta da Igreja contra a pedofilia” (versão em português de um texto do La Croix International)
“Pope Francis' blind spot on sexual abuse”, de Thomas Reese, RNS
“Francis’sdefense of Barros may not satisfy victims, but it’s the right thing to do”,
Austen Ivereigh, Crux
[Imagem: Antoni Gaudí, Basílica da
Sagrada Família (pormenor)]
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