Arvo Pärt (foto reproduzida daqui)
É um profundo louvor
da palavra e da sua meditação em forma de música, esta Passio Domini Nostri Jesu Christi Secundum Joannem, ou Passio, na versão abreviada. A obra do
estoniano Arvo Pärt prende-nos desde o clamor inicial, com a formulação do
título. A partir daí, e até ao “Amen” final, a peça vai-se tecendo numa densa narrativa
do sofrimento e da paixão, história definidora do cristianismo e da sua
identidade – o sofrimento que se transfigura na plena doação, a paixão que se
concretiza como redenção.
Ao contrário de
outras peças musicais que narram ou se fundamentam na mesma história (como as
de J.S. Bach, Heinrich Schütz, Stolzel, Homilius ou Buxtehude, por exemplo –
ver nota e ligações no final deste texto), e nas quais a construção musical é
obviamente fundamental, esta peça de Pärt tem o seu centro na palavra, na
história narrada e contada de geração em geração desde há vinte séculos – uma
história que viria a tornar-se central para tantos homens e mulheres e para o
próprio devir da humanidade. Cantada em latim, a obra ganha uma emoção plena,
que se transfigura também numa intensa perturbação, dimensões às quais a
interpretação dos Hilliard Ensemble não é estranha.
Arvo
Pärt foi um dos três vencedores da edição de 2017 do Prémio Ratzinger de teologia, uma
distinção atribuída pela Fundação Joseph Ratzinger-Bento XVI, em Setembro do
ano passado, e entregue pelo Papa Francisco em Novembro – e um pretexto para (re)encontrar
algumas etapas da sua obra. Na ocasião do anúncio do prémio, o cardeal
Gianfranco Ravasi, presidente do Conselho Pontifício da Cultura, considerou o
músico nascido na Estónia, em 1935, como sendo talvez o maior compositor vivo.
E, quando entregou o prémio, o Papa Francisco enalteceu o facto de a distinção
ter sido alargada às artes – uma ideia que considerou corresponder “bem à visão
de Bento XVI, que muitas vezes nos falou de modo tocante da beleza como via
privilegiada para nos abrir à transcendência e encontrar Deus”. E de quem, acrescentou,
“admirámos a sua sensibilidade musical e o seu exercício pessoal de tal arte
como via para a serenidade e para a elevação do espírito”.
Desde
a sua revelação com Tabula Rasa, na
ECM (1984), que o trabalho de Pärt traduz também, há muito, essa sensibilidade
de fazer da arte e da música uma via para a serenidade e a elevação do
espírito. Numa obra recente, The Deer’s Cry, isso pode verificar-se: o disco começa com uma peça intensa, que dá o
título ao disco, “o grito do veado”: “Cristo comigo, Cristo diante de mim,
atrás de mim, em mim... Cristo à minha direita, à minha esquerda, quando me
deito, quando me sento...” O poema como que ressoa as palavras de São Paulo:
“Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim.” E é essa comunhão só
intensamente possível que aqui se ouve, se sente, se estremece.
A
mesma experiência que se tem com outras composições sugeridas por geografias
tão diversas quanto o México (uma ternurenta Virgencita) ou Portugal (com Três Pastorinhos de Fátima, encomenda do santuário escutada na Sé de Lisboa, em 2015).
Na incursão portuguesa do trabalho de Arvo Pärt, aqui preciosamente cantado
pelos seus compatriotas estonianos Vox Clamantis, surge em toda a sua plenitude
a capacidade do compositor em recriar o mistério, a jovialidade da infância e a
aclamação.
De
outras referências ainda se faz este disco: desde a inspiração bíblica, com o
belíssimo E Um dos Fariseus,
narrando, com um coro e solista, o episódio da mulher pecadora em casa de
Simão; até peças nas quais já reconhecemos a marca Arvo Pärt, como o profundo Da Pacem, Domine ou os hinos litúrgicos Most Holy Mother of God (Santíssima Mãe
de Deus), Gebet Nacht dem Kanon
(oração depois do cânone) ou Habitare
Fratres in Unum (viver como irmãos em união) que, a par da peça sobre
Fátima, é uma das novas composições. Uma beleza capaz de nos pôr a dançar
interiormente ou de, como diz o director artístico dos Vox Clamantis, Jaan-Eik Tulve,
arrebatar por igual grandes líderes espirituais e ateus radicais.
Em Lamentate, como escreve o próprio Arvo
Pärt, se tenta reflectir o esbatimento da fronteira entre o temporal e o
intemporal. Quando se escuta a música deste compositor estónio, a experiência
que temos é desse esbatimento: as suas peças traduzem uma espiritualidade
intensa, quase intemporal, mas enraizada no tempo. Inspirado em Marsyas, escultura de Anish Kapoor, Lamentate é uma obra para piano e
orquestra, assumindo o piano o carácter de instrumento solista. O que lhe dá o
tom certo entre a intimidade solista e o vigor orquestral. No início, o disco
oferece-nos ainda um intenso Da pacem,
Domine, composto a convite de Jordi Savall, e que recria, com as vozes do
Hilliard Ensemble, uma antífona gregoriana do século IX.
A profunda viagem
musical e espiritual de Pärt tem outra etapa importante em In Principio, título que remete para a composição com o prólogo do
Evangelho de São João. O disco inclui seis peças: além da que lhe dá o título,
e por esta ordem, La Sindone fala do
Sudário de Turim, Cecilia Vergine Romana
conta a história da mártir Santa Cecília (século II), padroeira dos músicos, Für Lennart In Memoriam é o requiem para
o funeral do seu amigo e antigo Presidente estónio (1992-2001), Lennart Meri, o
já referido Da Pacem Domine é uma
oração em memória das vítimas dos atentados de Março de 2004 em Madrid (tocada
anualmente em Espanha desde então) e Mein
Weg (escrito originalmente em 1989, para órgão) é aqui revisitada para 14
cordas e percussão.
A música de Pärt
dá-nos a dramaticidade de histórias como as de Cecília, a emotividade de
acontecimentos como os atentados de Madrid ou a intensidade e luminosidade de
um texto como o Prólogo de São João. Compositor de uma espiritualidade vincada,
este In Principio é, sem dúvida, uma
etapa maior da sua obra, já tantas vezes justamente premiada.
Se
mudarmos a rosa dos ventos para a direcção Leste-Oeste, a obra do compositor
continua a traduzir a experiência contemporânea a partir de referências e
histórias antigas. Em Orient Occident,
três peças tentam ultrapassar as fronteiras da morte (a Canção do Peregrino, baseada no Salmo 121, é uma homenagem ao amigo
Grigori Kromanov), da geografia (Oriente
& Ocidente faz uma peregrinação admirável entre as sonoridades das duas
metades da Europa) e da desesperança (Como
o veado sedento retoma os Salmos 42 e 43 para nos levar do desencanto à consolação
e à reconciliação), num trabalho que, todo ele, é de profunda interioridade.
Outro momento alto, entre o meditativo e o minimalista é o
da Sinfonia nº 4. Composta por encomenda da Los Angeles Philharmonic e do seu
director, Esa-Pekka Salonen, em parceria com o Canberra International Music
Festival/Ars Musica Australis e o Sidney Cnservatorium of Music, estreada em
Janeiro de 2009 no Disney Concert Hall, é a primeira sinfonia do músico
estoniano após 38 anos, quando escreveu a terceira. O compositor, que vive no
campo rodeado de silêncio, tinha andado a ler sobre anjos da guarda quando
recebeu a encomenda vinda de Los Angeles (os anjos). Por isso, resolveu subtitular
a obra, para cordas, harpa e percussão, como Los Angeles. E o que aqui temos é uma peça de uma beleza ímpar, que
tem o seu ponto de partida num “cânone do anjo da guarda” e se mescla depois
com a profundidade poética e musical da Igreja Ortodoxa e da cultura eslava.
Ainda com uma nota simbólica adicional: a obra é dedicada ao empresário Mikhail
Khodorkovsky, que tinha ambições políticas e esteve preso, entre 2003 e 2013, numa
prisão siberiana. Não como dedicatória política, mas como expressão de respeito
por um homem que descobriu o “triunfo moral no meio da tragédia pessoal”. E
como tradução do “grande poder do espírito humano e da dignidade humana”.
Passio – intérpretes: Hilliard Ensemble; dir. Paul Hillier
The Deer’s Cry – intérpretes: Vox Clamantis;
dir. Jaan-Eik
Tulve
Lamentate – intérpretes:
Hilliard Ensemble e outros
In Principio – direcção: Tõnu Kaljuste
Orient Occident – Swedish Radio
Symphony Orchestra
Symphony no. 4 – Los Angeles
Philharmonic; dir. Esa-Pekka Salonen
(todos os discos são edição ECM)
Todos os textos,
excepto o que se refere a Passio, são adaptados de artigos publicados na
revista Além-Mar, em Dezembro de 2002, Fevereiro de 2006, Maio de 2009, Outubro
de 2010 e Outubro de 2016; os textos podem ser lidos aqui, procurando os
meses respectivos.
Acerca dos outros autores
citados, podem ler-se textos e ouvir-se excertos ou obras integrais
nas seguintes ligações:
Paixão Segundo São
Mateus, de Heinrich Schütz, vídeo
e a obra de
Buxtehude aqui
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