quinta-feira, 29 de março de 2018

Músicas que falam com Deus (43): Arvo Pärt, ou a música da identidade do cristianismo


Arvo Pärt (foto reproduzida daqui)

É um profundo louvor da palavra e da sua meditação em forma de música, esta Passio Domini Nostri Jesu Christi Secundum Joannem, ou Passio, na versão abreviada. A obra do estoniano Arvo Pärt prende-nos desde o clamor inicial, com a formulação do título. A partir daí, e até ao “Amen” final, a peça vai-se tecendo numa densa narrativa do sofrimento e da paixão, história definidora do cristianismo e da sua identidade – o sofrimento que se transfigura na plena doação, a paixão que se concretiza como redenção.
Ao contrário de outras peças musicais que narram ou se fundamentam na mesma história (como as de J.S. Bach, Heinrich Schütz, Stolzel, Homilius ou Buxtehude, por exemplo – ver nota e ligações no final deste texto), e nas quais a construção musical é obviamente fundamental, esta peça de Pärt tem o seu centro na palavra, na história narrada e contada de geração em geração desde há vinte séculos – uma história que viria a tornar-se central para tantos homens e mulheres e para o próprio devir da humanidade. Cantada em latim, a obra ganha uma emoção plena, que se transfigura também numa intensa perturbação, dimensões às quais a interpretação dos Hilliard Ensemble não é estranha.  

Arvo Pärt foi um dos três vencedores da edição de 2017 do Prémio Ratzinger de teologiauma distinção atribuída pela Fundação Joseph Ratzinger-Bento XVI, em Setembro do ano passado, e entregue pelo Papa Francisco em Novembro – e um pretexto para (re)encontrar algumas etapas da sua obra. Na ocasião do anúncio do prémio, o cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Conselho Pontifício da Cultura, considerou o músico nascido na Estónia, em 1935, como sendo talvez o maior compositor vivo. E, quando entregou o prémio, o Papa Francisco enalteceu o facto de a distinção ter sido alargada às artes – uma ideia que considerou corresponder “bem à visão de Bento XVI, que muitas vezes nos falou de modo tocante da beleza como via privilegiada para nos abrir à transcendência e encontrar Deus”. E de quem, acrescentou, “admirámos a sua sensibilidade musical e o seu exercício pessoal de tal arte como via para a serenidade e para a elevação do espírito”.
Desde a sua revelação com Tabula Rasa, na ECM (1984), que o trabalho de Pärt traduz também, há muito, essa sensibilidade de fazer da arte e da música uma via para a serenidade e a elevação do espírito. Numa obra recente, The Deer’s Cry, isso pode verificar-se: o disco começa com uma peça intensa, que dá o título ao disco, “o grito do veado”: “Cristo comigo, Cristo diante de mim, atrás de mim, em mim... Cristo à minha direita, à minha esquerda, quando me deito, quando me sento...” O poema como que ressoa as palavras de São Paulo: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim.” E é essa comunhão só intensamente possível que aqui se ouve, se sente, se estremece.

A mesma experiência que se tem com outras composições sugeridas por geografias tão diversas quanto o México (uma ternurenta Virgencita) ou Portugal (com Três Pastorinhos de Fátima, encomenda do santuário escutada na Sé de Lisboa, em 2015). Na incursão portuguesa do trabalho de Arvo Pärt, aqui preciosamente cantado pelos seus compatriotas estonianos Vox Clamantis, surge em toda a sua plenitude a capacidade do compositor em recriar o mistério, a jovialidade da infância e a aclamação.
De outras referências ainda se faz este disco: desde a inspiração bíblica, com o belíssimo E Um dos Fariseus, narrando, com um coro e solista, o episódio da mulher pecadora em casa de Simão; até peças nas quais já reconhecemos a marca Arvo Pärt, como o profundo Da Pacem, Domine ou os hinos litúrgicos Most Holy Mother of God (Santíssima Mãe de Deus), Gebet Nacht dem Kanon (oração depois do cânone) ou Habitare Fratres in Unum (viver como irmãos em união) que, a par da peça sobre Fátima, é uma das novas composições. Uma beleza capaz de nos pôr a dançar interiormente ou de, como diz o director artístico dos Vox Clamantis, Jaan-Eik Tulve, arrebatar por igual grandes líderes espirituais e ateus radicais.
Em Lamentate, como escreve o próprio Arvo Pärt, se tenta reflectir o esbatimento da fronteira entre o temporal e o intemporal. Quando se escuta a música deste compositor estónio, a experiência que temos é desse esbatimento: as suas peças traduzem uma espiritualidade intensa, quase intemporal, mas enraizada no tempo. Inspirado em Marsyas, escultura de Anish Kapoor, Lamentate é uma obra para piano e orquestra, assumindo o piano o carácter de instrumento solista. O que lhe dá o tom certo entre a intimidade solista e o vigor orquestral. No início, o disco oferece-nos ainda um intenso Da pacem, Domine, composto a convite de Jordi Savall, e que recria, com as vozes do Hilliard Ensemble, uma antífona gregoriana do século IX.
A profunda viagem musical e espiritual de Pärt tem outra etapa importante em In Principio, título que remete para a composição com o prólogo do Evangelho de São João. O disco inclui seis peças: além da que lhe dá o título, e por esta ordem, La Sindone fala do Sudário de Turim, Cecilia Vergine Romana conta a história da mártir Santa Cecília (século II), padroeira dos músicos, Für Lennart In Memoriam é o requiem para o funeral do seu amigo e antigo Presidente estónio (1992-2001), Lennart Meri, o já referido Da Pacem Domine é uma oração em memória das vítimas dos atentados de Março de 2004 em Madrid (tocada anualmente em Espanha desde então) e Mein Weg (escrito originalmente em 1989, para órgão) é aqui revisitada para 14 cordas e percussão.
A música de Pärt dá-nos a dramaticidade de histórias como as de Cecília, a emotividade de acontecimentos como os atentados de Madrid ou a intensidade e luminosidade de um texto como o Prólogo de São João. Compositor de uma espiritualidade vincada, este In Principio é, sem dúvida, uma etapa maior da sua obra, já tantas vezes justamente premiada.

Se mudarmos a rosa dos ventos para a direcção Leste-Oeste, a obra do compositor continua a traduzir a experiência contemporânea a partir de referências e histórias antigas. Em Orient Occident, três peças tentam ultrapassar as fronteiras da morte (a Canção do Peregrino, baseada no Salmo 121, é uma homenagem ao amigo Grigori Kromanov), da geografia (Oriente & Ocidente faz uma peregrinação admirável entre as sonoridades das duas metades da Europa) e da desesperança (Como o veado sedento retoma os Salmos 42 e 43 para nos levar do desencanto à consolação e à reconciliação), num trabalho que, todo ele, é de profunda interioridade.
Outro momento alto, entre o meditativo e o minimalista é o da Sinfonia nº 4. Composta por encomenda da Los Angeles Philharmonic e do seu director, Esa-Pekka Salonen, em parceria com o Canberra International Music Festival/Ars Musica Australis e o Sidney Cnservatorium of Music, estreada em Janeiro de 2009 no Disney Concert Hall, é a primeira sinfonia do músico estoniano após 38 anos, quando escreveu a terceira. O compositor, que vive no campo rodeado de silêncio, tinha andado a ler sobre anjos da guarda quando recebeu a encomenda vinda de Los Angeles (os anjos). Por isso, resolveu subtitular a obra, para cordas, harpa e percussão, como Los Angeles. E o que aqui temos é uma peça de uma beleza ímpar, que tem o seu ponto de partida num “cânone do anjo da guarda” e se mescla depois com a profundidade poética e musical da Igreja Ortodoxa e da cultura eslava. Ainda com uma nota simbólica adicional: a obra é dedicada ao empresário Mikhail Khodorkovsky, que tinha ambições políticas e esteve preso, entre 2003 e 2013, numa prisão siberiana. Não como dedicatória política, mas como expressão de respeito por um homem que descobriu o “triunfo moral no meio da tragédia pessoal”. E como tradução do “grande poder do espírito humano e da dignidade humana”.

Passio intérpretes: Hilliard Ensemble; dir. Paul Hillier
The Deer’s Cry intérpretes: Vox Clamantis; dir. Jaan-Eik Tulve
Lamentate – intérpretes: Hilliard Ensemble e outros
In Principiodirecção: Tõnu Kaljuste
Orient Occident – Swedish Radio Symphony Orchestra
Symphony no. 4 Los Angeles Philharmonic; dir. Esa-Pekka Salonen
(todos os discos são edição ECM)

Todos os textos, excepto o que se refere a Passio, são adaptados de artigos publicados na revista Além-Mar, em Dezembro de 2002, Fevereiro de 2006, Maio de 2009, Outubro de 2010 e Outubro de 2016; os textos podem ser lidos aquiprocurando os meses respectivos.
Acerca dos outros autores citados, podem ler-se textos e ouvir-se excertos ou obras integrais nas seguintes ligações:
Paixão segundo São Mateus, de J.S. Bach, texto e vídeo
Paixão Segundo São Mateus, de Heinrich Schütz, vídeo
Brockes Passion, de Gottfried Heinrich Stölzel, texto e vídeo
Homilius, texto e excerto aqui
e a obra de Buxtehude aqui

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