Agenda/Livro
No congresso da JOC
(Juventude Operária Católica), em 1935, o cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira
apresentou-se dizendo “Moi, prince de
l’eglise” (“eu, príncipe da Igreja”). O título “corresponde a um estilo” e
“permeia toda a actividade” do homem que foi patriarca de Lisboa entre 1929 e
1971 e que, nesse lugar, promoveu o papel dos leigos na Igreja Católica,
incrementou a formação do clero e dotou a Igreja de Lisboa de diversas
estruturas de modernização.
Estas são algumas
das ideias do livro Cardeal Cerejeira –Um Patriarca de Lisboa no Século XX Português, de Luís Salgado de
Matos (ed. Gradiva). A obra será apresentada amanhã, dia 8 de Março, pelo patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente. A
sessão decorre às 18h30 no Museu de São Roque (Largo Dr. Trindade Coelho),
na capital.
Trata-se da
reescrita de um texto antes publicado em duas versões, mas aqui sujeito a uma
reedição profunda. Além disso, o livro é enriquecido com um conjunto de
ilustrações, muitas delas inéditas ou que revelam pormenores quase
desconhecidos da actividade do antigo patriarca.
No livro, o
investigador Salgado de Matos esboça um retrato de Cerejeira que, como dizia Sousa
Franco em 1971, foi primeiro um “intelectual de combate” e, depois, bispo. Ou que,
como refere o actual patriarca no prefácio que assina no livro, juntou “o
social, o político, o eclesial e o existencial”. Manuel Clemente acrescenta que
“a investigação do autor apresenta‑se original e estimulante, pela variedade
das fontes que utiliza e pelo modo como ensaia um retrato mais completo e
complexo do biografado.”
Fazendo um retrato
impressivo, o autor percorre a biografia de Cerejeira, desde o seu nascimento
minhoto, passando pela época de estudante em Coimbra, altura em que muitas das
suas convicções e modos de ver se formam, com a frequência dos cursos de
teologia e Direito (incompletos) e, depois, Letras.
Percorrendo depois a
sua acção como patriarca – para a qual elegera como programa a recristianização
de um país que ele via como cristão na sua essência –, o livro mostra como esse
percurso se confundiu também com o de um regime autoritário personificado por
Oliveira Salazar, seu amigo dos tempos de Coimbra. Aliás, numa segunda parte mais
temática, Salgado de Matos aprofunda mesmo a relação do cardeal com a política.
Com Salazar, Cerejeira
teve momentos de tensão, sobretudo quando esteve em causa a defesa de pessoas
ou entidades católicas mas, no geral, manteve as relações de proximidade em
nome da estabilidade institucional. Mesmo quando estiveram em causa
personalidades importantes como os padres Abel Varzim ou Joaquim Alves Correia,
ou quando, mais tarde, se colocou a questão da guerra colonial, Salgado de
Matos mostra como Cerejeira preferiu não romper o equilíbrio a favor do regime.
Mostrando a
complexidade da personagem, o autor de Cardeal Cerejeira aprofunda também a
eclesiologia do antigo patriarca, “herdada dos Concílios de Trento e Vaticano
I, centrada na figura do vigário de Cristo” mas que não o impediu de ser o
“precursor de um novo papel dos leigos em Portugal”. Nesse âmbito, foi
relevante o apoio que Cerejeira deu à Acção Católica, que ele via como
organizadora das elites, enquanto encarava Fátima como destinada a reavivar a
fé do povo.
Foi, assim, um
renovador até ao Concílio Vaticano II. Mas, a partir daí, iniciou-se o seu
declínio – quando participa no Concílio, não tinha qualquer apoio ou assessoria
e a passou “despercebido entre os 2200” bispos participantes.
O autor conclui este
estudo com observações certeiras: “Homem de uma época, Cerejeira teve que viver
épocas opostas: coube-lhe aplicar em Portugal dois concílios do Vaticano, o
primeiro, centralizador, papista e transcendental; o segundo, descentralizador,
episcopal e imanentista. A sua religião era mais de redenção do que encarnação,
mais de transcendência do que de imanência, o que lhe dificultou os sérios
esforços de integração na Igreja pós-conciliar.”
Um bom texto, por
isso, para entender o homem e a sua circunstância.
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