segunda-feira, 19 de março de 2018

50 anos da Comunidade Islâmica de Lisboa: dos 15 fundadores à diversificação de correntes espirituais

Imagens do bloco filatélico (em cima) e dos quatro selos da emissão comemorativa dos 
50 anos da CIL (imagens seguintes), emitidos pelos Correios na sexta-feira, dia 16

“Quando os fundadores chegaram, eram as casas de família que acolhiam as suas orações. Até o grupo se tornar de bom tamanho e conseguir o ambicionado terreno na Praça de Espanha – onde os primeiros muçulmanos montaram tenda – para erguer a sua Mesquita. É ali que se juntam hoje os membros da comunidade que aqui nasceu há 50 anos.”
É assim que começa a história da Comunidade Islâmica de Lisboa (CIL), aqui contada pelo DN de sexta-feira e que é hoje apenas um dos 51 centros de culto muçulmano existentes em Portugal, entretanto alargado e diversificado nas suas correntes espirituais e práticas religiosas.
Sexta-feira, dia 16, tiveram lugar, na Mesquita Central de Lisboa, os principais actos comemorativos da efeméride, que se prolongaram no sábado, com vários debates sobre diferentes temas relacionados com a presença do islão na sociedade. Sobre a história e actualidade da CIL pode ler-se também este texto do Público de sexta-feira
AbdoolKarim Vakil, professor de História Portuguesa Contemporânea no King’s College, de Londres, falou, na sessão de abertura das comemorações, sobre a história da CIL e a sua relação com o meio século de “profunda mudança da sociedade portuguesa”. A presença da CIL e do islão em Portugal são simultaneamente espelho e índice dessa mudança, afirmou, referindo os 51 lugares de culto muçulmano que actualmente existem em Portugal.

Diversidade, espiritualidades e novas dinâmicas


Defendendo que em Portugal está “tudo por fazer” no que respeita à documentação, história oral ou levantamento de lugares importantes para a memória da presença islâmica contemporânea, Vakil situou três fases no primeiro meio século de existência da CIL: uma fase colonial, com dois milhões de muçulmanos portugueses, residentes todos nas ex-colónias; uma segunda fase, que vai dos 500 muçulmanos que havia em Lisboa, em 1974, até ao início da construção da mesquita, na década de 1980; em 1982 o número chegava aos 15 mil e esta nova realidade demográfica criou a necessidade premente de uma mesquita.


A terceira fase corresponde à “diversificação e alargamento” da presença muçulmana, com “exilados, imigrantes laborais, convertidos, refugiados e novas gerações”. Esta diversificação corresponde também a uma maior diversidade de “correntes de cultura e espiritualidade islâmica” e introduzem “novas dinâmicas no espaço que era o da CIL”.
AbdoolKarim Vakil citou ainda uma afirmação de Eduardo Lourenço para defender que é necessário rever a história, cultura e mitologia nacional em relação à presença árabe “completamente rasurada”. E referiu o que considera os dois desafios mais prementes: o combate à islamofobia, à securitização, aos populismos e às disparidades sócio-económicas; e a autocrítica que as comunidades muçulmanas devem fazer internamente, seja nos campos do autofinanciamento, seja na questão da representação da diversidade.
Ao encerrar a sessão de abertura, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, condecorou a CIL com a Ordem da Liberdade, por aquilo que a comunidade representa na defesa da “liberdade religiosa e da liberdade em geral”, acrescentando que “os valores humanistas são por natureza os valores do Islão” e apelando a que as futuras lideranças respeitem “o legado dos seus fundadores”.


Ahmed al-Tayeb: “A religião é a primeira vítima das guerras”

Os 50 anos da CIL contaram com a presença do xeque Ahmed al-Tayeb, imã da Universidade de al-Azhar, que concedeu várias entrevistas à comunicação social portuguesa. Aqui fala sobre a Bíblia e o Alcorão, nesta aborda as relações da sua universidade com o Vaticano e as questões colocadas pela guerra na Síriae aqui pede o alargamento dos direitos de nacionalidade aos descendentes de muçulmanos expulsos de Portugal.
Numa outra entrevista a José Manuel Rosendo, na Antena Um, Ahmed al-Tayeb enaltece o exemplo de Portugal no respeito pela diversidade e critica o individualismo, dizendo que a humanidade precisa da ética da religião.
Numa conferência, quinta-feira, dia 15, na Universidade Católica, o imã Ahmed al-Tayeb referiu-se também a alguns destes temas. Citando o teólogo católico Hans Küng, que hoje mesmo, dia 19, completa 90 anos. Mesmo sem referir o nome de Küng, al-Tayeb referiu-se ao seu silogismo: “Não haverá paz no mundo sem paz entre as religiões e não haverá humanidade sem uma ética mundial.”
Em relação aos conflitos que têm destruído vários países, al-Tayeb contesta a ideia da causa religiosa dessas guerras: “A religião é a primeira vítima das guerras, são causas políticas e sociais que estão na sua origem. E acrescentou que são o comércio de armas e o conflito entre “duas potências” os grandes responsáveis por tragédias como as da Síria, do Iémen ou da Líbia. “O coração bate conforme o comércio e as cotações da bolsa”, afirmou, e as potências encontraram ali “um teatro de operações para escoamento de armas”.  
Na apresentação do imã, o professor universitário Adel Sidarus referiu o convite pessoal endereçado pelo imã al-Tayeb ao Papa Francisco, para participar no colóquio inter-religioso da Universidade de al-Azhar, há um ano.
“Não podemos ler o Alcorão sem ler a Torah e a Bíblia de Jesus”, disse o xeque egípcio, acrescentando que “há uma só religião monoteísta, anunciada por Abraão, Moisés, Jesus e Maomé”. Mas hoje, disse, é preciso “um novo começo” entre as religiões, que leve as pessoas a “um caminho de misericórdia”.

Guterres: protecção aos refugiados na tradição árabe pré-islâmica

Também presente na sessão solene, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, destacou o “enorme contributo da CIL para a sociedade portuguesa”, sublinhando depois que “todas as sociedades do mundo são já ou serão multiétnicas, multiculturais e multirreligiosas”.
Referindo que em Portugal já haja também manifestações de racismo, antissemitismo e ódio antimuçulmano, Guterres acrescentou que noutros países esses comportamentos atingiram já “o centro de decisão política”.
 “O extremismo não coincide só com o islão”, disse ainda António Guterres, pois “é inevitável que alguns distorçam a sua religião e que haja perversões”. E sublinhou que, enquanto esteve no Alto Comissariado para os Refugiados, um estudo do ACNUR revelou que as grandes regras da protecção aos refugiados estavam já presentes na tradição árabe pré-islâmica.

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