Luiz Cunha, Jesus Cristo Crucificado,
escultura em espelhos
na Igreja de Nossa Senhora de Fátima, Póvoa do
Valado/Mamodeiro, Aveiro (1967)
(Foto reproduzida daqui)
Diodoro Sícolo refere a história de um deus despedaçado e
disperso. Quem, ao andar pelo crepúsculo ou ao traçar uma data do seu passado,
não sentiu alguma vez que se tinha perdido uma coisa infinita?
Os homens perderam uma cara, uma cara irrecuperável, e todos
queriam ser aquele peregrino (sonhado no empíreo, sob a Rosa) que em Roma vê o
sudário de Verónica e murmura com fé: Jesus Cristo, Deus meu, Deus verdadeiro,
era assim, pois, a tua cara?
Há uma cara de pedra num caminho e uma inscrição que diz
O verdadeiro Retrato da Santa Cara do Deus de Jáen; se realmente soubéssemos
como foi, seria nossa a chave das parábolas e saberíamos se o filho do
carpinteiro foi também o Filho de Deus.
Paulo viu-a como uma luz que o derrubou; João, como o Sol
quando resplandece na Sua força; Teresa de Jesus, muitas vezes, banhada em luz
tranquila, e não pôde nunca precisar a cor dos olhos.
Perdemos esses traços, como pode perder-se um número
mágico, feito de cifras habituais; como se perde para sempre uma imagem no
caleidoscópio. Podemos vê-los e ignorá-los. O perfil de um judeu num
subterrâneo é talvez o de Cristo; as mãos que nos dão umas moedas num postigo
talvez repitam as que uns soldados, um dia, cravaram na cruz.
Talvez um traço da cara crucificada espreite em cada espelho;
talvez a cara tenha morrido, se tenha apagado, para que Deus fosse todos.
Quem sabe se esta noite não a veremos nos labirintos do
sonho e não o saberemos amanhã.
Jorge Luís Borges, Paraíso, XXXI, 108, in O Fazedor
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