Óscar Romero, em 1979, fotografado na igreja de San Antonio Los Ranchos,
em Chalatenango, El Salvador (foto de fr. Octavio Duran/CNS, reproduzida daqui)
Foi um bispo em
construção: a 24 de Março de 1980, faz hoje 38 anos, Óscar Romero, arcebispo de
San Salvador (capital de El Salvador) foi assassinado quando celebrava a
eucaristia. Mártir sem o querer ser, só o foi por assumir aquilo que pare ele
era o essencial: anunciar o evangelho de Jesus, em quem acreditava. E, nesse
evangelho, incluir a centralidade da justiça, da paz, dos direitos humanos, da
dignidade da pessoa, da não-violência.
Duas biografias
publicadas em Portugal e um livro com uma selecção de textos do arcebispo podem
ajudar a compor um retrato do arcebispo mártir, que deverá ser canonizado pelo Papa Francisco, ainda este ano.
E ajudam também a
entender o itinerário pessoal de Romero e porque é que a sua canonização demorou 38 anos: o medo da mensagem
de alguém que passou de “moderado” e “conservador” a um bispo metido no meio do
seu povo e identificado na fase final da sua vida com a teologia da libertação,
prevaleceu nas estruturas de decisão da Igreja Católica.
No livro Óscar Romero – O amor deve triunfar (ed.
Paulinas; o
capítulo 7, “Amor, a vingança dos cristãos”, pode ser lido aqui), Kevin Clark descreve bem os
obstáculos que dominaram em diferentes estruturas da Igreja: vários bispos
salvadorenhos criticavam o empenhamento do arcebispo junto dos mais pobres e
desprotegidos, o núncio Emanuele Gerada (1920-2011) terá começado por apoiá-lo,
confiando na sua “moderação” e vários cardeais no Vaticano [como Alfonso Lopez
Trujillo (1935-2008) ou Darío Castrillón Hoyos (n. 1929)] usavam o seu poder
para influenciar o Papa João Paulo II – que, no início, não entendeu o
arcebispo e acabaria por ceder às acusações medíocres, retardando o seu
processo de beatificação.
Romero nasceu no
contexto de um continente e um país grandes contrastes, como muito bem descreve
o livro de Clarke, que conhece bem o pensamento e acção do arcebispo: “Sessenta
por cento da melhor terra de El Salvadorera controlada por menos de dois por
cento da sua população”, exemplifica o autor. Rapidamente, os grandes produtores
de café, principal fonte de riqueza do país, converteram o poder económico em
poder político. De tal modo que, entre 1898 e 1931, a presidência do país
esteve sempre nas mãos de produtores de café, recorda ainda Clarke.
Em Oscar Romero – A biografia (ed. AO), o autor, Roberto
Morozzo della Rocca, escreve: “Para Romero, o drama de El Salvador tinha origem
essencialmente na injustiça social e exprimia-se pela violência desumana e
inaceitável.” E, como dizia o próprio bispo, citado no mesmo livro: “Se é
verdade que não se pode perdoar o terrorismo nem a violência em nome do
desacordo, também não se pode justificar a violência oficialmente instituída.”
Era um quadro de
miséria institucionalizada e violência extrema: calcula-se que, só entre 1979 e
1981, tenham morrido mais de 30 mil pessoas e o próprio Romero dizia que a sua
vocação parecia ser “andar por aí a recolher cadáveres”. E foi nessa realidade de
condenação dos mais pobres a uma vida de sujeição a um regime de indigência e
quase escravatura que Romero começou a tocar nas feridas da sociedade em que
vivia, procurando as suas causa e a cura das mesmas: “As minhas pregações não
são políticas. São pregações que, naturalmente, tocam a política, tocam a
realidade do povo, mas para a iluminar e dizer-lhe o que é que Deus quer e o
que não quer”, dizia o próprio arcebispo, citado no livro A Doce Violência do Amor (ed. Consolata
Editora) que recolhe excertos de textos, homilias e discursos de Oscar Romero (uma apresentação do livro em Lisboa, em 2013, com o actual cardeal Gregório Rosa Chávez pode ser vista aqui)
Preocupado com esta
realidade social, Romero situava-se inicialmente no campo das denúncias
genéricas da mesma. Ele próprio criticava o empenhamento de padres, religiosos
e outros cristãos nessa dinâmica de combate às injustiças gritantes que
existiam no país e vitimavam muitos responsáveis e membros das comunidades cristãs.
Óscar Romero com um grupo de mulheres e crianças, em El Salvador,
numa foto não datada (CNS/Octavio Duran)
Kevin Clarke conta
mesmo alguns episódios em que Romero retirou determinadas funções a alguns
padres por causa de alegadas cumplicidades marxistas. Na excelente biografia
que traça de Romero, o autor americano – editor-chefe da revista jesuíta America – dá conta da evolução desse
percurso, assinalando o assassinato do padre jesuíta Rutilio Grande, em 1977,
como o ponto de viragem no discurso e prática de Romero. Mais cauteloso,
Morozzo della Rocca fala de uma evolução e não de uma conversão e tenta distanciar
Romero de Ignacio Ellacuría e seus companheiros, os jesuítas da UCA
(Universidade Centro-Americana), que viriam a ser igualmente assassinados em Novembro
de 1989 – facto verdadeiro numa primeira fase, mas errado quando Romero
aprofunda a sua acção.
Lentamente, o
arcebispo foi evoluindo para a denúncia das estruturas sociais injustas,
passando a ser, ele próprio, um alvo dos comandos militares que espalhavam o
terror no país. O que o levaria rapidamente ao martírio.
Se o seu processo
foi uma evolução lenta ou uma conversão rápida, isso é o menos importante. No
prefácio de A Doce Violência do Amor,
Eugénio Fonseca escreve: “Houve, com efeito, um dinamismo de conversão do bispo
Óscar Romero que passou de uma ideia e de uma prática de caridade assistencialista
e ajuda paternalista para uma atitude caritativa diferente.”
Desse caminho, quer
Kevin Clarke quer Morozzo della Rocca vão dando conta, em ambas as biografias
(mais assertivo o primeiro, mais cauteloso, o segundo). Como também revelam um
conjunto de pormenores em que vários membros da hierarquia católica se vão
empenhando para contrariar a acção e o pensamento do bispo salvadorenho, como
contava em Lisboa, em 2013, o seu mais próximo companheiro, hoje cardeal Gregório Rosa Chávez.
Também o debate sobre o martírio e o arrastamento da decisão sobre o processo de beatificação são bastante esmiuçados em ambos os livros. E Kevin Clarke aprofunda ainda as razões da proximidade entre Romero e o Papa Francisco.
Também o debate sobre o martírio e o arrastamento da decisão sobre o processo de beatificação são bastante esmiuçados em ambos os livros. E Kevin Clarke aprofunda ainda as razões da proximidade entre Romero e o Papa Francisco.
Na véspera do seu
assassinato, o arcebispo dirigia-se aos soldados dos esquadrões da morte que espalhavam o terror no país: “Irmãos, vós pertenceis ao vosso
próprio povo. Vós matais os vossos próprios irmãos camponeses; e, frente a uma
ordem para matar dada por um homem, a lei de Deus que diz ‘não mates’ deve
prevalecer. Nenhum soldado é obrigado a obedecer a uma ordem contra a lei de
Deus. Ninguém tem de se vergar frente a uma lei imoral.”
Foi por não se
vergar a leis imorais que Romero foi morto, faz hoje há 38 anos.
(aqui em cima: capa de A Doce Violência do Amor. Sobre o arcebispo
Óscar Romero, pode ler-se aqui uma outra evocação e algumas das suas propostas; há duas semanas, Fernando Calado Rodrigues comentava a decisão da canonização,
dizendo que “os que são lançados e abandonados nas valetas das ruas de Calcutá;
os que são explorados e escravizados na América Latina; ou os pobres dos países
subdesenvolvidos” sobem aos altares com esta e outras canonizações; e aqui pode ler-se,
em inglês, a evocação do frade franciscano Octavio Duran, que acabou por ser
uma como que o fotógrafo oficioso de Óscar Romero.)
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