Crónicas
Foram
diversificados os temas das crónicas de imprensa do fim-de-semana de Páscoa.
Na
sexta-feira, Fernando Calado Rodrigues escreveu no Correio da Manhã sobre as
ajudas que as igrejas dão em tempos de crise, a propósito da proposta da Igreja
Ortodoxa cipriota de ajudar a pagar a chamada dívida pública (que, mais uma
vez, tem a ver essencialmente com o desgoverno de instituições financeiras).
Escrevia: “Foi notícia, na semana passada, a disponibilidade
da Igreja Ortodoxa Cipriota para ajudar o país a sair da crise. Após uma reunião
com o presidente Nicos Anastasiades, o arcebispo Chrysostomos II disse que
"todo o espólio da igreja está à disposição deste país para prevenir o
colapso da economia".
Depois, Calado Rodrigues criticava os que condenam
a Igreja Católica por, alegadamente, não ter a mesma atitude: “Ainda que não tenha chegado ao
ponto de hipotecar o seu património, o Estado do Vaticano, através das mais
variadas organizações católicas, angaria e orienta para os mais desfavorecidos
do mundo milhares de milhões de euros. (...) Aquele comentário é, no mínimo,
injusto para com toda a ação social da Igreja Católica.”
Sábado, no DN, Anselmo
Borges deu à sua crónica o título “Francisco, Bismarck e as bem-aventuranças”,
para citar a fábula de Higino sobre o cuidado que Heidegger retoma em Ser e Tempo. “Para
Heidegger, o cuidado é um existenciário, estrutura originária da existência. O
que é a existência sem o cuidado, cuidar e ser cuidado?”, pergunta o cronista,
para depois citar as referências do Papa Francisco à ideia do cuidado nos diversos discursos e homilias que já fez desde que foi eleito.
Domingo,
no Público, com o título A vida triunfa da morte, frei Bento Domingues escreveu
sobre a teologia da ressurreição, do espanhol Andrés Torres Queiruga:
1. Andrés
Torres Queiruga, um escritor galego muito premiado, teve, no ano passado, um
acidente de trabalho - assim o classificou -, provocado pela Comissão Episcopal
Espanhola para a Doutrina da Fé que, por excesso de zelo, se despistou e foi
contra ele.
Acontece,
com frequência, que a obsessão pela ortodoxia não deixa ver que o verdadeiro
inimigo da fé cristã se aloja na mediocridade cultural, nas receitas de
espiritualidade acéfala, no rubricismo pseudo-litúrgico esquecido das
exigências da linguagem simbólica para dizer a novidade da graça do Espírito
Santo e, sobretudo, numa organização económica, social, cultural e política
geradora de exclusão.
A teologia
viva, criativa, dialogante, como a deste grande intelectual ibérico, nasce da
recusa em aceitar que para ser cristão seja preciso continuar culturalmente
pré-moderno ou, então, que a negação do divino constitua a condição prévia e
indispensável para assegurar a realização social, psicológica, vital, livre e
moral do ser humano.
Se para
afirmar Deus fosse preciso sacrificar o ser humano, Deus estaria condenado e o
ateísmo justificado. Deus, acolhido e celebrado como fonte de vida, foi
acusado, na modernidade, de roubar a liberdade, a criatividade e a felicidade
ao ser humano. O teólogo não pode recusar a participação numa investigação
pluridisciplinar, capaz de apurar as responsabilidades das religiões, das
igrejas e da cegueira humana, nessa acusação. A crítica das práticas e
representações alienantes da religião pertence ao seguimento de Jesus Cristo.
Não há discipulado sem a democratização desta atitude na Igreja.
Crítica não
é má língua esterilizante. Para conceber e experimentar novos caminhos e
expressões que assumam a tradição no seio da criatividade multifacetada de cada
época, ou nos seus desvarios, é indispensável descernimento. Só um Deus de puro
amor pode ajudar a humanidade a ser humana.
2. Uma das
últimas investigações de A. T. Queiruga censurada - e que merece ser a mais
estudada - mostra como a diferença cristã, na continuidade das religiões e da
cultura, está centrada numa esforçada inteligência da Ressurreição (1), que
nada tem a ver com a reanimação de um cadáver. No seu trabalho, não confunde fé
- entrega a Jesus Cristo no seio das contradições da vida - com a pesquisa
teológica. Esta implica a crítica rigorosa das linguagens, das imagens e dos
conceitos para que as metáforas da ressurreição não sejam idolatradas. São
criações poéticas surrealistas que exigem uma ruptura e um salto de
significação: Jesus ressuscitado, embora já não esteja dominado pelas leis do
espaço e do tempo, é o mesmo que teve um percurso que o crucificou, mas que
vive agora, de modo misterioso e actuante, na transformação da existência de
quantos o acolherem; a morte não é última palavra sobre a nossa vida. Não
nascemos para morrer, mas para vencer a morte. No coração do Deus vivo, seremos
os mesmos, mas não seremos da mesma maneira. Deveríamos, por isso, ter a
devoção de andar acompanhados dos nossos mortos, que o não são, como gostamos
da presença permanente de Cristo.
Dito assim,
é só afecto. De forma mais profunda, só as grandes criações da pintura, da
poesia e, sobretudo, da música podem sugerir essa nova vida. É nas
transfigurações do quotidiano e na insurreição contra tudo o que degrada a
condição humana e o seu ambiente que podemos evocar novos céus e nova terra.
Num
funeral, só conseguimos dizer coisas convencionais, de pêsames ou de alívio,
perante o inevitável. Vemos que tudo acaba e, perante a morte de uma pessoa que
nos é muito querida, também morremos um pouco. Onde está a voz, o olhar, as
mãos do outro? E nós, o que somos para essa pessoa que tínhamos como indispensável?
3. Perante
as dificuldades em perceber o sentido da expressão ressurreição da carne (a
ressurreição da pessoa), os pregadores e catequistas têm sempre à mão a tomada
de posição de S. Paulo: se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação,
vazia é também a vossa fé (1Co 15, 14). É um recurso de facilidade, não é um
argumento.
Esquece-se
que, há dois mil anos, este apóstolo inscrevia a ressurreição de Cristo numa
convicção universal: se os mortos não ressuscitam, também Cristo não
ressuscitou. Se não há ressurreição, aqueles que adormeceram em Cristo também
estão perdidos. Se temos esperança em Cristo, tão-somente para esta vida, somos
os mais dignos de compaixão de todos os seres humanos, argumenta o convertido
do caminho de Damasco. Fala, por isso, de numerosas aparições, da sua própria
experiência e desenvolve uma retórica fantástica, mas que não pode evitar
aquilo a que não consegue responder: dirá alguém, como ressuscitam os mortos?
Com que corpo voltam?
Paulo, como
não sabe, recorre às metáforas da agricultura, à morte e vida das sementes. O
fundo de todas as suas declarações e argumentações é, todavia, retintamente
teológico: Deus não é niilista; o amor que nos tem é mais forte do que a morte.
Paulo escreveu um poema fantástico, de leitura obrigatória: Rm 8,31-39.
(1)
Repensar la resurrección, Trotta, Madrid, 3.ª ed. 2005
Ilustração: ícone da ressurreição, século XVI
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