terça-feira, 2 de abril de 2013

As ajudas das igrejas, o cuidado, a morte e a vida


Crónicas

Foram diversificados os temas das crónicas de imprensa do fim-de-semana de Páscoa.
Na sexta-feira, Fernando Calado Rodrigues escreveu no Correio da Manhã sobre as ajudas que as igrejas dão em tempos de crise, a propósito da proposta da Igreja Ortodoxa cipriota de ajudar a pagar a chamada dívida pública (que, mais uma vez, tem a ver essencialmente com o desgoverno de instituições financeiras). Escrevia: “Foi notícia, na semana passada, a disponibilidade da Igreja Ortodoxa Cipriota para ajudar o país a sair da crise. Após uma reunião com o presidente Nicos Anastasiades, o arcebispo Chrysostomos II disse que "todo o espólio da igreja está à disposição deste país para prevenir o colapso da economia".
Depois, Calado Rodrigues criticava os que condenam a Igreja Católica por, alegadamente, não ter a mesma atitude: “Ainda que não tenha chegado ao ponto de hipotecar o seu património, o Estado do Vaticano, através das mais variadas organizações católicas, angaria e orienta para os mais desfavorecidos do mundo milhares de milhões de euros. (...) Aquele comentário é, no mínimo, injusto para com toda a ação social da Igreja Católica.”

Sábado, no DN, Anselmo Borges deu à sua crónica o título “Francisco, Bismarck e as bem-aventuranças”, para citar a fábula de Higino sobre o cuidado que Heidegger retoma em Ser e Tempo. “Para Heidegger, o cuidado é um existenciário, estrutura originária da existência. O que é a existência sem o cuidado, cuidar e ser cuidado?”, pergunta o cronista, para depois citar as referências do Papa Francisco à ideia do cuidado nos diversos discursos e homilias que já fez desde que foi eleito.

Domingo, no Público, com o título A vida triunfa da morte, frei Bento Domingues escreveu sobre a teologia da ressurreição, do espanhol Andrés Torres Queiruga:
1. Andrés Torres Queiruga, um escritor galego muito premiado, teve, no ano passado, um acidente de trabalho - assim o classificou -, provocado pela Comissão Episcopal Espanhola para a Doutrina da Fé que, por excesso de zelo, se despistou e foi contra ele.
Acontece, com frequência, que a obsessão pela ortodoxia não deixa ver que o verdadeiro inimigo da fé cristã se aloja na mediocridade cultural, nas receitas de espiritualidade acéfala, no rubricismo pseudo-litúrgico esquecido das exigências da linguagem simbólica para dizer a novidade da graça do Espírito Santo e, sobretudo, numa organização económica, social, cultural e política geradora de exclusão.
A teologia viva, criativa, dialogante, como a deste grande intelectual ibérico, nasce da recusa em aceitar que para ser cristão seja preciso continuar culturalmente pré-moderno ou, então, que a negação do divino constitua a condição prévia e indispensável para assegurar a realização social, psicológica, vital, livre e moral do ser humano.
Se para afirmar Deus fosse preciso sacrificar o ser humano, Deus estaria condenado e o ateísmo justificado. Deus, acolhido e celebrado como fonte de vida, foi acusado, na modernidade, de roubar a liberdade, a criatividade e a felicidade ao ser humano. O teólogo não pode recusar a participação numa investigação pluridisciplinar, capaz de apurar as responsabilidades das religiões, das igrejas e da cegueira humana, nessa acusação. A crítica das práticas e representações alienantes da religião pertence ao seguimento de Jesus Cristo. Não há discipulado sem a democratização desta atitude na Igreja.
Crítica não é má língua esterilizante. Para conceber e experimentar novos caminhos e expressões que assumam a tradição no seio da criatividade multifacetada de cada época, ou nos seus desvarios, é indispensável descernimento. Só um Deus de puro amor pode ajudar a humanidade a ser humana.

2. Uma das últimas investigações de A. T. Queiruga censurada - e que merece ser a mais estudada - mostra como a diferença cristã, na continuidade das religiões e da cultura, está centrada numa esforçada inteligência da Ressurreição (1), que nada tem a ver com a reanimação de um cadáver. No seu trabalho, não confunde fé - entrega a Jesus Cristo no seio das contradições da vida - com a pesquisa teológica. Esta implica a crítica rigorosa das linguagens, das imagens e dos conceitos para que as metáforas da ressurreição não sejam idolatradas. São criações poéticas surrealistas que exigem uma ruptura e um salto de significação: Jesus ressuscitado, embora já não esteja dominado pelas leis do espaço e do tempo, é o mesmo que teve um percurso que o crucificou, mas que vive agora, de modo misterioso e actuante, na transformação da existência de quantos o acolherem; a morte não é última palavra sobre a nossa vida. Não nascemos para morrer, mas para vencer a morte. No coração do Deus vivo, seremos os mesmos, mas não seremos da mesma maneira. Deveríamos, por isso, ter a devoção de andar acompanhados dos nossos mortos, que o não são, como gostamos da presença permanente de Cristo.
Dito assim, é só afecto. De forma mais profunda, só as grandes criações da pintura, da poesia e, sobretudo, da música podem sugerir essa nova vida. É nas transfigurações do quotidiano e na insurreição contra tudo o que degrada a condição humana e o seu ambiente que podemos evocar novos céus e nova terra.
Num funeral, só conseguimos dizer coisas convencionais, de pêsames ou de alívio, perante o inevitável. Vemos que tudo acaba e, perante a morte de uma pessoa que nos é muito querida, também morremos um pouco. Onde está a voz, o olhar, as mãos do outro? E nós, o que somos para essa pessoa que tínhamos como indispensável?

3. Perante as dificuldades em perceber o sentido da expressão ressurreição da carne (a ressurreição da pessoa), os pregadores e catequistas têm sempre à mão a tomada de posição de S. Paulo: se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia é também a vossa fé (1Co 15, 14). É um recurso de facilidade, não é um argumento.
Esquece-se que, há dois mil anos, este apóstolo inscrevia a ressurreição de Cristo numa convicção universal: se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. Se não há ressurreição, aqueles que adormeceram em Cristo também estão perdidos. Se temos esperança em Cristo, tão-somente para esta vida, somos os mais dignos de compaixão de todos os seres humanos, argumenta o convertido do caminho de Damasco. Fala, por isso, de numerosas aparições, da sua própria experiência e desenvolve uma retórica fantástica, mas que não pode evitar aquilo a que não consegue responder: dirá alguém, como ressuscitam os mortos? Com que corpo voltam?

Paulo, como não sabe, recorre às metáforas da agricultura, à morte e vida das sementes. O fundo de todas as suas declarações e argumentações é, todavia, retintamente teológico: Deus não é niilista; o amor que nos tem é mais forte do que a morte. Paulo escreveu um poema fantástico, de leitura obrigatória: Rm 8,31-39.
(1) Repensar la resurrección, Trotta, Madrid, 3.ª ed. 2005

Ilustração: ícone da ressurreição, século XVI

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