É,
sem dúvida, o acontecimento editorial do ano. Depois de várias tentativas de
completar a edição da obra do padre António Vieira, serão hoje apresentados os
três primeiros volumes da Obra Completa do Padre António Vieira e do projecto
Vieira Global. A edição completa ficará concluída até final de 2014.
D.
Manuel Clemente, historiador e bispo do Porto, e João Adolfo Hansen, da
Universidade de São Paulo (Brasil) farão a apresentação dos três primeiros
livros daqui a pouco, a partir das 18h, na Aula Magna da Reitoria da
Universidade de Lisboa (a sessão terá uma reedição amanhã, na Casa da Música,
no Porto, com Viriato Soromenho-Marques a apresentar a obra). O Teatro Éter e António
Mortágua encenarão um dos sermões de Vieira. A Banda de Investigação da
Universidade de Lisboa, a Ai Deus i u é, o Departamento de Música da
Universidade do Minho e o Sindicato de Poesia também participam neste acontecimento,
que conta com a inauguração de uma exposição de aguarelas de João Alvim,
inspirada na obra do padre Vieira.
Os
três primeiros volumes, que ficarão disponíveis a partir de dia 15, incluem
dois tomos com aquela que é uma das obras maiores da obra vieirina, a Clavis Prophetarum, ou A Chave dos Profetas (o terceiro reúne
as Cartas Diplomáticas, uma dimensão fundamental na vida multifacetada de Vieira). O padre jesuíta e missionário trabalhou
nela durante cinco décadas e era esse texto que ainda o atormentava quando
morreu, em São Salvador da Baía, a 18 de Julho de 1697.
Há
12 anos, tinha já sido publicado (ed. Biblioteca Nacional) o terceiro livro da Clavis, na edição crítica iniciada por
Margarida Vieira Mendes e concluída por Arnaldo Espírito Santo (que é pena que
não integre a vasta equipa de meia centena de investigadores portugueses e
brasileiros que agora edita a obra completa). O mesmo investigador, coordena,
aliás, a edição crítica dos Sermões que tem vindo a ser publicada pela Imprensa
Nacional, e da qual já foram editados dois volumes.
A
publicação da obra completa vieirina, num total de mais de 15 mil páginas, das
quais um quarto serão textos inéditos, era uma empreitada sonhada há século e
meio por muitos investigadores. “Conhecem-se mais de uma dezena de projectos de
edição da obra completa daquele que foi considerado por Fernando Pessoa como
sendo o imperador da língua portuguesa”, dizia há dias, citado no sítio do
Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura,
o historiador José Eduardo Franco que, com o filósofo Pedro Calafate, dirige
esta colecção.
Os
coordenadores da obra referiam que ela “revelará a militância do missionário, a
eloquência do pregador, o empenho e a argúcia política do conselheiro e
diplomata ao serviço do rei de Portugal, D. João IV, o crítico vigoroso da
discriminação social contra judeus e escravos, a defesa de uma sociedade cristã
mais coerente que não segregasse cristãos-novos de cristãos-velhos, o
denunciador da corrupção, o professor e o poeta inspirado, o anunciador de
futuros de esperança em tempo de crise dolorosa com que o nosso país então se
debatia”.
Acrescentavam
os dois coordenadores, na mesma página: “O poder da
convicção, a defesa da tolerância e da dignidade de toda a pessoa humana e a
importância de entregar a vida por causas nobres são alguns aspectos da vida e
obra do padre António Vieira que podem inspirar os homens e as mulheres dos
nossos dias.”.
Esta
manhã, em entrevista à TSF, José Eduardo Franco insistia na extraordinária
actualidade do pensamento de Vieira, nestes tempos de crise, em que os que
pouco ou nada têm são forçados a pagar os desmandos dos que muito sugaram.
Esse
pensamento revela-se por exemplo em muitos Sermões, mas também em textos como a
Clavis. Esta é uma “obra
providencial”, como dizia Arnaldo Espírito Santo em Outubro de 2000, em que se
revela o Vieira utópico e optimista sobre o futuro da humanidade.
O texto do missionário que agora se revela pela primeira vez integralmente, divide-se pela fundamentação bíblica do Reino de Cristo (livro I), a consumação ou não do reino de Cristo na terra, incluindo algumas questões concretas como a integração dos índios na Igreja ou o problema da paz (livro II) e o problema da extensão da salvação (livro III). “Do Reino de Cristo consumado na terra” era o subtítulo desta obra de Vieira, que remete para a profecia da universalidade e que, no terceiro tomo desta obra, abandona a ideia de quinto império como correspondendo ao monarca português D. João IV, e que antes defendera. Na Clavis, revela-se a sua utopia de um mundo e uma Igreja em que ninguém ficaria excluído, fundados sobre os princípios da justiça, da harmonia e da paz. E antecipam-se, embora com a linguagem da época, o diálogo inter-religioso e intercultural que marcam a contemporaneidade.
O texto do missionário que agora se revela pela primeira vez integralmente, divide-se pela fundamentação bíblica do Reino de Cristo (livro I), a consumação ou não do reino de Cristo na terra, incluindo algumas questões concretas como a integração dos índios na Igreja ou o problema da paz (livro II) e o problema da extensão da salvação (livro III). “Do Reino de Cristo consumado na terra” era o subtítulo desta obra de Vieira, que remete para a profecia da universalidade e que, no terceiro tomo desta obra, abandona a ideia de quinto império como correspondendo ao monarca português D. João IV, e que antes defendera. Na Clavis, revela-se a sua utopia de um mundo e uma Igreja em que ninguém ficaria excluído, fundados sobre os princípios da justiça, da harmonia e da paz. E antecipam-se, embora com a linguagem da época, o diálogo inter-religioso e intercultural que marcam a contemporaneidade.
Muitos
desses temas estão também presentes nos Sermões. Sermões como o da Sexagésima, texto que dá início à edição
crítica da Imprensa Nacional, ou o Sermão
da Primeira Dominga do Advento, o da
Nossa Senhora do Ó, o de Quarta-Feira
de Cinzas ou o Sermão de Santo
António aos Peixes estão entre os mais conhecidos. Neles se alude a
questões como a inveja e a ingratidão da pátria, a defesa dos índios e dos
judeus, mas também se encontram múltiplas referências biográficas e pessoais,
como uma autobiografia escondida.
Exemplo
disso é o famoso Sermão de Santo António
aos Peixes, de 1652: “Este sermão (que todo é alegórico) pregou o autor
três dias antes de se embarcar ocultamente para o Reino, a procurar o remédio
da salvação dos índios, pelas causas que se apontam no sermão”.
Feito
no Maranhão, perante os colonos portugueses, o padre jesuíta criticava, nesse
sermão, o grande que come o pequeno: “Não só vos comeis uns aos outros, senão
que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os
pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como
os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só
grande.”
No
da Sexagésima (correspondente ao
penúltimo domingo antes do início da Quaresma, algures entre Janeiro e
Fevereiro) esclarecia Vieira a sua intenção com a publicação dos sermões: “O
meu intento não é fazer Sermonários, é estampar os Sermões que fiz. Assi como
foram pregados acaso, e sem ordem, assi tos ofereço”, escrevia Vieira no
prefácio, dirigindo-se ao “leitor”.
Essa
ideia destaca-se logo nesse texto, quando ele critica a forma como muitos
sermões eram feitos: “Sabeis, cristãos, porque não faz fruto a palavra de Deus?
Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, porque não faz fruto a palavra de
Deus? Por culpa nossa.”
Além
de missionário e jesuíta, de diplomata ao serviço de D. João IV e da causa da
independência de Portugal, Vieira foi perseguido pela Inquisição, mas conseguiu
do Papa Clemente X a suspensão do Tribunal do Santo Ofício em Portugal por
alguns anos.
Nascido
a 6 de Fevereiro de 1608 em Lisboa, filho de Cristóvão Vieira Ravasco e da
mestiça Maria de Azevedo, António foi para a Baía, no Brasil, com seis anos.
Aos 15 entrou no noviciado jesuíta. Um ano depois, ficou com a missão de
escrever o relatório anual da missão para o geral da Companhia de Jesus, a
chamada carta ânua, uma tradição da ordem desde a sua fundação.
Dois
anos antes de ser ordenado padre, em 1633, com 25 anos, Vieira começara a fazer
sermões, neles reflectindo as causas que defendia: a defesa dos índios e dos
judeus, a oposição à escravatura (tema em que por vezes hesita), os vícios da
pátria.
No
Sermão de Santo António, de 1670,
Vieira dizia que “sem sair [de Portugal] ninguém pode ser grande”. E
acrescentava: “Nascer pequeno, e morrer grande, é chegar a ser homem. Por isso
nos deu Deus tão pouca terra para o nascimento, e tantas terras para a
sepultura. Para nascer, pouca terra: para morrer, toda a terra: para nascer, Portugal:
para morrer, o mundo.”
Perseguido
pela Inquisição por defender os judeus, o Santo Ofício quis expulsá-lo dos
jesuítas. Valeu-lhe o apoio de D. João IV, a quem Vieira apoiava na causa da
restauração da independência. Em 1660, depois da morte de D. João e com o
pretexto da publicação de Esperanças de
Portugal, V Império do Mundo, a Inquisição considerou-o “escandaloso”,
“ofensivo”, “fátuo com sabor a heresia e injurioso para a Igreja”. A sentença mandou
depois que fosse "privado para sempre da voz activa e do poder de
pregar".
De
nada valeu essa sentença. Hoje, podemos voltar a redescobrir o gosto de ler
António Vieira.
(Além das obras já referidas e da colecção que hoje e amanhã é apresentada, devem destacar-se ainda outras edições de Vieira existentes no mercado: Sermões e História do Futuro, ambos com prefácio e notas de António Sérgio e Hernâni Cidade, reeditada pela Sá da Costa; Apologia das Coisas Profetizadas (ed. Cotovia), organizada por Adma Fadul Muhana (uma das colaboradoras da Obra Completa); e uma antologia dos Sermões, organizada por António de António Abreu Freire, na Portugália.)
(Além das obras já referidas e da colecção que hoje e amanhã é apresentada, devem destacar-se ainda outras edições de Vieira existentes no mercado: Sermões e História do Futuro, ambos com prefácio e notas de António Sérgio e Hernâni Cidade, reeditada pela Sá da Costa; Apologia das Coisas Profetizadas (ed. Cotovia), organizada por Adma Fadul Muhana (uma das colaboradoras da Obra Completa); e uma antologia dos Sermões, organizada por António de António Abreu Freire, na Portugália.)
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