Crónica
Na sua crónica deste domingo no Público, frei Bento
Domingues escreve sobre o medo que reina nas sociedades contemporâneas por
causa da situação económica e questiona o papel da Igreja Católica e da sua
doutrina social: “Qual é o papel da Doutrina Social dos Papas nas Universidades
Católicas e das investigações das Universidades Católicas na elaboração da DSI?”
Eis a crónica na íntegra:
1. Estamos
na era do medo irremediável ou nas vésperas de “novos céus e nova terra”, como
canta o Apocalipse e que a liturgia continua a proclamar (Ap.21, 1-5)?
O medo, fruto da apreensão de um mal como ameaça
eminente e à qual não se vê como resistir, pode ter várias causas e
muitos rostos. Enquanto tal, é paralisante. O próprio Jesus, ao sentir-se
ameaçado de morte pelo Sinédrio, deixou de andar em público entre os judeus (Jo
11, 54).
Só quando venceu o medo dentro dele próprio,
enfrentou o perigo, embora, em plena oração no Jardim das Oliveiras, tenha sido
assaltado por extrema angústia. As mulheres foram as únicas que, depois do
desastre, venceram o medo. Os discípulos viveram trancados, enquanto o Espírito
Santo não os modificou até à raiz e abriu o seu judaísmo ao mundo pagão, ao
mundo dos gentios. Isto não aconteceu sem um grande debate no Concílio de
Jerusalém. É o tema da Missa de hoje.
Os Evangelhos, ao colocarem na boca de Jesus um
repetido ”não temais”, dizem que não era a audácia que os animava.
O medo paralisa, o amor é criativo. É ele o
mandamento novo, o mandamento da inovação. Onde abunda o amor desaparece o
temor, diz S. João.
2. D.
Manuel Martins tinha falado da ditadura do medo na sociedade portuguesa actual,
devido ao desemprego crescente num modo avassalador: medo de perder o emprego,
medo de não conseguir emprego, medo da miséria. A rendição a todas as condições
de trabalho de empregadores sem escrúpulos, que nem sequer pagam a quem
trabalha, foi denunciada pela Caritas, no primeiro de Maio. No mesmo dia, o
Movimento Mundial dos Trabalhadores Cristãos lembrou algo de mais universal: a
riqueza do mundo pertence, apenas, a 1% de privilegiados. Nos cinco continentes
há duzentos milhões de desempregados. O Papa Francisco alerta: “Quantas pessoas, em todo o mundo,
são vítimas deste tipo de escravidão, na qual é a pessoa que serve ao trabalho,
enquanto deveria ser o trabalho a oferecer um serviço à pessoa para que ela
tenha dignidade. Peço aos irmãos e irmãs na fé e a todos os homens e mulheres
de boa vontade uma decidida tomada de posição contra o tráfico de pessoas, no
âmbito do qual está o “trabalho escravo”.
Na Quaresma de 2010, ao pedir um
gesto fraterno, Jorge Mario Bergoglio escreveu: estamos em risco! Como
sociedade, acostumamo-nos, pouco a pouco, a ouvir e a ver a crónica negra de
cada dia; habituamo-nos, também, a tocá-la e a senti-la à nossa volta sem que
isso mexa connosco; produz, quando muito, um comentário superficial e
descomprometido. A chaga está na rua, no bairro, em nossa casa; no entanto,
como cegos e surdos convivemos com a violência que mata, destrói famílias e
bairros; aviva guerras e conflitos em muitos lugares e olhamos para isso como
mais uma imagem. O sofrimento de tantos inocentes deixou de nos incomodar, o
desprezo dos direitos das pessoas e dos povos, a pobreza e a miséria, o império
da corrupção, da droga assassina, da prostituição imposta e infantil passaram a
ser moeda corrente sem realizarmos que, mais cedo ou mais tarde, teremos de
pagar a factura (cf. Vida Nueva nº 2.844 pg 50).
Isto não é uma fatalidade. É
assim, porque nós consentimos.
3. Segundo as
narrativas da criação, de carácter poético, teológico e ético, o ser humano é
uma criatura criadora, prodigiosa, mas também capaz da maior destruição. Não
vale a pena recuar para qualquer mito de paraíso perdido. De facto, somos nós
que, hoje, herdamos frutos da criação humana de milhares e milhares de anos e,
também, da sua desfiguração. Somos responsáveis pelo nosso presente e pelo
futuro. Compreender o que está a acontecer é a nossa tarefa de cristãos. No
século XIX, Pio IX não compreendeu o sentido do mundo moderno. Fixou o olhar,
apenas, no que julgava inaceitável e escreveu os anátemas do Syllabus.
Leão XIII (1810-1903) inaugurou a Doutrina Social
da Igreja (DSI). Com João XXIII (1881-1963) e o Vaticano II, dá-se uma grande
mudança nessa doutrina: passa-se do anátema ao diálogo. João Paulo II, que
viajava pelo mundo deixando a Cúria à solta, preocupado com o comunismo
marxista que tinha sofrido na Polónia e com os trágicos mal-entendidos acerca
da Teologia da Libertação, vai dar outra viragem à DSI, afinal a doutrina
social dos Papas. Situou-a no campo da teologia moral (A Solicitude Social
da Igreja, nº 41).
Qual pode ser o perigo deste modo de a interpretar?
A DSI não pode cingir-se ao protesto, ao desejo, ao discernimento moral. Não
pode deixar de ter em conta as mudanças provocadas pelas novas ciências e pelas
tecnologias inteligentes, que alteram os próprios dados da questão social. É
para essa nova realidade que Jeremy Rifkin, na sua obra A Terceira
Revolução Industrial, chama a atenção.
Importa que a DSI passe a ser reelaborada com o
contributo de especialistas das ciências sociais. Qual é o papel da Doutrina
Social dos Papas nas Universidades Católicas e das investigações das
Universidades Católicas na elaboração da DSI? Mas, para se poder chamar, com
verdade, DSI tem de seguir a eclesiologia do Vaticano II (Lumen Gentium, 36 e a
Gaudium et Spes). A Igreja é constituída pelas mulheres e homens que se
reconhecem em Jesus Cristo. Todos juntos não teremos medo.
(foto: Faculdade de Ciências Económicas da Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa; reproduzida daqui)
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