domingo, 5 de maio de 2013

A ditadura do medo


Crónica

Na sua crónica deste domingo no Público, frei Bento Domingues escreve sobre o medo que reina nas sociedades contemporâneas por causa da situação económica e questiona o papel da Igreja Católica e da sua doutrina social: “Qual é o papel da Doutrina Social dos Papas nas Universidades Católicas e das investigações das Universidades Católicas na elaboração da DSI?”
Eis a crónica na íntegra:

1. Estamos na era do medo irremediável ou nas vésperas de “novos céus e nova terra”, como canta o Apocalipse e que a liturgia continua a proclamar (Ap.21, 1-5)?  
O medo, fruto da apreensão de um mal como ameaça eminente e à qual não se vê como resistir, pode ter várias causas e muitos rostos. Enquanto tal, é paralisante. O próprio Jesus, ao sentir-se ameaçado de morte pelo Sinédrio, deixou de andar em público entre os judeus (Jo 11, 54).
Só quando venceu o medo dentro dele próprio, enfrentou o perigo, embora, em plena oração no Jardim das Oliveiras, tenha sido assaltado por extrema angústia. As mulheres foram as únicas que, depois do desastre, venceram o medo. Os discípulos viveram trancados, enquanto o Espírito Santo não os modificou até à raiz e abriu o seu judaísmo ao mundo pagão, ao mundo dos gentios. Isto não aconteceu sem um grande debate no Concílio de Jerusalém. É o tema da Missa de hoje.
Os Evangelhos, ao colocarem na boca de Jesus um repetido ”não temais”, dizem que não era a audácia que os animava.
O medo paralisa, o amor é criativo. É ele o mandamento novo, o mandamento da inovação. Onde abunda o amor desaparece o temor, diz S. João. 
2. D. Manuel Martins tinha falado da ditadura do medo na sociedade portuguesa actual, devido ao desemprego crescente num modo avassalador: medo de perder o emprego, medo de não conseguir emprego, medo da miséria. A rendição a todas as condições de trabalho de empregadores sem escrúpulos, que nem sequer pagam a quem trabalha, foi denunciada pela Caritas, no primeiro de Maio. No mesmo dia, o Movimento Mundial dos Trabalhadores Cristãos lembrou algo de mais universal: a riqueza do mundo pertence, apenas, a 1% de privilegiados. Nos cinco continentes há duzentos milhões de desempregados. O Papa Francisco alerta: “Quantas pessoas, em todo o mundo, são vítimas deste tipo de escravidão, na qual é a pessoa que serve ao trabalho, enquanto deveria ser o trabalho a oferecer um serviço à pessoa para que ela tenha dignidade. Peço aos irmãos e irmãs na fé e a todos os homens e mulheres de boa vontade uma decidida tomada de posição contra o tráfico de pessoas, no âmbito do qual está o “trabalho escravo”.
Na Quaresma de 2010, ao pedir um gesto fraterno, Jorge Mario Bergoglio escreveu: estamos em risco! Como sociedade, acostumamo-nos, pouco a pouco, a ouvir e a ver a crónica negra de cada dia; habituamo-nos, também, a tocá-la e a senti-la à nossa volta sem que isso mexa connosco; produz, quando muito, um comentário superficial e descomprometido. A chaga está na rua, no bairro, em nossa casa; no entanto, como cegos e surdos convivemos com a violência que mata, destrói famílias e bairros; aviva guerras e conflitos em muitos lugares e olhamos para isso como mais uma imagem. O sofrimento de tantos inocentes deixou de nos incomodar, o desprezo dos direitos das pessoas e dos povos, a pobreza e a miséria, o império da corrupção, da droga assassina, da prostituição imposta e infantil passaram a ser moeda corrente sem realizarmos que, mais cedo ou mais tarde, teremos de pagar a factura (cf. Vida Nueva nº 2.844 pg 50).
Isto não é uma fatalidade. É assim, porque nós consentimos.
3. Segundo as narrativas da criação, de carácter poético, teológico e ético, o ser humano é uma criatura criadora, prodigiosa, mas também capaz da maior destruição. Não vale a pena recuar para qualquer mito de paraíso perdido. De facto, somos nós que, hoje, herdamos frutos da criação humana de milhares e milhares de anos e, também, da sua desfiguração. Somos responsáveis pelo nosso presente e pelo futuro. Compreender o que está a acontecer é a nossa tarefa de cristãos. No século XIX, Pio IX não compreendeu o sentido do mundo moderno. Fixou o olhar, apenas, no que julgava inaceitável e escreveu os anátemas do Syllabus.
Leão XIII (1810-1903) inaugurou a Doutrina Social da Igreja (DSI). Com João XXIII (1881-1963) e o Vaticano II, dá-se uma grande mudança nessa doutrina: passa-se do anátema ao diálogo. João Paulo II, que viajava pelo mundo deixando a Cúria à solta, preocupado com o comunismo marxista que tinha sofrido na Polónia e com os trágicos mal-entendidos acerca da Teologia da Libertação, vai dar outra viragem à DSI, afinal a doutrina social dos Papas. Situou-a no campo da teologia moral (A Solicitude Social da Igreja, nº 41).
Qual pode ser o perigo deste modo de a interpretar? A DSI não pode cingir-se ao protesto, ao desejo, ao discernimento moral. Não pode deixar de ter em conta as mudanças provocadas pelas novas ciências e pelas tecnologias inteligentes, que alteram os próprios dados da questão social. É para essa nova realidade que Jeremy Rifkin, na sua obra A Terceira Revolução Industrial, chama a atenção.
Importa que a DSI passe a ser reelaborada com o contributo de especialistas das ciências sociais. Qual é o papel da Doutrina Social dos Papas nas Universidades Católicas e das investigações das Universidades Católicas na elaboração da DSI? Mas, para se poder chamar, com verdade, DSI tem de seguir a eclesiologia do Vaticano II (Lumen Gentium, 36 e a Gaudium et Spes). A Igreja é constituída pelas mulheres e homens que se reconhecem em Jesus Cristo. Todos juntos não teremos medo.

(foto: Faculdade de Ciências Económicas da Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa; reproduzida daqui)

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