Uma “Conversa à
Capela” sobre o sentido do outro na economia decorre esta quarta-feira, 29, na
Capela do Rato (Calç. Bento da Rocha Cabral), em Lisboa, a partir das 21h30. A
iniciativa conta com intervenções dos economistas Manuela Silva (docente jubilada do ISEG) ) e José Tavares (Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa). Mas o ponto de
partida é o livro de Elena Lasida, O Sentido do Outro. A crise, uma oportunidade para reinventar laços, das Edições Paulinas.
Elena Lasida esteve
em Lisboa várias vezes. Em Março de 2012, participou numa conferência da Fundação Betânia. No final, fiz-lhe
uma pequena entrevista, que deu origem ao texto que a seguir reproduzo,
publicado a 15 de Abril de 2012, na revista Público/2 (e de onde reproduzo
também a foto).
Elena Lasida, 52 anos, é mulher de
vários saltos. Uruguaia de nascimento, resolveu um dia ir da América Latina
para a Europa, passando a viver em França em 1992. Economista de formação,
passou a interrogar a economia a partir da teologia, reconhecendo os limites da
ciência económica. Professora universitária de profissão, não resistiu a fazer
trabalho associativo, empenhando-se no apoio a estrangeiros sem papéis que
vivem, indocumentados, na região de Paris.
Há 10 anos que Elena Lasida preside à
Rede Cristãos-Imigrantes, que ajudou a criar há quase duas décadas. A rede
surgiu na sequência de ocupações de igrejas por parte de imigrantes
indocumentados. Recorda, dessa altura, um africano que se chamava Mohamed e
que, no processo para adquirir a nacionalidade francesa, queria mudar o nome
para Michel. “O nome está muito ligado à identidade de cada um, mas ele sentia
que o nome o discriminava no acesso ao trabalho e ele não queria isso. A sua
história impressionou-me muito, era como renunciar a uma parte de si mesmo”,
diz Lasida à 2.
Não foi fácil, pois as próprias
comunidades católicas estavam – estão, ainda – divididas sobre a questão da
imigração. Mas foi possível mobilizar pessoas, franceses e imigrantes. “A
primeira coisa foi pormo-nos de acordo em acolher os imigrantes, convertendo a
ocupação em acolhimento nas igrejas.”
Hoje, a rede, de carácter informal,
mobiliza centenas de pessoas em duas dezenas de paróquias e movimentos
católicos, aos quais se juntam protestantes, ortodoxos e outros crentes, a
propósito de iniciativas concretas. O seu trabalho abrange essencialmente três
frentes: cursos de alfabetização, apoio jurídico e a organização de um jantar
mensal, onde se trocam pratos franceses e estrangeiros – e que se intitulam “o
gosto do outro”, também título do último livro que publicou (Le goût de l’autre
– La crise, une chance pour réinventer le lien, ed. Albin Michel).
Lasida procura, desde há muito, ligar
modos diversos de estar na vida. “Procuro juntar duas maneiras diferentes de
olhar a realidade, a partir do Norte e do Sul. Procuro juntar duas maneiras
diferentes de pensar a realidade, a partir da economia e da teologia. E procuro
juntar duas maneiras diferentes de transformar a realidade, unindo a teoria
académica e a prática associativa”, diz.
Há duas semanas, a economista esteve
pela segunda vez em poucos meses a fazer uma conferência em Portugal. Depois de
ter sido oradora principal, em Setembro, na Fundação Gulbenkian, a convite da
rede Economia Com Futuro, Elena Lasida voltou agora ao país, a convite da
Fundação Betânia, em Lisboa, e da Universidade Católica, no Porto. Desta vez,
para falar sobre: “Que futuro para a economia – contributos da antropologia
judaico-cristã”.
Um tema improvável. Ou talvez não,
tendo em conta o trajecto desta economista-teóloga. Foi mesmo a teologia que a
levou a fazer perguntas ao trabalho de economista. E a tentar introduzir o
transcendente na ciência económica: “A transcendência, na economia e em geral,
vem sempre através da relação. É o outro que me reenvia para além de mim mesmo.
Na relação, há sempre essa experiência da transcendência.” A sua participação
na Rede Cristãos-Imigrantes nasce da mesma convicção: “Em relação aos
estrangeiros, é a experiência do outro, diferente, que me reenvia para lá de
mim mesma, que é central. Por isso, a transcendência está lá.”
A questão dos imigrantes remete para um
dos cruzamentos da economista: “Venho do sul e vivo no Norte. A fronteira entre
o Norte e o Sul atravessa-me no interior de mim mesma e cruzo-a todos os dias,
mesmo que não me mova.” Mas não se trata apenas de atravessar fronteiras: “O
meu olhar sobre o Sul está pintado de Norte e o meu olhar sobre o Norte está
pintado de Sul. É impossível hoje separar o que corresponde a um lado e a
outro.”
Outros confrontos, então. O que liga a
vida académica e o empenhamento social – além da Rede Cristãos-Imigrantes,
Lasida integra o comité de redacção da revista Transversalités, anima grupos de pesquisa sobre o desenvolvimento
sustentável e sobre novas solidariedades Norte-Sul e faz parte da direcção da
Cáritas de França. Convidada com frequência para debates e conferências,
entende isso também como forma de “tocar o terreno”: “Muitas vezes são pequenos
grupos de pessoas que estão verdadeiramente comprometidas na acção e me pedem
que vá ao seu encontro. Aprendo muitas coisas a partir das questões com que
elas se confrontam.”
E ainda o confronto da teologia,
ciência que remete para o transcendente, e da economia, onde se trata a mais
material dimensão da vida das pessoas. Foi a teologia que a levou a fazer
perguntas à sua formação de economista, explica. “Onde está a vida? O que faz
viver? Qual é a fonte da vida? A vida não é apenas a material, a satisfação de
necessidades físicas, mas é também o seu sentido. É essa a questão que a
teologia coloca à economia: o que dá sentido à vida?”
Elena Lasida admite que, hoje, a
economia não cuida da vida como deveria. “Ela tem reduzido a vida, em grande
parte, ao conforto material e ao acesso à riqueza financeira e material. E isso
significa que deixa de lado uma parte essencial da vida.” Daí que, na sua tese,
tenha decidido abordar a questão da transcendência na economia: “A economia é
um lugar de relação entre pessoas que têm interesses opostos e nesse sentido é
uma fronteira. Como qualquer fronteira, pode ser um lugar de separação ou de
reunião. O que é importante é que a economia não se pode pensar sem se abrir a
qualquer coisa que nos escapa.”
Está em causa a questão dos limites: “É
a partir do reconhecimento dos seus limites que a economia pode dialogar com as
outras disciplinas”, diz. Afirmação ainda mais premente nos tempos que correm:
“Na sua torre de marfim, a economia sentir-se-à sempre superior. O trabalho
interdisciplinar supõe que cada disciplina se deixa interrogar, desarmar pela
outra com a finalidade de fazer um verdadeiro trabalho de elaboração
colectiva.”
Não por acaso, a economista, professora
e vice-reitora para a Investigação na Faculdade de Ciências Sociais e
Económicas do Instituto Católico de Paris, dirige também um mestrado em
Economia Solidária e Lógica do Mercado. Porque, diz, é preciso relacionar, por
exemplo, conceitos bíblicos como aliança e promessa com definições e critérios
económicos. “A aliança é o contrário do domínio, supõe uma relação de
interdependência e corresponsabilidade”, que vai muito além da noção de
contrato que domina as relações económicas.
O comércio justo, aponta, pode ilustrar
como concretizar o conceito de aliança na economia: “Supõe um projecto comum
entre produtor e consumidor, em que cada um toma em conta também o interesse do
outro”. O produtor respeita condições sociais e ambientais, o consumidor aceita
pagar um pouco mais para ter em conta as necessidades do produtor.
Do mesmo modo, o microcrédito reenvia
para a noção de promessa, ultrapassando os conceitos de risco e garantia,
dominantes na economia: na finança clássica, as pessoas são uma “ameaça”
perante as quais nos devemos proteger, diz; no microcrédito, cada pessoa é uma
“promessa de vida”.
Perante o domínio da grande finança,
Elena Lasida não tem uma solução. Mas tem uma convicção profunda: “É preciso
pensar a finança de uma outra maneira completamente diferente. A finança tem
uma primeira finalidade que é justamente financiar a economia real, elas não é
uma finalidade em si mesma. O dinheiro deve ser para a produção real e para
fazer circular os bens – e, por isso, as relações. Trata-se de reencontrar essa
função primeira do dinheiro.”
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