sexta-feira, 17 de maio de 2013

D. Manuel Clemente: "Há uma desmesura que nos explica como portugueses"



Diz que predomina em Portugal a vontade de regeneração do país. E que só a desmesura entre o ideal que temos para o país e o esqueleto com que lhe damos corpo explica o ser português. D. Manuel Clemente, bispo do Porto desde 2007, será este sábado momeado como novo patriarca de Lisboa, de acordo com notícia avançada esta tarde pelo jornal i (de onde também se reproduz a foto). 

Reproduzo aqui uma entrevista com o então bispo do Porto, que nessa altura era também presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais e que em 2009 foi distinguido com o Prémio Pessoa.
Manuel Clemente publicou, entre outros, os livros Portugal e os Portugueses, 1810 – 1910 – 2010,  Datas e Desafios e Porquê e Para Quê? – Pensar com Esperança o Portugal de Hoje (ed. Assírio & Alvim) ou ainda Um Só Propósito – Homilias e Escritos Pastorais (ed. Pedra Angular). 

No seu livro Um Só Propósito, fala da evangelização da cultura. Como presidente da Comissão Episcopal para a Cultura, como encara esse objectivo?
D. MANUEL CLEMENTE – Há um programa a longo prazo, desde que a comissão trabalha nesta área, com o padre Tolentino Mendonça como motor do que se faz: é ser uma porta aberta na relação da Igreja com o mundo do pensamento, das artes, das ideias, das formas, aquilo que a humanidade vai apurando como consciência de si própria e como proposta criativa. Era preciso haver este portal [do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura], quer para acolher o que se vai fazendo, quer para fazer sair a oferta eclesial a esse respeito.

Em Novembro de 2009, o Papa encontrou-se com artistas de todo o mundo, de diversas áreas. Seria possível acontecer em Portugal um encontro entre bispos e artistas?
Pode e deve ser. O mundo da arte, da literatura, da criação pessoal, acaba sempre por ser particularmente sensível ao tempo, à interrogação, ao mundo. E tenta dar uma resposta plástica, literária, musical. Estar atento ao mundo da cultura e da criação artística é estar atento à realidade. É talvez uma das expressões mais vinculativas da doutrina dos sinais dos tempos: estar atento ao que cada tempo e cada sociedade nos sugere e interpela, quando cria ou quando reflecte.

Nesta área com mais exigência, porque um dos diagnósticos que se tem feito nas últimas décadas é que a Igreja perdeu a relação com a cultura, os artistas, os pintores, escultores, arquitectos…
Depende das sociedades. Numa sociedade como a nossa, e de certa maneira a europeia ocidental, os únicos locais onde havia disponibilidade para alguém se dedicar mais à reflexão, à escrita, à composição musical ou plástica eram os âmbitos eclesiais. Eram daí que vinham as propostas de criação para fazer igrejas ou decorá-las, para a música religiosa. O próprio teatro europeu, e o português, está ligadíssimo aos mistérios medievais e aos meios eclesiais.
O que aconteceu entretanto foi a secularização da vida. Coisas que se passavam no âmbito religioso estrito e que vão, a pouco e pouco, passando para a esfera individual, autónoma. Não acho que alguma vez se recupere ou deva recuperar o quadro institucional que houve noutras épocas, em que os meios eclesiásticos, efectiva e até materialmente, eram os meios da cultura.

É bom que isso tenha acontecido?
É óptimo que isso tenha passado para as pessoas em geral e não é por isso que a sociedade é menos religiosa. Pode ser menos concertada e reconhecida mas não é menos religiosa.
Isso não dispensa as comunidades cristãs de enriquecerem a sua expressão cultural e se tornarem criativas nesse âmbito. Tudo o que seja intercâmbio nestes vários níveis da cultura, é importante, oportuno e é um ganho.

A new age ou nova era marca hoje as nossas sociedades. Isso coloca também questões à acção cultural da Igreja?
Sim, no sentido em que dilui a personalidade: a new age anda entre o indivíduo – a minha escolha individual como um cocktail permanente – e um sincretismo de ideias que cria uma amálgama pouco sistemática dessas mesmas sugestões religiosas, psicológicas, subcientíficas.
Isto é pouco pessoal, porque a dimensão pessoal exige reflexão na relação, exige definição. Isso é um trabalho cultural. A new age, circulando entre a espontaneidade e o afecto, e a amálgama de sugestões que vou tirando, fazendo um caleidoscópio que vou mudando em cada momento, é pouco pessoal, porque é pouco reflectido e pouco relacionado.
A new age é culturalmente muito fraca, não proporciona o diálogo. Este requer a assunção de uma posição consistente e o debate com o outro para poder aprender com ele. Se ando assim, simplesmente, a minha própria consciência dilui-se. Vai muito dentro deste enchumaço informativo, mas é pouco pessoal.

Nos seus livros fala do anticlericalismo, uma marca da cultura portuguesa. Há um anticlericalismo português?
Ele existe, com certeza, está estudado.

Aponta mesmo várias razões nacionais, mas há também marcas estrangeiras. A Revolução Francesa…
Clericalismo e anticlericalismo são fenómenos coexistentes e próprios de uma sociedade de cristandade e confessional. A cristandade presumia que toda a sociedade era cristã e católica, que estava definida em termos eclesiais e eclesiásticos e era supervisionada por um grupo de homens que tinham saber e controlavam a sociedade.
A partir dos séculos XVII e XVIII, [a cristandade] começa a dar lugar a esta sociedade, em que cada um foi requisitando para si a capacidade de decidir. Isso embatia com a sociedade clericamente tutelada. Por isso há um anticlericalismo que vai paredes-meias com a afirmação das autonomias e das escolhas.

Mas há outras dimensões do fenómeno…
Há outra vertente desse anticlericalismo que faz parte da exigência dos crentes: que aqueles que têm mais responsabilidades na Igreja também procedam de maneira mais conforme com essas responsabilidades. E sempre que reparam que, na vida deste ou daquele clérigo há contradição entre o que afirma e o que faz, o anticlericalismo vem ao de cima. Há de tudo um pouco.
Já no século XVI isto se encontra numa figura tão crente como Gil Vicente, na crítica que ele faz ao clero, que tem a ver com o contraste que ele nota entre o que a pessoa se propõe e o que pratica. Mas é o que encontramos também na viragem do século XIX para o XX, num homem como Raul Brandão. No manifesto “O Padre”, qualquer laivo anticlerical não é contra o padre em si, mas contra o que o padre ainda não é e devia ser.

Mesmo Eça de Queirós e Guerra Junqueiro estão cheios dessa crítica…
Sim, há muito evangelismo. Saliento este escrito de Raul Brandão porque parece o mais significativo. Há ainda, claro, quem tenha uma visão completamente secularista da sociedade, que não quer qualquer espécie de clericalismo, porque considera que isso é voltar a uma sociedade eclesiasticamente tutelada.

Onde coloca os conflitos de reis portugueses com Roma ou o do Marquês com os jesuítas? Este conflito não é decisivo?
Isso faz parte de outra coisa que é a afirmação do Estado. Houve problemas com entidades religiosas, que resistiam a essa intromissão directa do Estado, da Coroa, no domínio público. Em Portugal, com os jesuítas, depois com as ordens religiosas a seguir ao liberalismo.
Voltou a acontecer com a I República, quando o grupo mais radicalizado que tomou o poder – que não é todo o poder nem todos os republicanos –, tentou, com a Lei da Separação, reduzir o papel do clero. Há aqui outra realidade que é a afirmação do Estado como único organismo de tutela da vida social e que não admite qualquer interferência de outro corpo social.

No final da Monarquia e instauração da república, há católicos que tentam ser ponte entre esses dois mundos em conflito: Abúndio da Silva, o Conde de Samudães, a Sociedade Católica, a revista Voz de Santo António
É muita gente, aquilo a se chama o Movimento Católico…

Essa gente acabou marginalizada pelos dois lados…
Essa gente acabou por semear o futuro, tinha muita audiência nos meios católicos em Portugal. São pessoas que compreendem que a sociedade e a Igreja não coincidem.

Contribuem para afirmar a separação entre Igreja e Estado?
Certamente. Como são católicos, também entendem que a ligação a Roma era muito importante, porque lhes assegurava externamente a liberdade que queriam ter em relação ao Governo e ao Estado. Porque no liberalismo, contrariamente ao que se pudesse pensar, o Estado não alargou nem distendeu os laços com a Igreja. Ao contrário: reivindicou para si a nomeação de todos os responsáveis de todas as paróquias do país. Aos bispos restava assinar de cruz.
O Movimento Católico e essas figuras entendiam que, para ser consequente com a sociedade liberal, o Estado devia permitir aos católicos, organizados como Igreja, uma muito maior liberdade de regulamentação da vida religiosa. Certo é que eles reconfiguraram e redefiniram a existência da Igreja, como realidade autónoma. Essa distinção Igreja-Mundo era muito difícil de perceber [na época], mesmo em termos intelectuais e mesmo em Roma.

Outro factor surge nessa época: Fátima. Há mesmo um sociólogo católico que propõe que a importância de Fátima hoje se deve muito à imprensa republicana e à oposição da República a Fátima. Pode ler-se desta maneira?
Não extremaria tanto as coisas. Avelino de Almeida era jornalista d’O Século, ele próprio tinha um passado bem esquerdista, como várias pessoas que fazem a ponte entre um certo anarquismo e o catolicismo. Em 1917, as crispações de 1910-13 entre o Governo republicano e a Igreja já estavam muito atenuadas. E a reacção católica fez ressurgir o Movimento Católico a partir de 1913.
Com a entrada de Portugal na I Guerra [Mundial], em 1916, a grande problemática nacional era a guerra e as grandes dificuldades que o país atravessava, já não tanto a problemática religiosa. E no final de 1917, o sidonismo vai mudar muito a relação do regime com a Igreja. Portanto, não faço essa ligação.

Mas podemos dizer que Fátima tem “sucesso” porque essa devoção mariana está muito presente no sentir português?
Sim, está. Mas Fátima não é a primeira. Em 1904, comemorou-se por todo o país os 50 anos da definição do dogma da Imaculada Conceição. O que aconteceu de concentrações de centenas de milhares de pessoas já é muito semelhante ao que acontece hoje em Fátima.

O que traduz isso da alma portuguesa?
É profundamente mariana. É quase uma devoção nacional. A sensibilidade portuguesa é muito mariana, no sentido de que a relação com Deus e com Jesus, antes e desde a origem da nacionalidade, está sempre marianamente referida.
A grande devoção mariana até ao século XII, em Portugal, tem muito a ver com a festa da maternidade divina, como se Maria estivesse a ajudar também o país a nascer. A segunda grande devoção é a de Agosto, a Senhora da Assunção – todas as sés portuguesas da Idade Média são dedicadas a ela. E quando vem a Restauração [de 1640], é a Imaculada Conceição, que um homem como o padre António Vieira identifica com a restauração do mundo e que ligava à recriação de Portugal.
Quando chegamos ao século XIX e XX, reparamos que uma certa vontade de regeneração de Portugal – o sentimento genérico da sociedade portuguesa até aos nossos dias – pode ter afirmações de tipo esquerdista, eliminando as causas da decadência, e outro católico, que diz que Portugal vai renascer quando for outra vez cristão e mariano. É interessante verificar que a vida portuguesa é sempre interpretada em ambiente mariano.

A regeneração tem a ver com uma frase que escreve em Portugal e os Portugueses: “Tanta gente em tão pouco espaço só pode espraiar-se numa geografia universal”? Há ainda essa nostalgia da regeneração e do Portugal de Quinhentos que foi capaz de atravessar os mares?
Mesmo em Quinhentos, tirando alguma euforia inicial, as pessoas admiravam-se com o que faziam. O próprio Camões admira-se com o que pode fazer a “pequena casa portuguesa”. Rapidamente se repara que não estamos à altura de tanta coisa. Esta mescla de se ter feito muito, de não se conseguir aguentar tanto e de se contradizer tantíssimo, está sempre presente na história portuguesa.
Um povo que teria um milhão de habitantes no princípio do século XVI, com cem mil homens disponíveis, daqui deste canto da Europa até à quarta parte nova – o Brasil, depois a Ásia – é uma coisa tão desmesurada que fica sempre o sentimento de que somos uma gente especial. Porque nos calhou a nós?
Depois vem a argumentação geográfica, mas essas respostas não esvaziam o sentimento de que há uma desmesura que nos explica. Ainda hoje, Portugal são cinco: de Leiria para cima, de Leiria para baixo, Madeira, Açores e a diáspora. E isto com muitas subdivisões. E quando encontramos qualquer destas dimensões portuguesas, não tardamos a divisar, em relação a qualquer acontecimento, uma certa decepção do que se faz, uma vontade de se fazer e uma nostalgia de uma grandeza que nunca se atingiu.
Isto é o português. A saudade – que tem sentimentos congéneres – vem desta desmesura. As pessoas têm um ideal para o país que é muito maior do que o seu esqueleto.

A Igreja Católica em Portugal sempre teve necessidade de se confrontar com um outro: o mouro, o judeu, o liberalismo, a República, o comunismo em 1975. E hoje é a laicidade e o laicismo?
Sim e por isso o desafio ainda é maior. O desafio de outras épocas, muitas vezes mal resolvido – sempre que isso implicou a exclusão do outro –, é identificável. Hoje passa por dentro de nós próprios: os grandes debates são interiorizados e nós temos que ligar o sentimento de autonomia individual, que nos faz contemporâneos, com uma tradição que, no caso de sermos católicos, queremos assumir.
Estes debates requerem uma resposta mais cultural que sociológica. Por isso não são tão operativos. Já não há “batalhões de Cristo-Rei”.

Essa é uma leitura que pode ser feita para a Europa, que num dos livros diz que não é um clube cristão. Significa que há lugar para a Turquia, que foi sempre o inimigo e o símbolo do diferente?
Foi, mas a Turquia também é herdeira do Império Bizantino, do cristianismo oriental.

Mas isso hoje não é muito vincado.
Não e o que aconteceu com os arménios e gregos que habitavam na Turquia no início do século XX não facilita muito. Quando vamos a Istambul, na ponta oriental, sentimo-nos ao mesmo tempo tão próximos e tão distantes. Até geográfica e paisagisticamente é a cidade mais parecida com Lisboa. Até nesse aspecto nos sentimos em casa.
Por outro lado, não. Porque foi muito mal resolvido, no sentido da exclusão dos cristãos arménios e gregos. São polémicas ainda muito presentes, para lá do que para cá.

Falava da desmesura, mas escreve também no notável texto de abertura de Portugal e os Portugueses, sobre a capacidade de adaptação dos portugueses, versus a incapacidade de deixarmos de ser quem somos. Afinal, que somos?
Aí assumo uma ideia do António José Saraiva, nas Reflexões sobre a Cultura Portuguesa, quando ele nos compara a um fruto de polpa macia e caroço duro. Somos capazes de absorver tudo quanto está à volta, mas temos cá dentro uma acumulação de gerações, raças, povos – isto foi sempre o fim do mundo, antes de ser o início de outro. Tudo aqui sedimentou. Não podemos deixar de ser isto.
O que nos define é essa capacidade de absorver sem deixarmos de sermos nós. Falando com gente da segunda ou terceira geração em Paris, em São Paulo ou em Toronto, são pessoas que vivem em meios tão diferentes, mas são todos iguais nesta capacidade de permanecerem os mesmos.

É nesse sentido que diz também que a relação com Portugal não é geográfica e tem uma matriz judaica e bíblica?
Muito bíblica. O povo bíblico foi sempre um povo nostálgico do tempo do rei David, dez séculos antes do nascimento de Jesus, de ter sido uma realidade imensa. Nós estamos assim: a nossa matriz bíblica é fortíssima, alongada também pela diáspora. A nossa terra também é pequena, em relação aos nossos sonhos. Temos sempre a ideia de que nos vamos reencontrar e realizar, finalmente, o Quinto Império, como diria o padre António Vieira.

Escreve num outro texto que da poesia vem a nossa disponibilidade para o milagre. Somos poetas e supersticiosos ou esta é uma forma poética de cruzar a poesia e as artes?
É isso, mais que a superstição. A superstição e a magia retêm na impossibilidade e em cativeiros interiores, até psicológicos e doentios. A poesia é o contrário, é o domínio que toma o real não para o constatar mas para o fabricar. Até etimologicamente significa isso. É muito difícil estar numa conversa qualquer e, se ela perdura, não entrarmos já claramente no campo da imaginação e do que poderíamos ser.


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