Diz que predomina em Portugal a vontade
de regeneração do país. E que só a desmesura entre o ideal que temos para o
país e o esqueleto com que lhe damos corpo explica o ser português. D. Manuel Clemente, bispo do Porto desde 2007, será este sábado momeado como novo patriarca de Lisboa, de acordo com notícia avançada esta tarde pelo jornal i (de onde também se reproduz a foto).
Reproduzo aqui uma entrevista com o então bispo do Porto, que nessa altura era também presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais e que em 2009 foi distinguido com o Prémio Pessoa.
Manuel Clemente publicou, entre outros, os livros Portugal e os Portugueses, 1810 – 1910 – 2010, Datas e
Desafios e Porquê e Para Quê? –
Pensar com Esperança o Portugal de Hoje (ed. Assírio & Alvim) ou ainda Um Só Propósito – Homilias e Escritos
Pastorais (ed. Pedra Angular).
No seu livro Um Só Propósito,
fala da evangelização da cultura. Como presidente da Comissão Episcopal para a
Cultura, como encara esse objectivo?
D. MANUEL CLEMENTE – Há um
programa a longo prazo, desde que a comissão trabalha nesta área, com o padre
Tolentino Mendonça como motor do que se faz: é ser uma porta aberta na relação
da Igreja com o mundo do pensamento, das artes, das ideias, das formas, aquilo
que a humanidade vai apurando como consciência de si própria e como proposta
criativa. Era preciso haver este portal [do Secretariado Nacional da Pastoral
da Cultura], quer para acolher o que se vai fazendo, quer para fazer sair a
oferta eclesial a esse respeito.
Em Novembro de 2009, o Papa encontrou-se com artistas de todo o mundo,
de diversas áreas. Seria possível acontecer em Portugal um encontro entre
bispos e artistas?
Pode e deve ser. O mundo da arte,
da literatura, da criação pessoal, acaba sempre por ser particularmente
sensível ao tempo, à interrogação, ao mundo. E tenta dar uma resposta plástica,
literária, musical. Estar atento ao mundo da cultura e da criação artística é
estar atento à realidade. É talvez uma das expressões mais vinculativas da
doutrina dos sinais dos tempos: estar atento ao que cada tempo e cada sociedade
nos sugere e interpela, quando cria ou quando reflecte.
Nesta área com mais exigência, porque um dos diagnósticos que se tem
feito nas últimas décadas é que a Igreja perdeu a relação com a cultura, os
artistas, os pintores, escultores, arquitectos…
Depende das sociedades. Numa
sociedade como a nossa, e de certa maneira a europeia ocidental, os únicos
locais onde havia disponibilidade para alguém se dedicar mais à reflexão, à
escrita, à composição musical ou plástica eram os âmbitos eclesiais. Eram daí
que vinham as propostas de criação para fazer igrejas ou decorá-las, para a
música religiosa. O próprio teatro europeu, e o português, está ligadíssimo aos
mistérios medievais e aos meios eclesiais.
O que aconteceu entretanto foi a
secularização da vida. Coisas que se passavam no âmbito religioso estrito e que
vão, a pouco e pouco, passando para a esfera individual, autónoma. Não acho que
alguma vez se recupere ou deva recuperar o quadro institucional que houve
noutras épocas, em que os meios eclesiásticos, efectiva e até materialmente,
eram os meios da cultura.
É bom que isso tenha acontecido?
É óptimo que isso tenha passado
para as pessoas em geral e não é por isso que a sociedade é menos religiosa.
Pode ser menos concertada e reconhecida mas não é menos religiosa.
Isso não dispensa as comunidades
cristãs de enriquecerem a sua expressão cultural e se tornarem criativas nesse
âmbito. Tudo o que seja intercâmbio nestes vários níveis da cultura, é importante, oportuno e é
um ganho.
A new age ou nova era marca
hoje as nossas sociedades. Isso coloca também questões à acção cultural da
Igreja?
Sim, no sentido em que dilui a
personalidade: a new age anda entre o
indivíduo – a minha escolha individual como um cocktail permanente – e um sincretismo de ideias que cria uma
amálgama pouco sistemática dessas mesmas sugestões religiosas, psicológicas,
subcientíficas.
Isto é pouco pessoal, porque a
dimensão pessoal exige reflexão na relação, exige definição. Isso é um trabalho
cultural. A new age, circulando entre
a espontaneidade e o afecto, e a amálgama de sugestões que vou tirando, fazendo
um caleidoscópio que vou mudando em cada momento, é pouco pessoal, porque é
pouco reflectido e pouco relacionado.
A new age é culturalmente muito fraca, não proporciona o diálogo. Este
requer a assunção de uma posição consistente e o debate com o outro para poder
aprender com ele. Se ando assim, simplesmente, a minha própria consciência
dilui-se. Vai muito dentro deste enchumaço informativo, mas é pouco pessoal.
Nos seus livros fala do anticlericalismo, uma marca da cultura
portuguesa. Há um anticlericalismo português?
Ele existe, com certeza, está
estudado.
Aponta mesmo várias razões nacionais, mas há também marcas
estrangeiras. A Revolução Francesa…
Clericalismo e anticlericalismo
são fenómenos coexistentes e próprios de uma sociedade de cristandade e
confessional. A cristandade presumia que toda a sociedade era cristã e
católica, que estava definida em termos eclesiais e eclesiásticos e era
supervisionada por um grupo de homens que tinham saber e controlavam a
sociedade.
A partir dos séculos XVII e
XVIII, [a cristandade] começa a dar lugar a esta sociedade, em que cada um foi
requisitando para si a capacidade de decidir. Isso embatia com a sociedade
clericamente tutelada. Por isso há um anticlericalismo que vai paredes-meias
com a afirmação das autonomias e das escolhas.
Mas há outras dimensões do fenómeno…
Há outra vertente desse
anticlericalismo que faz parte da exigência dos crentes: que aqueles que têm
mais responsabilidades na Igreja também procedam de maneira mais conforme com
essas responsabilidades. E sempre que reparam que, na vida deste ou daquele
clérigo há contradição entre o que afirma e o que faz, o anticlericalismo vem
ao de cima. Há de tudo um pouco.
Já no século XVI isto se encontra
numa figura tão crente como Gil Vicente, na crítica que ele faz ao clero, que
tem a ver com o contraste que ele nota entre o que a pessoa se propõe e o que
pratica. Mas é o que encontramos também na viragem do século XIX para o XX, num
homem como Raul Brandão. No manifesto “O Padre”, qualquer laivo anticlerical
não é contra o padre em si, mas contra o que o padre ainda não é e devia ser.
Mesmo Eça de Queirós e Guerra Junqueiro estão cheios dessa crítica…
Sim, há muito evangelismo.
Saliento este escrito de Raul Brandão porque parece o mais significativo. Há
ainda, claro, quem tenha uma visão completamente secularista da sociedade, que
não quer qualquer espécie de clericalismo, porque considera que isso é voltar a
uma sociedade eclesiasticamente tutelada.
Onde coloca os conflitos de reis portugueses com Roma ou o do Marquês
com os jesuítas? Este conflito não é decisivo?
Isso faz parte de outra coisa que
é a afirmação do Estado. Houve problemas com entidades religiosas, que
resistiam a essa intromissão directa do Estado, da Coroa, no domínio público.
Em Portugal, com os jesuítas, depois com as ordens religiosas a seguir ao
liberalismo.
Voltou a acontecer com a I
República, quando o grupo mais radicalizado que tomou o poder – que não é todo
o poder nem todos os republicanos –, tentou, com a Lei da Separação, reduzir o
papel do clero. Há aqui outra realidade que é a afirmação do Estado como único
organismo de tutela da vida social e que não admite qualquer interferência de
outro corpo social.
No final da Monarquia e instauração da república, há católicos que
tentam ser ponte entre esses dois mundos em conflito: Abúndio da Silva, o Conde
de Samudães, a Sociedade Católica, a revista Voz de Santo António…
É muita gente, aquilo a se chama
o Movimento Católico…
Essa gente acabou marginalizada pelos dois lados…
Essa gente acabou por semear o
futuro, tinha muita audiência nos meios católicos em Portugal. São pessoas que compreendem
que a sociedade e a Igreja não coincidem.
Contribuem para afirmar a separação entre Igreja e Estado?
Certamente. Como são católicos,
também entendem que a ligação a Roma era muito importante, porque lhes
assegurava externamente a liberdade que queriam ter em relação ao Governo e ao
Estado. Porque no liberalismo, contrariamente ao que se pudesse pensar, o
Estado não alargou nem distendeu os laços com a Igreja. Ao contrário:
reivindicou para si a nomeação de todos os responsáveis de todas as paróquias
do país. Aos bispos restava assinar de cruz.
O Movimento Católico e essas
figuras entendiam que, para ser consequente com a sociedade liberal, o Estado
devia permitir aos católicos, organizados como Igreja, uma muito maior
liberdade de regulamentação da vida religiosa. Certo é que eles reconfiguraram
e redefiniram a existência da Igreja, como realidade autónoma. Essa distinção
Igreja-Mundo era muito difícil de perceber [na época], mesmo em termos
intelectuais e mesmo em Roma.
Outro factor surge nessa época: Fátima. Há mesmo um sociólogo católico
que propõe que a importância de Fátima hoje se deve muito à imprensa
republicana e à oposição da República a Fátima. Pode ler-se desta maneira?
Não extremaria tanto as coisas. Avelino
de Almeida era jornalista d’O Século,
ele próprio tinha um passado bem esquerdista, como várias pessoas que fazem a
ponte entre um certo anarquismo e o catolicismo. Em 1917, as crispações de
1910-13 entre o Governo republicano e a Igreja já estavam muito atenuadas. E a
reacção católica fez ressurgir o Movimento Católico a partir de 1913.
Com a entrada de Portugal na I
Guerra [Mundial], em 1916, a grande problemática nacional era a guerra e as
grandes dificuldades que o país atravessava, já não tanto a problemática
religiosa. E no final de 1917, o sidonismo vai mudar muito a relação do regime
com a Igreja. Portanto, não faço essa ligação.
Mas podemos dizer que Fátima tem “sucesso” porque essa devoção mariana está
muito presente no sentir português?
Sim, está. Mas Fátima não é a
primeira. Em 1904, comemorou-se por todo o país os 50 anos da definição do
dogma da Imaculada Conceição. O que aconteceu de concentrações de centenas de
milhares de pessoas já é muito semelhante ao que acontece hoje em Fátima.
O que traduz isso da alma portuguesa?
É profundamente mariana. É quase
uma devoção nacional. A sensibilidade portuguesa é muito mariana, no sentido de
que a relação com Deus e com Jesus, antes e desde a origem da nacionalidade,
está sempre marianamente referida.
A grande devoção mariana até ao
século XII, em Portugal, tem muito a ver com a festa da maternidade divina,
como se Maria estivesse a ajudar também o país a nascer. A segunda grande
devoção é a de Agosto, a Senhora da Assunção – todas as sés portuguesas da
Idade Média são dedicadas a ela. E quando vem a Restauração [de 1640], é a
Imaculada Conceição, que um homem como o padre António Vieira identifica com a
restauração do mundo e que ligava à recriação de Portugal.
Quando chegamos ao século XIX e
XX, reparamos que uma certa vontade de regeneração de Portugal – o sentimento
genérico da sociedade portuguesa até aos nossos dias – pode ter afirmações de
tipo esquerdista, eliminando as causas da decadência, e outro católico, que diz
que Portugal vai renascer quando for outra vez cristão e mariano. É
interessante verificar que a vida portuguesa é sempre interpretada em ambiente
mariano.
A regeneração tem a ver com uma frase que escreve em Portugal e os
Portugueses: “Tanta gente em tão pouco
espaço só pode espraiar-se numa geografia universal”? Há ainda essa nostalgia
da regeneração e do Portugal de Quinhentos que foi capaz de atravessar os
mares?
Mesmo em Quinhentos, tirando
alguma euforia inicial, as pessoas admiravam-se com o que faziam. O próprio
Camões admira-se com o que pode fazer a “pequena casa portuguesa”. Rapidamente
se repara que não estamos à altura de tanta coisa. Esta mescla de se ter feito
muito, de não se conseguir aguentar tanto e de se contradizer tantíssimo, está
sempre presente na história portuguesa.
Um povo que teria um milhão de
habitantes no princípio do século XVI, com cem mil homens disponíveis, daqui
deste canto da Europa até à quarta parte nova – o Brasil, depois a Ásia – é uma
coisa tão desmesurada que fica sempre o sentimento de que somos uma gente especial.
Porque nos calhou a nós?
Depois vem a argumentação
geográfica, mas essas respostas não esvaziam o sentimento de que há uma
desmesura que nos explica. Ainda hoje, Portugal são cinco: de Leiria para cima,
de Leiria para baixo, Madeira, Açores e a diáspora. E isto com muitas
subdivisões. E quando encontramos qualquer destas dimensões portuguesas, não
tardamos a divisar, em relação a qualquer acontecimento, uma certa decepção do
que se faz, uma vontade de se fazer e uma nostalgia de uma grandeza que nunca
se atingiu.
Isto é o português. A saudade –
que tem sentimentos congéneres – vem desta desmesura. As pessoas têm um ideal
para o país que é muito maior do que o seu esqueleto.
A Igreja Católica em Portugal sempre teve necessidade de se confrontar
com um outro: o mouro, o judeu, o liberalismo, a República, o comunismo em
1975. E hoje é a laicidade e o laicismo?
Sim e por isso o desafio ainda é
maior. O desafio de outras épocas, muitas vezes mal resolvido – sempre que isso
implicou a exclusão do outro –, é identificável. Hoje passa por dentro de nós
próprios: os grandes debates são interiorizados e nós temos que ligar o
sentimento de autonomia individual, que nos faz contemporâneos, com uma
tradição que, no caso de sermos católicos, queremos assumir.
Estes debates requerem uma
resposta mais cultural que sociológica. Por isso não são tão operativos. Já não
há “batalhões de Cristo-Rei”.
Essa é uma leitura que pode ser feita para a Europa, que num dos livros
diz que não é um clube cristão. Significa que há lugar para a Turquia, que foi
sempre o inimigo e o símbolo do diferente?
Foi, mas a Turquia também é
herdeira do Império Bizantino, do cristianismo oriental.
Mas isso hoje não é muito vincado.
Não e o que aconteceu com os
arménios e gregos que habitavam na Turquia no início do século XX não facilita
muito. Quando vamos a Istambul, na ponta oriental, sentimo-nos ao mesmo tempo
tão próximos e tão distantes. Até geográfica e paisagisticamente é a cidade
mais parecida com Lisboa. Até nesse aspecto nos sentimos em casa.
Por outro lado, não. Porque foi
muito mal resolvido, no sentido da exclusão dos cristãos arménios e gregos. São
polémicas ainda muito presentes, para lá do que para cá.
Falava da desmesura, mas escreve também no notável texto de abertura de
Portugal e os Portugueses, sobre a
capacidade de adaptação dos portugueses, versus a incapacidade de deixarmos de
ser quem somos. Afinal, que somos?
Aí assumo uma ideia do António
José Saraiva, nas Reflexões sobre a
Cultura Portuguesa, quando ele nos compara a um fruto de polpa macia e
caroço duro. Somos capazes de absorver tudo quanto está à volta, mas temos cá
dentro uma acumulação de gerações, raças, povos – isto foi sempre o fim do
mundo, antes de ser o início de outro. Tudo aqui sedimentou. Não podemos deixar
de ser isto.
O que nos define é essa
capacidade de absorver sem deixarmos de sermos nós. Falando com gente da
segunda ou terceira geração em Paris, em São Paulo ou em Toronto, são pessoas
que vivem em meios tão diferentes, mas são todos iguais nesta capacidade de
permanecerem os mesmos.
É nesse sentido que diz também que a relação com Portugal não é
geográfica e tem uma matriz judaica e bíblica?
Muito bíblica. O povo bíblico foi
sempre um povo nostálgico do tempo do rei David, dez séculos antes do nascimento
de Jesus, de ter sido uma realidade imensa. Nós estamos assim: a nossa matriz
bíblica é fortíssima, alongada também pela diáspora. A nossa terra também é
pequena, em relação aos nossos sonhos. Temos sempre a ideia de que nos vamos
reencontrar e realizar, finalmente, o Quinto Império, como diria o padre
António Vieira.
Escreve num outro texto que da poesia vem a nossa disponibilidade para
o milagre. Somos poetas e supersticiosos ou esta é uma forma poética de cruzar
a poesia e as artes?
É isso, mais que a superstição. A
superstição e a magia retêm na impossibilidade e em cativeiros interiores, até psicológicos
e doentios. A poesia é o contrário, é o domínio que toma o real não para o
constatar mas para o fabricar. Até etimologicamente significa isso. É muito
difícil estar numa conversa qualquer e, se ela perdura, não entrarmos já
claramente no campo da imaginação e do que poderíamos ser.
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