Novo
título da colecção Santos e Milagres na
Idade Média em Portugal é apresentado hoje; mulheres mártires e santas tinham
papel destacado no cristianismo da Alta Idade Média.
(ilustrações das capas dos três primeiros volumes da colecção:
São Vicente, Santa Eulália, Santa Engrácia e São Félix)
São
Vicente de Fora, as obras de Santa Engrácia (ou o Panteão, agora na moda), o
elevador de Santa Justa, a Póvoa de Santo Adrião, o forte de São Julião da
Barra... Estes nomes de lugares e do património nacional têm uma vida, alguma
história e muito culto ou muitas lendas por detrás. Para desvendar esses
aspectos desconhecidos, que traduzem muito da nossa cultura e identidade,
surgiu a colecção Santos e Milagres na
Idade Média em Portugal, dirigida por Paulo Farmhouse Alberto, no âmbito do
Centro de Estudos Clássicos (CEC), da Universidade de Lisboa.
Estão
já publicados seis volumes: São Vicente;
Santa Eulália; Santa Engrácia e São Félix; S. Sebastião; Santa
Justa e S. Cucufate; S. Lourenço. A colecção completa deverá
incluir ainda os títulos São Julião, Santo Estêvão, S. Mamede e S. Jorge, S.
Veríssimo e São Cristóvão, S. Nicolau
e Santiago.
Hoje, às 17h30, na igreja matriz da Póvoa de Santo Adrião (Odivelas) o
patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente,
apresentará um novo volume, dedicado a Santo Adrião, Santa Natália e S. Manços (a festa católica litúrgica
de Santo Adrião assinalou-se no passado dia 4). No final desta série, haverá um
total de doze títulos e 22 figuras de santos – o trabalho sobre S. Veríssimo
inclui também os perfis de Máximo e Júlia, enquanto o texto
sobre Santa Justa fala também de Rufina, pois ambas estão ligadas na tradição
popular.
O director da colecção explica que os
diferentes volumes “partem dos textos mais antigos” e das tradições de culto “na
Península Ibérica em período visigótico e moçárabe”. Ou seja, os santos
apresentados são todos anteriores à formação da nacionalidade. Mas nem por isso
menos influentes na tradição popular e literária, bem como no forjar da
identidade cultural da região que viria a ser Portugal (ou mesmo da Península
Ibérica, em alguns casos).
O caso de São Vicente, o primeiro
título da colecção, é paradigmático da “espantosa difusão” que o culto de
algumas destas figuras “alcançou nos séculos anteriores à nossa nacionalidade”.
No caso de São Vicente, ele chegou à Península Ibérica, à Gália, à Grécia ou à Península
Itálica. No caso do actual território português, acabou por ficar
indissoluvelmente ligado a Lisboa, como seu padroeiro, apesar de esta não ser a
única cidade a presumir ter as suas relíquias: também Castres e Metz (actual
França), Bari, San Vincenzo al Volturno, Cortona, Benevento (Itália) e
Monembasia (Grécia) reivindicavam ter o corpo do santo.
A Paixão
de São Vicente, Diácono e Mártir, um texto visigótico do século VI, culmina
precisamente com a história do achamento do corpo do santo, que tinha sido
escondido, e a extensão do culto: “Desta igreja, levaram o santo Vicente para a
catedral, onde é consagrado sob o altar. O local, dedicado pela piedade a Deus
e venerável pelas relíquias, glorificou-o ao ser por ele glorificado. Depois,
as trasladações de relíquias para muitos locais fizeram o seu culto crescer.
Ganhou a veneração de muitos, de tal forma que quanto mais lugares consagra,
mais abundantemente é glorificado.”
Este fenómeno acentua-se sobretudo no
século XII, quando o “achamento” de corpos de santos e relíquias contribuía
para promover as peregrinações a determinados lugares e aumentar o prestígio de
determinadas igrejas ou santuários, como explica Paulo Farmhouse na introdução
do volume dedicado a São Vicente.
Cada volume, com uma belíssima
apresentação gráfica, inclui, além da apresentação histórica da figura do(s)
santo(s) ou santa(s) retratados, um conjunto de textos literários ou litúrgicos.
Como a Paixão de São Vicente Mártir,
da autoria de Prudêncio, um dos grandes poetas da Antiguidade, apelidado de
“Horácio cristão”: “Bem porfiam eles por sulcar o mar/ com o batel a toda a
velocidade;/ mas o corpo voa lá longe à frente,/ em direcção ao gentil regaço
da terra.”
No Hino em Honra dos dezoito Mártires de Saragoça, o mesmo Prudêncio escreve,
já no volume sobre Santa Engrácia: “A nenhum dos mártires calhou habitar/ nas
nossas terras ficando com vida./ Apenas tu, escapando à própria morte,/ vives
em toda a parte.”
A
poesia de Prudêncio, que iria influenciar muita da produção literária da Idade
Média, tem uma “métrica requintada” e é poderosa em “cores, imagens e
epigramas”, afirma Paulo Farmhouse Alberto.
Os santos apresentados nesta colecção
têm “uma tradição literária e
litúrgica no período visigótico”, diz o responsável da colecção ao
RELIGIONLINE. De todos eles há marcas de culto antigo, anterior ao século XII,
presente no actual território – aliás, a lista dos volumes foi organizada de
acordo com as freguesias de Lisboa na época de D. Afonso Henriques.
Trata-se
de mostrar que estes nomes tão presentes na geografia e nas tradições evocam
pessoas e histórias concretas. A ideia da colecção foi, assim, dar mais consistência
aos “marcos da nossa paisagem que não associamos à sua origem”. Os livros oferecem-nos
textos que, de outra forma “nunca seriam lidos”, pois são todos inéditos na
contemporaneidade: “Nenhum texto tinha sido traduzido até agora para português ou
qualquer outra língua moderna”, diz Paulo Farmhouse. Que considera estarmos
perante grandes autores de poesia e textos litúrgicos: “Mesmo os textos de
prosa são de grande vivacidade, estão cheios de diálogo, relatam a vida dos
mártires com uma grande qualidade literária”, acrescenta.
Um
outro aspecto que ressalta da colecção é a presença de seis mulheres mártires.
Por exemplo, o volume que hoje é apresentado era inicialmente dedicado apenas
aos santos Adrião e Manços. Natália, esposa de Adrião, foi acrescentada depois.
“Na tradição litúrgica e literária visigótica, Natália tem grande
preponderância”, explica Paulo Farmhouse. “Esta é a razão da sua inclusão no
título. Nessa época, quando se fala de um mártir ou santo, estamos muitas vezes
a falar de dois, um casal. Natália tinha mesmo orações próprias na liturgia.”
Este destaque remete para uma outra
questão: muitas vezes, e é esse o caso de Adrião, “é a mulher a instigadora, a
que encoraja, aquela que tem o papel fundamental” na defesa da fé. O mesmo se
passa quando se falar de São Veríssimo, que na realidade inclui Máxima e Júlia,
ou de Santa Justa, que aparece ligada a Santa Rufina, recorda este professor de
Latim.
A
opção foi fazer traduções directas do latim, e com uma fidelidade absoluta ao
texto latino, mesmo que a versão final pareça menos “menos fluída em
português”.
Há pouco mais de um ano, apresentando
no porto os primeiros três volumes da colecção, D. Manuel Clemente afirmou que
estes livros proporcionam aos crentes “uma
base mais segura de identificação” das vidas e martírios dos santos estudados.
Indicam também algumas das “primeiras referências socioculturais de boa parte
do país, algo de grande importância identitária e cultural”, que “deu às
populações em geral um sentido martirial da vida que depois se generalizou na
própria autocompreensão portuguesa”. Pode dizer-se, acrescentou o então bispo
do Porto, que através destes textos “ficaremos a saber melhor quem somos nós,
os portugueses de maior ou menor crença e pertença católica”.
O
facto de serem mártires tem também muito desta referencia identitária,
recordava ainda D. Manuel: “Simbolicamente, da interpretação das cinco quinas
como as cinco chagas de Cristo à representação martirial da figura duplicada no
centro dos painéis de Nuno Gonçalves e mesmo ao rubro da bandeira nacional, que
na escola nos diziam ser o sangue dos soldados que tinham morrido pela pátria:
tudo é basicamente martirial e perpetua os elos iniciais da nossa sociedade e
cultura.”
Esta
colecção, que cobre uma “lacuna” da produção cultural relativa ao que que é
hoje o território português, deverá estar finalizada no próximo ano de 2015.
Com Arnaldo Espírito Santo como consultor científico, cada livro inclui a
tradução da apresentação em inglês.
(a seguir, pode ver-se uma entrevista de Paulo Farmhouse Alberto à RTP)
1 comentário:
a entrevista esta neste link
https://www.youtube.com/watch?v=Q2Cd6G5ojMM
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