Obituário
(fotos António José Paulino)
Apaixonado pela biologia e pela música, exímio pianista, educador de gerações, o padre Miguel Ponces de
Carvalho morreu sábado, dia 29 de Março, em Lisboa. Neste domingo, 6 de Abril,
a sua memória foi evocada num encontro de amigos.
Era
“um óptimo fazedor de redes”, diz, ao RELIGIONLINE, Luís Miguel Neto, professor
universitário e um dos muitos amigos do padre Miguel, como era conhecido. Luís
Miguel conheceu-o em Agosto de 1974, num acampamento de escuteiros no Gerês,
que pretendia ajudar bombeiros e autoridades no combate aos fogos. Luís Miguel
ia entrar no Serviço Cívico Estudantil, criado para que os estudantes fizessem
a transição do secundário para o universitário.
“O
padre Miguel falou-me na JUC [Juventude Universitária Católica], que estava a
tentar lançar grupos no secundário. Ele tinha uma visão crítica das coisas mas,
entre as discussões acaloradas que tínhamos entre os mais novos, ele era uma
referência de ponderação.”
Tinha
sido nesse contexto do contacto com gente mais nova que António José Paulino
conhecera o padre Miguel, ainda em 1973. “Ele era assistente nacional da JUC e
estava a organizar um encontro para os mais jovens.”
Nessa
altura, o padre Miguel, melómano e exímio tocador de piano, já se dedicava
muito à música e à ópera. “Esse gosto musical e essa jovialidade davam-lhe uma
grande proximidade com os mais novos”, recorda Paulino, engenheiro
electrotécnico.
Gerações de estudantes
As
canções de Jacques Brel eram citadas com frequência pelo padre Miguel, mas as
suas paixões musicais eram muito largas e intensas. Isabel Sassetti recorda
que, ainda criança, o seu pai e Miguel Ponces de Carvalho, que eram muito amigos,
passavam horas a tocar piano e cantar. “O padre Miguel compôs uma peça em que
contava a criação do mundo, segundo o relato do Génesis”, recorda.
A
sua dimensão de educador de gerações foi evocada por José Pedro Castanheira no Expresso. Recorda o texto (que pode ser
lido aqui na íntegra): “Ajudou a formar várias gerações de estudantes universitários
católicos, entre os quais se incluiu o ex-primeiro-ministro António Guterres,
os ex-ministros Roberto Carneiro (Educação), Pedro Roseta (Cultura) e Amílcar
Teias (Ambiente), ou o ex-candidato presidencial da UDP, Carlos Marques.
Privaram ainda com o ‘padre Miguel’, como todos o conheciam e gostava de ser
tratado, o ex-alto comissário para a imigração, José Leitão, o cirurgião
Queirós e Melo, o ensaísta e professor Onésimo Teotónio Almeida, a ex-vereadora
Helena Roseta e nomes ligados às tecnologias, como José Tribolet e Manuel
Collares Pereira.
Na
mesma linha, o professor universitário José Manuel Pureza evocou a figura de
Miguel Ponces de Carvalho num texto que publicou na sua página de Facebook: “Todos
somos construções, é sabido. Fazemo-nos nas tensões e nas comunhões com
outros/as. Miguel Ponces de Carvalho, padre, homem de ciência mas sobretudo de
sabedoria, melómano, operário do diálogo entre culturas, fez-me. A mim e a
gerações de estudantes crentes. Partiu ontem para aquele reino que
anunciou sem facilitismos e que ajudou a construir nas nossas vidas. Continuar
essa construção exigente e crítica foi a herança que me/nos deixou.”
António
José Paulino recorda que o padre Miguel acabou por influenciá-lo também na
descoberta do gosto pela leitura de policiais e num outro pormenor: “Um dia,
numa reunião de grupo, ele disse-me para ir com ele lavar a louça, porque era
uma forma de descontrair. Fui e ainda hoje o lavar a louça é uma maneira de
descomprimir, aprendi isso com ele.”
Para
lá disso, o padre Miguel ainda deu apoios mais decisivos: Paulino recorda que,
no segundo ano do Técnico, estava com problemas para pagar os estudos. O padre
Miguel falou com um amigo e arranjou-lhe forma de fazer um pequeno trabalho
para ter algum dinheiro.
Os verdes anos
Luís
Miguel Neto diz que o convívio com o padre Miguel foi “um amadurecimento muito
bom dos verdes anos”. Uma das coisas de que se recorda é uma conversa animada e
profunda, entre o padre Miguel e o padre João Resina, que era professor no
Instituto Superior Técnico, sobre a natureza da ciência.
“Eu
estava a entrar no ISPA”, Instituto Superior de Psicologia Aplicada. “E tive
essa oportunidade de ouvir pessoas falar sobre questões importantes, sem ser
numa conversa de cassete.”
Formado
em Biologia, Miguel Ponces de Carvalho tinha de facto nessa área uma das suas
outras paixões. Nascido em Bolama (Guiné-Bissau), em 1931, Miguel Ponces de
Carvalho viveu na então Rodésia do Sul (actual Zimbabué), antes de vir para
Portugal, aos oito anos. Matriculou-se ainda na Faculdade de Medicina, mas a
sua adesão à JUC levou-o a entrar no Seminário dos Olivais. O estudo das
ciências só regressaria mais tarde, já depois de ter sido ordenado padre pelo
cardeal Cerejeira, em 1958. Matriculou-se desta vez na Faculdade de Ciências,
para fazer Biologia, ficando depois durante alguns anos a leccionar História e
Filosofia das Ciências.
Num
texto sobre A origem e evolução da vida –
novas perspectivas e reflexão cristã,
publicado na revista Communio, em 1998 (nº V), escrevia: “Compreender as origens é necessário para uma inteligência
cada vez mais actuante na Terra e até no Universo. (...) Ora há 3500 milhões de
anos aconteceu na Terra a Vida: sistemas energéticos capazes de utilizar com
progressiva eficácia a energia que o Universo lhes fornece. Serão os seres
vivos parasitas ou simbiontes dos restantes seres? A
resposta encontra-se no homem, ser
vivo extremamente eficaz, ‘para o bem e para o mal’, com capacidade de investir
na Evolução ou na Involução desse Universo.”
No
mesmo artigo, acrescentava, sobre a responsabilidade humana com o
desenvolvimento científico: “Se o homem é resultado da história do Universo é
também responsável pelo futuro do Universo e muito especialmente da Terra. A
sua actividade há-de reger-se pelas necessidades energéticas e por imperativos
éticos. A utilização de fontes de energia, sem referências éticas, corresponde
a parasitismo. Só uma ética baseada
na liberdade e na responsabilidade solidária fará do homem um simbionte de todo o Universo.
Ecologia-ética, um domínio a desbravar.
Para isso, utilizando a
nomenclatura de Teilhard de Chardin, é necessário valorizar e amar o Homem e a
Natureza, a que ele pertence, de que depende e em que actua.”
Educação intercultural, educação para as
diferenças
A
sua paixão pela Biologia levou-o a dar aulas também no ensino secundário (onde
já tinha estado, logo depois de ser ordenado, como professor de Religião e
Moral). E foi na sequência da sua actividade lectiva e do seu gosto pela
educação, que Roberto Carneiro, enquanto ministro da Educação, o chamou para o
Secretariado Entreculturas (SE) – primeiro como secretário executivo, depois
como presidente.
O
novo organismo, criado em 1991, pretendia executar programas educativos na
linha da aprendizagem conjunta – pensando essencialmente em descendentes de
emigrantes e do meio milhão de deslocados das ex-colónias, que tinham vindo
para Portugal em 1974-75, recorda Isabel Ferreira Martins, que trabalhou com o
padre Miguel no SE.
“Era
uma pessoa com uma sensibilidade grande para com as ciências naturais”, diz
esta técnica do Ministério da Educação. “A educação intercultural fazia-lhe eco
do ponto de vista da construção das diferenças, mesmo a partir da biologia.”
No
boletim do SE, Diálogo Entreculturas,
escrevia em Outubro de 1998, a propósito da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, que esta “afirma com toda a clareza as diferenças existentes entre
todos os seres humanos. E em Janeiro de 1996, na mesma publicação, já
registara: “Todo o acto pedagógico correcto é, assumamo-lo ou não,
intercultural. Todo o sistema educativo é necessariamente multicultural.”
Conversador,
artista, um “esteta”, funcionava muito como professor e menos como padre, diz
ainda Isabel Ferreira Martins, o que também lhe granjeou o respeito de
diferentes responsáveis políticos e ministeriais. E que fez com que, extinto o
SE em 2005 e integradas as suas competências no então ACIME (Alto Comissariado
para a Imigração e Minorias Étnicas), o padre Miguel fosse logo a seguir colocado como responsável (entre 2005
e 2007) da nova Estrutura de Missão para o Diálogo com as
Religiões – que, por sua vez, seria depois integrada no ACIDI (Alto
Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural). Esta sua dedicação ao
diálogo intercultural levou-o a estar presente na criação, em 1993, da Associação
de Professores para a Educação Intercultural, da qual foi o sócio número 1,
como recorda Isabel Ferreira Martins.
Sempre um fazedor de
redes e de pontes, o padre Miguel exerceu ainda múltiplas funções eclesiais,
entre as quais as de pároco de Campolide, São Mamede e Lapa-Estrela.
(aqui pode ler-se um outro
perfil do padre Miguel Ponces de Carvalho; agradece-se a Camila Ferreira e
Maria Ângela Branco pela colaboração na pesquisa de textos)
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