25 de Abril, 40 anos
a demarcar-se dos Missionários Combonianos e do bispo de Nampula
Um relatório da PIDE elaborado 10 meses antes do 25 de Abril
propunha que se prescindisse do trabalho missionário de vários institutos
religiosos. Feitas as contas, a decisão levaria à expulsão de 155 padres. As
autoridades não seguiram a sugestão mas, em Fevereiro de 1974, o regime acabou
por mandar embora de Moçambique mais 11 missionários e um bispo. Por causa de
um “imperativo de consciência”.
(Texto publicado no Público de 23 de Abril de 1999; apenas foram actualizadas as referências temporais)
A situação político-religiosa de Moçambique em Junho de 1973, dez
meses antes do 25 de Abril de 1974, era considerada pela PIDE/DGS como
“causando graves apreensões” nas áreas das dioceses da Beira e de Tete. Num
relatório pormenorizado sobre a presença da Igreja Católica naquele Estado “e
suas implicações com a segurança”, a PIDE concluía que a situação ficaria
melhor “se fosse possível prescindir dos Institutos de Burgos, Capuchinhos de
Trento, Combonianos, Sagrado Coração de Jesus e Padres dos Sagrados Corações”.
Ao propor esta medida, o relatório da polícia política do Estado
Novo estava a sugerir a expulsão de 155 missionários que trabalhavam em todo o
território moçambicano. Nessa altura, o número total de padres a trabalhar em
Moçambique (entre autóctones e estrangeiros) era de uns 550. O que, a
concretizar-se a ideia expressa no relatório dirigido ao governador de
Moçambique, significava expulsar mais de um quarto dos membros do clero
católico. Isto, já depois de terem sido expulsos do território, entre 1971 e
1972, vários membros dos Padres Brancos, dos Padres de Burgos e dos
Missionários Combonianos.
Na alínea c) do relatório, já citada, o director da delegação da
PIDE em Moçambique acrescenta que, se se prescindisse dos missionários
referidos, “beneficiariam as dioceses afectadas e as que se prevê virem a
sê-lo”. E, se isso não se concretizasse, “a subversão violenta” iria
estender-se “a novas áreas ainda não afectadas”, tudo levando a crer que
surgiriam “implicações mais graves com a segurança”.
A informação nº 86/73/DI/2/SC-G.G., com 31 páginas
dactilografadas, traça um panorama completíssimo do que era a posição dos
missionários em relação ao estatuto da então colónia portuguesa, dos casos
considerados mais perigosos para a segurança do Estado, das opiniões dos
respectivos bispos e das missões que ofereciam preocupações às autoridades do
Estado Novo.
Pides a fazer teologia
O relatório começava por se referir ao “estado da questão”, com um
“vasto campo de análise em que factores de ordem religiosa, social e política
se entrechocam, tornando o tema melindroso e difícil”. E entrava depois por
conceitos teológicos: “Tendo em conta que o conceito de Igreja envolve não só a
hierarquia mas também todos os católicos (binómio Igreja/Corpo Místico), a
principal limitação que nos surge é a impossibilidade de seguirmos atentamente
o comportamento político-religioso dos leigos. Alguns destes tentavam “a
escalada de pastorais ultra-modernas à luz da actual doutrina social”. Mas,
como não eram muitos, “os seus voos são perfeitamente controlados ou
controláveis” pelos bispos.
Vivia-se, entretanto, um contexto teológico desfavorável. “Já
antes” do Concílio Vaticano II (que se realizara entre 1962 e 65) havia
teólogos de várias zonas do mundo a enveredar “por uma hermenêutica, tipo
racionalista, tentando descobrir e desenvolver uma temática evangélica” que até
aí tinha sido “inaceitável”. Os temas que vinham “sendo abordados nas altas
esferas teológicas” eram, cada vez mais, analisados “por prismas
revolucionários”, sendo fácil ouvir falar em “teologia e/da revolução”,
“evangelho e libertação”, “profecias e política”, “política do Antigo
Testamento” e “função política do culto”.
Havia mesmo, supremo insulto, quem distinguisse no julgamento de Jesus
Cristo um julgamento religioso e “outro político (por subversão relativamente
ao poder constituído – domínio romano)”. E havia exegetas que viam Jesus como
“um revolucionário”, cuja conduta tinha sido “estritamente política e o
evangelho um anúncio de libertação do domínio de poderes temporais”. A análise
teológica do relatório da PIDE terminava afirmando que todas essas tendências
difundidas no Terceiro Mundo serviam “cabalmente os interesses dos países
comunistas”.
Os padres “aburguesados”
O relatório entrava depois a analisar minuciosamente cada um dos
institutos religiosos masculinos presentes em Moçambique. Listava um conjunto
de 16 congregações masculinas: Padres Monfortinos, Missionários da Consolata,
Padres Franciscanos, Missionários Combonianos, Instituto de São Francisco
Xavier de Burgos, Padres do Coração de Jesus (Dehonianos), Jesuítas,
Capuchinhos, Capuchinhos de Bari, Padres dos Sagrados Corações, Sacramentinos,
Sociedade Missionária Portuguesa, Congregação da Missão, Ordem Hospitaleira de
São João de Deus, Salesianos e Dominicanos (que acabavam de chegar ao
território).
Os mais perigosos eram aqueles que o relatório mencionava como
sendo necessário prescindir dos seus serviços. Mas havia outros que, sem
estarem na lista mínima, também eram causa de problemas: os monfortinos seriam
partidários da autodeterminação de Moçambique; alguns da Consolata já se tinham
revelado “contestários exacerbados”, mas os seus superiores aconselhavam os
padres a não se intrometerem “na orientação sócio-política”; os Capuchinhos de
Bari desenvolviam trabalho social com o objectivo de “realçar a indiferença”
das autoridades oficiais em relação aos seus problemas. Já os jesuítas, na sua
maior parte, não seguiam a “eventual atitude refractária e hostil atribuída” ao
seu superior-geral, padre Pedro Arrupe.
Dos 33 institutos femininos a trabalhar em Moçambique, com um
total de 1224 religiosas (das quais 270 estrangeiras) não havia muito a recear.
À excepção de duas freiras – a italiana Maria de Carli e a espanhola Divina
Vasquez Rodriguez –, não se conheciam “atitudes ou actividades” de religiosas
que implicassem com a segurança, mas o relatório salientava o facto de algumas
delas já estarem a aprender com os padres e irem para Moçambique “com graus
académicos”.
Entre os padres diocesanos, não vinculados a nenhum instituto
religioso, havia apenas alguns casos isolados que eram objecto de preocupação,
entre os quais Joaquim Teles de Sampaio, um dos primeiros a denunciar massacres
cometidos pelas tropas portuguesas, e João Baptista da Mata, que fazia, na Sé
de Lourenço Marques (actual Maputo), “homilias impregnadas de maoísmo e
utopia”. Os restantes, de um modo geral, não criavam complicações. “Estão de
certo modo ‘aburguesados’, não tendo problemas de ordem financeira e não se
mostrando interessados em entrar em atrito com a política governamental”.
O mesmo epípeto era dado ao então bispo de Quelimane. D. Francisco
Nunes Teixeira (1910-1999): “É de tipo moderado, conservador, talvez mesmo
‘aburguesado’”, um bispo que aconselhava os seus padres a manifestarem
“espírito cristão, moderação e prudência” nos contactos com as autoridades, “a
fim de se evitarem atritos prejudiciais”.
Esta tese tem uma relativa confirmação do próprio. No seu livro “A
Igreja em Moçambique na Hora da Independência (1955-1975)”, publicado em 1995
(ed. Gráfica de Coimbra), Francisco Nunes Teixeira admitia que o método
preferido pela maior parte dos bispos moçambicanos era o diálogo directo com as
autoridades.
Vieira Pinto fugia “à vulgaridade”
D. Manuel Vieira Pinto (foto reproduzida daqui)
Os membros do episcopado também eram objecto da lupa e da
vigilância da PIDE. O arcebispo de Lourenço Marques, Custódio Alvim Pereira,
era “da linha conservadora”; o bispo de João Belo (actual Xai-Xai), Félix Niza
Ribeiro, mantinha boas relações com as autoridades civis, mas tinha ido depor a
favor dos padres de Macuti, que tinham denunciado massacres; Ernesto Gonçalves
da Costa, de Inhambane (que seria depois bispo da Beira, entre 1974 e 1977, e
bispo do Algarve entre 1977 e 1988), era “tradicionalista e muito equilibrado”,
mas também tinha deposto no julgamento dos padres de Macuti; Augusto César da
Silva, de Tete (e que viria a ser bispo de Portalegre entre 1978 e 2004), “pode
considerar-se muito bom” e um dos que mantinha o “equilíbrio, exigido nas relações
com os poderes temporais”; José dos Santos Garcia, de Porto Amélia (actual
Pemba), seguia a “linha conservadora” da Igreja e não escondia “o seu acérrimo
e irredutível portuguesismo”; e Luís Gonzaga da Silva (que vinha dos jesuítas e
era bispo de Vila Cabral, actual Lichinga) era “o que melhor” se identificava
“com o sistema político vigente”.
Aquele que merecia mais acusações no relatório da PIDE era Manuel
Vieira Pinto (bispo de Nampula entre 1967 e 2000). A sua “personalidade e
mentalidade” fugiam “à vulgaridade dos seus colegas do episcopado” e a sua
actuação “em desfavor da sã ortodoxia católica por apadrinhamento de
contestatários e seus grupos tem ultrapassado todas as barreiras do decoro
episcopal”. Mais grave ainda, Vieira Pinto fazia “tábua rasa do respeito
hierárquico devido, pelo menos,” ao arcebispo de Lourenço Marques. E do
“acinte” que mostrava “contra a política ultramarina portuguesa nem é bom
falar”.
Poucos meses depois deste relatório, em Fevereiro de 1974, foi
publicado o documento “Imperativo de Consciência”. O texto era assinado por D.
Manuel Vieira Pinto e todos os combonianos presentes em Moçambique (34 padres,
19 irmãos leigos e 41 irmãs – afinal, o relatório enganara-se, sobre as
freiras). E, no documento, os signatários insurgiam-se contra a política
colonial, contra a continuação da guerra e contra o silêncio da Igreja Católica
em Moçambique. A polémica voltou a estalar, e o Governo deu ordem de expulsão a
11 missionários combonianos (nove italianos e dois portugueses) e ao bispo de
Nampula, que chegou a Lisboa nas vésperas do 25 de Abril. Entre 1974 e 1977,
vários bispos moçambicanos pediram para sair das suas dioceses. Vieira Pinto
voltou para Nampula.
As divisões e os massacres
O (então) bispo de Tete, D. Augusto César, foi um dos prelados
moçambicanos que, em 28 de Fevereiro de 1974, enviou ao cardeal Jean Villot,
então secretário de Estado do Vaticano, uma carta manifestando-se contra a
actuação do seu colega de Nampula, Manuel Vieira Pinto, por causa da elaboração
do texto “Imperativo de Consciência” – onde se condenava a guerra colonial e a
atitude silenciosa dos bispos.
Havia “no referido documento graves acusações dirigidas à Igreja e
à hierarquia de Moçambique”, em “ressonância clara da propaganda que a
imprensa, mesmo católica” fazia à posição do episcopado moçambicano. Essas
acusações, eram “injustas e falsas”, escreviam os bispos, que se manifestavam
profundamente magoados e ofendidos com “as decisões tomadas por um bispo com um
instituto missionário” – os Missionários Combonianos – à margem dos restantes
membros” da Conferência Episcopal. “Esta atitude, em vez de contribuir para a
unidade, só poderá provocar a divisão e a confusão, tornando o nosso trabalho
cada vez mais difícil. Porém, se a linha a seguir é a que vem no documento e se
nós estamos a ser infiéis ao nosso ministério episcopal, como se insinua, (...)
estamos dispostos conjuntamente a deixar as nossas dioceses e a entregá-las.”
A carta revelava as divisões que progressivamente se vinham a
acentuar no interior do episcopado moçambicano. O primeiro bispo da Beira,
Sebastião Soares de Resende, tinha sido o primeiro a contestar a política
colonial e a falar da autodeterminação dos moçambicanos, nas décadas de 50 e
60. Soares de Resende, que morreu em meados da década de 60, tomava posições públicas e não se coibia de
divulgar o que pensava. Depois, com a chegada de Vieira Pinto, em 1967, essa
linha continuou assegurada com o novo bispo de Nampula. Mas a maioria dos seus
pares considerava que deveria agir discretamente, falando ou escrevendo à
autoridades.
Em 1971 vários padres denunciaram massacres cometidos pelo
Exército português. Em consequência disso, o regime expulsou elementos do
Instituto de São Francisco Xavier de Burgos, dos Padres Brancos e dos Missionários
Combonianos. Luís Afonso da Costa, um dos combonianos que trabalhava na altura
em Marara (diocese de Tete) foi um dos primeiros a denunciar o que estava a
acontecer. Entre 4 de Maio de 1971 e 30 de Março de 1972, o padre Luís Afonso –
que entretanto abandonou os combonianos e foi residir para Itália – contabilizou
83 pessoas mortas pela tropa portuguesa, 21 das quais em Mucumbura, em 4 de
Novembro de 1971. “Os comandos queimaram vivas 16 pessoas na povoação do
António (Mucumbura). (...) Junto à loja do senhor Gabriel havia os cadáveres
queimados de mais cinco pessoas, impossíveis de reconhecer”, entre os quais uma
criança, lê-se no documento “Mais um ano de agonia... sem esperança de
ressurreição”, escrito pelo então padre Costa em Maio de 1972.
“Em reunião do conselho de pastoral, ficou decidido que eu iria
levar ao conhecimento de toda a gente – missionários, leigos – o que se passava
em Moçambique. Estive em Quelimane, Nampula e outros sítios”, contou ontem ao
PÚBLICO Luís Afonso da Costa, a partir de Itália. “Pedi à Conferência Episcopal
uma declaração, disseram-me que iam ver a documentação e falar com o
governador.”
Essas eram as duas linhas que subsistiam: “Devido aos privilégios
que a Igreja tinha, muitos preferiam manter o ‘status quo’, os missionários
queriam que a Igreja não estivesse ao lado do Governo português”, analisa Luís
Afonso da Costa.
O mesmo conflito esteve presente nas outras antigas colónias.
Fernando Santos Neves, que foi padre dos Missionários do Espírito Santo e é
hoje reitor da Universidade Lusófona, em Lisboa, foi mandado para Angola pelo
então superior-geral da congregação, Marcel Lefèbvre – o bispo que, nos anos
80, se rebelaria contra o Vaticano, com o seu catolicismo integrista. Santos
Neves organizou, em Lisboa e em Angola, semanas missiológicas, criou um
instituto teológico em Angola e, aqui, a PIDE não o deixou sossegado. Santos
Neves foi exilado para Paris e, no início de 1974, escreveu e publicou
“Negritude e Revolução em Angola”. “É evidência histórica (...) que todas as
‘religiões’ e ‘igrejas estabelecidas’ fizeram sempre o jogo das (des)ordens
‘estabelecidas’ e foram portanto, sempre ‘contra-revolucionárias’”. A mudança
só poderia ser feita, escrevia Santos Neves, com uma presença da Igreja que se
traduza na liberdade, no serviço e na pobreza.
Próximo texto, dia 29
A falta de lucidez da Igreja Católica em relação à guerra colonial
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1 comentário:
Muito bom Antônio. Abraço, Zé F.
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