25 de Abril, 40 anos
A história do grupo de padres que condenou a ligação da Igreja ao Estado
Novo e que os bispos proibiram de se reunir em Fátima – e a carta inédita que
106 padres de Lisboa escreveram ao cardeal Cerejeira dizendo-lhe quem e porquê deveria
ser o seu sucessor como patriarca
(texto publicado no Público a 18 de Abril de
1999; o texto foi mantido tal como publicado naquela data, incluindo todas as
referências temporais)
Chamavam-se “Tribuna Livre”. Eram padres de vários pontos do país
que, durante meses, abalaram o frágil equilíbrio em que se encontrava a Igreja
Católica e não esconderam a sua oposição ao regime. Proibidos pelos bispos de
se reunirem em Fátima, não desistiram, criticaram a colagem da hierarquia ao
poder político e o medo que se vivia na sociedade e na instituição
eclesiástica. Isto, dois anos depois de muitos deles terem assinado uma carta a
propor quem devia substituir o cardeal Cerejeira como patriarca de Lisboa...
Há quase 30 anos, em Novembro de 1969, um grupo de 67 padres de
cinco dioceses do país era forçado a procurar uma alternativa a Fátima para se
poder reunir e pensar a sua missão numa sociedade em mudança.
Perante a emergência, o então prior do Entroncamento resolveu bem
o problema: “Telefonaram-me à última hora. Era difícil arranjar alojamentos
mas, nas missas de domingo, fiz um apelo a quem estivesse disponível para
receber colegas meus e contratei um restaurante em frente da estação para as
refeições”, recorda agora Carlos Leonel Santos, editor na Multinova.
Duas semanas antes, o cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira, então
patriarca de Lisboa, tinha sabido da preparação do encontro e escrevera uma
carta ao clero da sua diocese a contestar a “obra dissolvente” que o encontro significava.
O episcopado, entretanto reunido, manifestou-se também contra os padres
“marginais”. Acto contínuo, o bispo de Leiria proibiu todas as casas religiosas
de Fátima de receber o grupo. Perante a interdição, os organizadores decidiram
manter a convocatória, mudando de lugar e recorrendo ao salão paroquial do
Entroncamento.
Era um encontro com claro fundo político, admite Manuel Tiago
Martins, 61 anos, então pároco de Tremez (Santarém) e hoje professor do ensino
secundário em Queluz. “Mas o seu objectivo era fundamentalmente religioso.
Pretendíamos reflectir sobre a nossa missão numa sociedade em mudança, na qual
já se pressentia que era impossível aos padres continuarem a colaborar com a hierarquia
[católica] ligada ao sistema.”
A realização do encontro não caía do céu, mas começara um ano
antes: depois do Verão de 1968, um grupo de padres da diocese de Lisboa começou
a encontrar-se mensalmente. Das conversas informais, para troca de ideias e de
informação, rapidamente se passou à constituição do grupo “Tribuna Livre”.
Apoio mútuo, partilha de reflexões, troca de informação dos vários grupos de
oposição católica ao regime eram alguns dos fins que o grupo se propunha.
Rapidamente surgiu a ideia de alargar o debate a padres de outros pontos do
país, através da realização de um encontro que debatesse a “rentabilidade”
evangélica do seu trabalho como padres.
O ano da criação do grupo, 1968, tinha sido fértil em
acontecimentos na área do patriarcado de Lisboa: o Seminário dos Olivais vivera
uma crise que levara à demissão colectiva dos seus responsáveis – entre os
quais alguns da “Tribuna Livre”; o cardeal Cerejeira instaurara um processo ao
padre José Felicidade Alves, então pároco de Belém; três padres, vestidos de
batina, participaram numa manifestação contra a guerra no Vietname; e, no final
do ano, uma vigília na Igreja de São Domingos atrevia-se a rezar pela paz e
pelo fim da guerra em África, numa época em que o tema era tabu. Este último acontecimento
deu origem, pouco depois, à publicação do Boletim
Anti-Colonial, liderado pelo
arquitecto Nuno Teotónio Pereira e por Luís Moita, então padre na paróquia de
Marvila, actualmente reitor da Universidade Autónoma de Lisboa.
Foi precisamente em Marvila que o grupo se foi reunindo, numa
capela da antiga Fábrica da Pólvora adstrita ao Exército. A PIDE, polícia
política do Estado Novo, chegou a interromper duas reuniões e a levar alguns
documentos – o que criou um atrito de alguma gravidade entre a polícia política
e os responsáveis do Exército. Depois de uma dessas invasões, Luís Moita
escreveu ao cardeal Cerejeira a pedir-lhe que interviesse. Sem resultados.
Outra vez, foi no Entroncamento que a PIDE foi procurar exemplares
dos Cadernos Gedoc, publicação também
ligada à oposição católica à ditadura. “A paróquia do Entroncamento era um
ponto de distribuição do Gedoc, mas
dessa vez escondemos os cadernos na coelheira e a PIDE não conseguiu
encontrar”, relembra Carlos Leonel Santos.
A rede de padres servia para trocar informações e documentação,
mas também para organizar campos de férias e falar em paróquias. “Tínhamos
algum receio do que poderia acontecer, mas sentíamos a obrigação de investir
nessas acções, porque éramos privilegiados, no sentido de que a própria PIDE
hesitava, por vezes, sobre o que havia de fazer em relação ao nós”, diz Manuel
Tiago Martins.
Apesar da importância que o grupo teve, não foi o único a surgir
nessa altura. As iniciativas de oposição à ditadura e à guerra colonial multiplicavam-se
pelo país e também no interior da Igreja. O boletim Direito à Informação, a cooperativa Pragma, o Boletim Anti-Colonial eram apenas alguns exemplos do que se fazia
entre diferentes grupos de católicos. Quando, em 1967, Luís Moita chegou a
Lisboa, vindo de Roma, onde concluíra o seu doutoramento, integrou-se num grupo
informal de católicos. “Alguém disse que já havia alguns 42 grupos de
católicos, baptizámos o nosso como o C 43”, conta o actual reitor
universitário. Nesse grupo, estavam, entre padres e leigos, o bispo auxiliar do
patriarcado, D. Manuel Falcão, que no final de 1967 seria “escolhido” por 106
padres da diocese para suceder ao cardeal Cerejeira.
A carta dos 106 contra o cardeal
Cerejeira
Era uma carta a falar claramente da resignação do cardeal
Gonçalves Cerejeira, a acusá-lo implicitamente de não ser isento, em termos
políticos, em relação à ditadura de Salazar e a dizer quem deveria ser o seu
sucessor. Em 1967, 106 padres escreveram ao núncio apostólico (representante do
Vaticano), em Lisboa, propondo-lhe que o novo patriarca de Lisboa fosse o bispo
Manuel Falcão, auxiliar do patriarcado desde finais de 1966. Não seria. E os
106 signatários da carta teriam que esperar mais de seis anos até haver um novo
patriarca – que não seria o desejado, mas D. António Ribeiro, também auxiliar
de Lisboa desde 1969.
A carta, até hoje inédita, foi datada de 25 de Dezembro, dia de
Natal, “de propósito”, conta Abílio Cardoso, antigo reitor do Seminário dos
Olivais. Nela se começava por dar voz ao rumor de que o então patriarca de
Lisboa, cardeal Gonçalves Cerejeira, teria apresentado ao Papa a sua
resignação. E imediatamente se avançava para a proposta sobre o perfil e o nome
de quem deveria ser nomeado como sucessor. Os signatários justificavam a sua interferência
no assunto porque essa atitude significava “maior amor à Igreja” do que se
aceitassem passivamente “um qualquer bispo” que fosse nomeado.
Nesse momento, escrevia-se no documento, a diocese de Lisboa
precisava de redimensionar “toda a pastoral em função de um mundo que tão
rápida e profundamente se transformou”. Para isso, era útil ao patriarcado que
fosse nomeado um bispo que não se notabilizasse “apenas por reconhecida e
elevada cultura” ou por ser o “fiel guarda dos bens materiais adquiridos”. Tão
pouco se deveria nomear um prelado como forma de “recompensa pelos serviços
prestados à Igreja”.
Impunha-se, então, um bispo com o perfil de D. Manuel Falcão (há
poucos dias substituído como titular da diocese de Beja, para onde foi no final
de 1974). Segundo os 106 da carta, Manuel Falcão era um homem com “conhecimento
directo e pessoal do clero”, pois tinha sido professor no Seminário dos
Olivais. Tinha estudado sociologia religiosa – foi o primeiro a dinamizar a
realização de inquéritos sobre a prática do catolicismo –, o que lhe dava “um
precioso instrumento de observação da realidade pastoral”, fazendo dele “um dos
melhores conhecedores do estado” da diocese. E tinha estado na origem das mais
importantes iniciativas do patriarcado dos últimos anos.
Estava reservada para o fim da carta a acusação mais grave, feita
no mesmo tom respeitoso do resto da missiva: “Mais nos convence da oportunidade
da sua escolha a isenção política que tem mostrado [D. Manuel Falcão], num
momento em que muitos cristãos e alguns sectores mais vivos da sociedade
portuguesa se interrogam angustiadamente sobre o compromisso da Igreja com o
actual regime político.”
A informalidade desorientava a
PIDE
Outro grupo de padres foi o CIDAC (Comunidade Inter-Diocesana para
o Diálogo e Acção do Clero), criado em Setembro de 1969, dois meses antes do
encontro do Entroncamento. O grupo, que envolvia alguns dos padres da “Tribuna
Livre”, constituiu-se para participar em assembleias europeias de clero,
realizadas em Coire (Suíça) e Roma (Itália) por essa época.
Uma outra rede, esta alargada a leigos e religiosas, mas
completamente informal, era a dos “Terceiros Sábados”, que se concretizou já no
início da década de 70. A designação veio-lhe do facto de se reunir, aos
terceiros sábados de cada mês, na casa das irmãs Franciscanas Missionárias de
Maria, na zona do Campo Pequeno (Lisboa). Mais do que um grupo, era uma
possibilidade de encontro, à sombra de temas religiosos, para que as pessoas
envolvidas em actividades clandestinas de oposição pudessem trocar informação –
e no qual começou a aparecer uma nova geração de oposicionistas católicos,
ligados por exemplo à JEC e à Capela do Rato.
Na definição do dominicano Bento Domingues, era um espaço “onde
ninguém sabia de ninguém e onde havia sempre mais coisas envolvidas do que cada
um pensava”. Acabou quando a PIDE foi à casa religiosa e proibiu as irmãs de
continuarem a abrir a porta. Os “Terceiros Sábados” ainda reuniram no colégio
das Dominicanas do Restelo, mas acabaram mesmo ao fim de mais três ou quatro
meses.
O carácter “flutuante e informal destas redes desorientava a
PIDE”, verifica Luís Moita. Nenhuma delas conseguiu fazer a revolução, é certo.
Mas todas conseguiram, pelo menos, fazer uma “grande pressão” sobre a
hierarquia católica e ajudar à pressão sobre o regime, como refere António
Correia, outro dos envolvidos na “Tribuna Livre”, então pároco de Palmela.
Se as histórias têm que ter sempre uma moral, pode dizer-se que,
nesta, às propostas de mudança e transformação sobrevieram as frustrações e o
desencanto. E, poucos anos depois do Entroncamento, cerca de um terço dos
padres do patriarcado ordenados no início da década de 60, tinham abandonado o
exercício do ministério. A ruptura, afinal, consumara-se por outras vias.
Um manifesto pela liberdade e
contra o medo
O encontro dos padres da “Tribuna Livre” no Entroncamento,
realizado entre 24 e 26 de Novembro de 1969, produziu um conjunto de
documentação que reuniu cartas ao então patriarca de Lisboa, cardeal Manuel
Gonçalves Cerejeira, tomadas de posição dos bispos, sínteses das reflexões dos
diferentes grupos de trabalho, um comunicado final e várias moções aprovadas
pelos participantes. O resumo dos debates e o comunicado final são um autêntico
manifesto pela liberdade no interior da Igreja e na sociedade e contra o medo
que, de acordo com os participantes, imperava em todos os domínios. Os textos
foram coligidos por António Correia, José Magalhães e Luís Moita, três dos
organizadores da iniciativa. É a partir daí que se resume o essencial da
história.
À escondida do bispo
A primeira carta a convocar para o encontro propunha o tema A “rentabilidade” evangélica do serviço de
padre na Igreja de hoje para ser debatido. Ao mesmo tempo, formulava
algumas “interrogações” sobre o modo como eram exercidas as tarefas dos padres,
as consequências desse modo de agir e as hipóteses de transformação.
Em 10 de Novembro, depois de ter tomado conhecimento da convocação
do encontro, o cardeal Cerejeira decidiu escrever a todos os padres do
patriarcado. Na carta, afirmava o patriarca: “Obrigado pelo peso das minhas
responsabilidades de mestre e pastor vosso, não posso ficar silencioso perante
factos que escandalizam todo o Povo de Deus, contribuindo para a ruína da
Igreja nas almas. (...) Encontro feito à margem do Prelado, sem ele e contra
ele. E ao mesmo tempo à margem do Presbitério [conjunto do clero] (pois este
não existe sem a cabeça, que é o Prelado), e dividindo-o nos membros que o
constituem.
Já falando perante o Conselho Presbiteral, eu tinha advertido o
Clero do Patriarcado da obra dissolvente (que até alguns sacerdotes exemplares
não teriam visto) dessas reuniões de grupos de sacerdotes celebradas à margem,
e até à escondida do Bispo. E acrescento mais: dificultam e comprometem até o
esforço de renovação e edificação da Diocese na fé, na caridade, na confiança,
na comunhão, na paz, na alegria. (...)
Grupos marginais, com acção
nociva
No final da sua assembleia plenária, realizada entre os dias 10 e
12, o episcopado divulgou um comunicado onde também se referia ao assunto, sem
indicar nomes concretos:
“Vem chegando ao conhecimento do episcopado a constituição de
alguns grupos de sacerdotes, com adesão ou não de leigos, que, nas suas
atitudes e escritos, contestam actuações, estruturas e até mesmo aspectos
doutrinais da Igreja, criando um clima de desconfiança, desorientação e
mal-estar no povo de Deus. Sem julgarem as intenções nem esquecerem que se
trata de padres que, pela imposição das mãos, geraram para o sacerdócio, os
bispos olham com apreensão para estes grupos marginais e para a sua acção
nociva para a unidade do presbitério e edificação do povo de Deus e para a
autêntica renovação da Igreja. Reconhecem os bispos a necessidade permanente
desta renovação, e nela se encontram empenhados e procuram empenhar o clero, religiosos
e leigos; mas sabem que ela só é autêntica no quadro da disciplina eclesiástica
e das orientações hierárquicas, de que as determinações conciliares são
expressão actual (...)”
A parábola do pastor e dos moços
No início do encontro, o então pároco de Palmela, António Correia
(que depois abandonou o sacerdócio), deu a conhecer aos participantes uma longa
carta que, dia 20 de Novembro, enviara ao cardeal Cerejeira:
“(...) Talvez não sejam fáceis os meus caminhos (ou os nossos
caminhos, na medida em que não sou só eu a percorrê-los, e neste espírito) e
nem sejam precisamente aqueles [por onde o Senhor Patriarca anda]; é que eu não
posso deixar de dar voltas por carreiros onde sei que andam homens meus irmãos;
sei que procuro no deserto, onde há muita ovelha desgarrada; sei que há por lá
colegas meus, e não sou capaz de pensar, sequer, que seguirei tranquilo a
estrada larga e livre, enquanto eles se afadigam e procuram encontrar os seus
caminhos, que são aqueles de tanta gente. V. Eminência diz na sua carta que
falta pouco tempo para dar contas a Deus; ora, compreende-se que já não tenha
forças para seguir caminhos estreitos, penosos e tortuosos. Quando um rebanho é
grande, tem um pastor e um ou mais moços que o ajudam; o pastor muitas vezes é
de idade, segue estrada direita ou está parado. Quem anda ao largo são os
moços; muitas vezes perdem-se de vista, têm de sair do caminho, por causa de
acudir às ovelhas. Ora, mal seria que o pastor quisesse sempre os moços junto
de si, a fazer o caminho passo a passo.
Às vezes parece-me que é isso que V. Eminência deseja. (...)
Não nos reunimos com espírito de rebeldia. Digo por mim, sofro, e
tantos sofrem, quando, nos momentos em que nos vemos rejeitados ou apontados
como ‘infiéis’ nos chega a indignação e o desânimo; (...)
Se não nos reunimos com espírito de rebeldia, também não vou
explicar por extenso com que espírito o fazemos. Pelo Concílio e pelo direito,
encontraria argumentos, muitos, para dizer onde se fundam as nossas razões. Mas
esses argumentos só seriam para defender ou justificar – e nós vemos que a
razão de reunir, que aquilo que nos impele, que os problemas que sentimos, que
o drama que vivemos e vive a Igreja, são muito anteriores a esses argumentos.
(...)
Não nos reunimos com rebeldia, mas sim no sofrimento, na
obediência; para mim, é muito mais, e qualquer coisa de muito mais imolante do
que a solicitude em satisfazer os desejos do superior, em não contrariar a sua
vontade, em não ter atitudes que o desgostem.
(...) Não nos reunimos em Fátima. O senhor Patriarca sabe que do
Episcopado saiu uma ordem para que as casas religiosas de Fátima não nos
recebessem; (...) e, para testemunhar que não nos reunimos clandestinamente nem
às escondidas do bispo, desde já convido V. Eminência a aparecer, a estar, a participar.
(...)”
“Efectivamente perseguidos,
desprestigiados e eliminados”
O cardeal Cerejeira não aceitou o convite. No encontro do
Entroncamento, os participantes começaram por ouvir vários testemunhos: duas
equipas de padres que viviam em meio rural; um padre que trabalhava como
operário; e um último que falou sobre “problemas fundamentais” do exercício do
seu ministério. Depois de um debate sobre as questões levantadas, chegou-se
inicialmente a um leque de cinco temas para outros tantos grupos de debates: a
evangelização; a liberdade do padre; o serviço aos pobres numa Igreja aliada
dos poderosos; as comunidades cristãs; e os sacramentos.
Sobre o modo de fazer evangelização, o grupo concluiu que ele deve
partir e responder às “necessidades concretas das pessoas” para contrariar a
atitude dominante na Igreja – de “agregar” gente, mais do que procurar a
salvação de homens e mulheres. “O modo cristão de salvar parece ser o melhor
que a humanidade consegue no tempo em que vive”, diziam as conclusões da reflexão.
E, no caso concreto dos clérigos, era preciso um outro estilo de vida. Os
participantes eram muito duros na análise que faziam: “Não parece ser possível
evangelizar nas actuais circunstâncias da vida clerical não comprometida. A
vida clerical é mesmo uma força de contra-evangelização.”
Acerca da liberdade do padre, o debate começou por sintetizar as
violentas críticas ao estilo de ensino dos seminários e à “integração
despersonalizada” dos padres na instituição eclesiástica: menoridade humana,
infantilismo prolongado, imbecilidade mental, eram expressões usadas para
descrever a experiência do padre na Igreja. O grupo sentia a necessidade de
pensar pela “própria cabeça”, queria abrir os “entupidos” canais de diálogo da
Igreja e da sociedade, contrariar o “monolitismo do sistema” e conquistar a
liberdade de expressão e os direitos de reunião e associação. Ao mesmo tempo,
apontava o trabalho profissional como forma de conquistar a autonomia
económica. Finalmente, contra a “moral sexual escravizante”, o grupo afirmava
que cada um deveria ser livre de optar pelo celibato ou pelo casamento.
Sobre o serviço aos pobres numa Igreja aliada dos poderosos, o
debate começou por verificar que a Igreja, como instituição, se manifestava e
actuava, em Portugal, “em clima de aliança” com os que detinham “a autoridade
civil e a força do dinheiro”. E os que recusavam esta lógica eram
“efectivamente perseguidos, desprestigiados e eliminados” pelos detentores da
autoridade. Neste panorama, era urgente a Igreja mudar o estilo de vida e a
linguagem, pôr termo “ao conluio existente entre autoridades eclesiásticas e
políticas”, denunciar as riquezas e defender os mais desprotegidos.
Acerca das comunidades cristãs e dos sacramentos, o debate
sublinhou a importância do “pluralismo” contra o perigo do “clericalismo”,
verificou que muitas pessoas apenas pediam os sacramentos movidas por “pressões
político-sociais”, contestava as celebrações religiosas em instituições e
iniciativas do Estado e resumia que “impera o medo”, de Deus e da sociedade.
Os sacramentos, acrescentava o documento de síntese, apareciam
como “causa e consequência de consciências alienadas” e como “sinais de medo”.
O grupo denunciava ainda o regime concordatário do casamento (que nessa altura
proibia o divórcio aos casados pela Igreja) e comprometia-se a deixar de
receber o pagamento de taxas e emolumentos cobrados pela celebração de missas e
sacramentos.
No comunicado final, que sintetizava a reflexão feita, bem como as
propostas e compromissos assumidos, acrescentava-se ainda a decisão de acolher
os padres “que se casaram ou vierem a casar”. O grupo reclamava para esses
casos a “integração no ministério pastoral em pé de equivalência com os que
permanecem celibatários” e rejeitando “radicalmente o princípio da distinção no
sacerdócio, baseada no facto de estarem os sacerdotes casados ou permanecerem
celibatários”.
Próximo texto, dia 23
Os 150 missionários de Moçambique que a PIDE queria expulsar
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