quinta-feira, 17 de abril de 2014

Pessah: Para o ano que vem, em Jerusalém


É uma celebração que oscila entre a refeição ritual e a leitura e memória do relato da saída do regime de escravatura do Egipto. Como escreve G. Haddad na sua obra Comer o Livro: “A absorção dos elementos rituais intercala-se como uma pontuação na leitura de um livro específico desta festa: a Agadá. Agadá significa conto, mito, história, récita, comentário da epopeia da saída do Egipto”, passando de um regime de escravidão para a liberdade.
A Pessah (Páscoa) é celebrada anualmente pelos judeus, desde há cerca de 3400 anos, entre 15 e 22 do mês de Nissan (15 a 22 de Abril).
Durante estes dias, o alimento simbólico por excelência é a matsa (pão ázimo) que substitui o pão, em memória da fuga precipitada dos escravos hebreus, que não tiveram tempo de deixar levedar o pão. Ao longo destes oito dias, é interdito comer alimentos que fermentem, como o milho, o trigo, o centeio ou o malte...
Um dos elementos centrais da festa é o seder (ordem), cerimónia familiar em que se conta, segundo uma determinada ordem, a história da saída do Egipto e se comem os alimentos simbólicos; além da matsa (pão ázimo), maror (ervas amargas), simbolizando a amargura da escravidão, karpass (vegetais), água salgada ou vinagre, representando as lágrimas dos escravos hebreus, e harosset, pasta de figos e nozes simbolizando a argamassa com que se construíam as pirâmides.

A importância e a dimensão ritual desta celebração podem ser avaliadas por uma oração de alguns judeus que, em 1944, no campo de concentração de Bergen-Belsen, foram obrigados a comer hametz, proibido para consumo durante a Páscoa judaica:
“Meu Deus, olha e vê. É evidente e sabido por Ti que nós desejamos cumprir a tua vontade e celebrar Pessah, abstendo-nos de todo o hametz . Mas o nosso coração está quebrado, pois a escravatura em que estamos impede-nos e a nossa vida está em perigo. Vê, no entanto: comendo este hametz, nós preparamo-nos para cumprir o teu mandamento: ‘Pelas minhas leis vós vivereis e por elas não morrereis’. Assim para Ti dirigimos esta prece: mantém-nos em vida, salva-nos depressa para que possamos cumprir todos os Teus mandamentos, fiéis à Tua vontade e servindo-Te com o coração puro. Amen.”
Durante a refeição de seder, a leitura é feita pelo chefe de família ou por várias pessoas presentes na celebração. Por vezes, é necessário fazê-lo em diversas línguas, devido à presença de estrangeiros que são também convidados a participar na cerimónia festiva.
Em Portugal, e na época da perseguição aos judeus durante a Inquisição, os marranos celebravam a Páscoa judaica clandestinamente, não no próprio dia para não levantar suspeitas, mas um dia ou dois mais tarde, nomeadamente comendo pão não levedado.
No final da refeição comemorativa, os presentes reafirmam a esperança messiânica milenária: “Para o ano que vem em Jerusalém!”

Esta mesa não é uma mesa, mas uma mágica embarcação


Sobre o sentido desta celebração/refeição, o escritor brasileiro Moacyr Scliar (1937-2011) escreveu um texto que fala da mesa à volta da qual os crentes se reúnem e do sentido que essa refeição pode adquirir para os tempos de hoje. Uma memória de dores e lutas, de libertação e redenção:

Esta mesa não é uma mesa; é mágica embarcação com a qual navegamos pelas brumas do passado, em busca das memórias de nosso povo. (...) Este é o pão da pobreza que comeram os nossos antepassados na terra do Egito. Quem tiver fome – e muitos são os que têm fome, neste mundo em que vivemos – que venha e coma. Quem estiver necessitado – e muitos são os que amargam necessidades, neste mundo em que vivemos – que venha e celebre conosco o Pessach.
É o legado ético de nosso povo, a mensagem contida neste simples alimento, neste pão ázimo que o sustentou no deserto, e que o vem sustentando ao longo das gerações. É preciso ser justo e solidário, é preciso amparar o fraco e ajudar o desvalido.
O deserto que hoje temos de atravessar não é uma extensão de areia estéril, calcinada pelo sol implacável. É o deserto da desconfiança, da hostilidade, da alienação de seres humanos. Para esta travessia temos de nos munir das reservas morais que o judaísmo acumulou, das poucas e simples verdades que constituem a sabedoria do povo. Ama teu próximo como a ti mesmo. Reparte com ele teu pão. Convida-o para tua mesa. Ajuda-o a atravessar o deserto de sua existência. (...)
Os Faraós modernos já não constroem pirâmides, mas sim estruturas de poder e impérios financeiros. Os Faraós modernos já não usam apenas a látego; submetem corações e mentes mediante técnicas sofisticadas.

(O texto integral pode ser lido aqui, de onde foram também reproduzidas as ilustrações; informações sobre Moacyr Scliar podem ser encontradas no sítio do escritor na internet; o texto foi redigido a partir de elementos cedidos por Esther Mucznik) 

O vídeo a seguir reproduz a peça Longe de mi tu estaras, tocada por Jordi Savall e o Hespèrion XXI no disco Diáspora Sefardi

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