quinta-feira, 24 de abril de 2014

Os católicos na luta contra a ditadura (12) – Os 150 missionários que a PIDE queria expulsar

25 de Abril, 40 anos


Capa do Diário de Notícias de 28 de Março de 1974, 
com a notícia do comunicado dos bispos moçambicanos 
a demarcar-se dos Missionários Combonianos e do bispo de Nampula

Um relatório da PIDE elaborado 10 meses antes do 25 de Abril propunha que se prescindisse do trabalho missionário de vários institutos religiosos. Feitas as contas, a decisão levaria à expulsão de 155 padres. As autoridades não seguiram a sugestão mas, em Fevereiro de 1974, o regime acabou por mandar embora de Moçambique mais 11 missionários e um bispo. Por causa de um “imperativo de consciência”. 
(Texto publicado no Público de 23 de Abril de 1999; apenas foram actualizadas as referências temporais)

A situação político-religiosa de Moçambique em Junho de 1973, dez meses antes do 25 de Abril de 1974, era considerada pela PIDE/DGS como “causando graves apreensões” nas áreas das dioceses da Beira e de Tete. Num relatório pormenorizado sobre a presença da Igreja Católica naquele Estado “e suas implicações com a segurança”, a PIDE concluía que a situação ficaria melhor “se fosse possível prescindir dos Institutos de Burgos, Capuchinhos de Trento, Combonianos, Sagrado Coração de Jesus e Padres dos Sagrados Corações”.
Ao propor esta medida, o relatório da polícia política do Estado Novo estava a sugerir a expulsão de 155 missionários que trabalhavam em todo o território moçambicano. Nessa altura, o número total de padres a trabalhar em Moçambique (entre autóctones e estrangeiros) era de uns 550. O que, a concretizar-se a ideia expressa no relatório dirigido ao governador de Moçambique, significava expulsar mais de um quarto dos membros do clero católico. Isto, já depois de terem sido expulsos do território, entre 1971 e 1972, vários membros dos Padres Brancos, dos Padres de Burgos e dos Missionários Combonianos.
Na alínea c) do relatório, já citada, o director da delegação da PIDE em Moçambique acrescenta que, se se prescindisse dos missionários referidos, “beneficiariam as dioceses afectadas e as que se prevê virem a sê-lo”. E, se isso não se concretizasse, “a subversão violenta” iria estender-se “a novas áreas ainda não afectadas”, tudo levando a crer que surgiriam “implicações mais graves com a segurança”.
A informação nº 86/73/DI/2/SC-G.G., com 31 páginas dactilografadas, traça um panorama completíssimo do que era a posição dos missionários em relação ao estatuto da então colónia portuguesa, dos casos considerados mais perigosos para a segurança do Estado, das opiniões dos respectivos bispos e das missões que ofereciam preocupações às autoridades do Estado Novo.

Pides a fazer teologia

O relatório começava por se referir ao “estado da questão”, com um “vasto campo de análise em que factores de ordem religiosa, social e política se entrechocam, tornando o tema melindroso e difícil”. E entrava depois por conceitos teológicos: “Tendo em conta que o conceito de Igreja envolve não só a hierarquia mas também todos os católicos (binómio Igreja/Corpo Místico), a principal limitação que nos surge é a impossibilidade de seguirmos atentamente o comportamento político-religioso dos leigos. Alguns destes tentavam “a escalada de pastorais ultra-modernas à luz da actual doutrina social”. Mas, como não eram muitos, “os seus voos são perfeitamente controlados ou controláveis” pelos bispos.

Vivia-se, entretanto, um contexto teológico desfavorável. “Já antes” do Concílio Vaticano II (que se realizara entre 1962 e 65) havia teólogos de várias zonas do mundo a enveredar “por uma hermenêutica, tipo racionalista, tentando descobrir e desenvolver uma temática evangélica” que até aí tinha sido “inaceitável”. Os temas que vinham “sendo abordados nas altas esferas teológicas” eram, cada vez mais, analisados “por prismas revolucionários”, sendo fácil ouvir falar em “teologia e/da revolução”, “evangelho e libertação”, “profecias e política”, “política do Antigo Testamento” e “função política do culto”.
Havia mesmo, supremo insulto, quem distinguisse no julgamento de Jesus Cristo um julgamento religioso e “outro político (por subversão relativamente ao poder constituído – domínio romano)”. E havia exegetas que viam Jesus como “um revolucionário”, cuja conduta tinha sido “estritamente política e o evangelho um anúncio de libertação do domínio de poderes temporais”. A análise teológica do relatório da PIDE terminava afirmando que todas essas tendências difundidas no Terceiro Mundo serviam “cabalmente os interesses dos países comunistas”.

Os padres “aburguesados”

O relatório entrava depois a analisar minuciosamente cada um dos institutos religiosos masculinos presentes em Moçambique. Listava um conjunto de 16 congregações masculinas: Padres Monfortinos, Missionários da Consolata, Padres Franciscanos, Missionários Combonianos, Instituto de São Francisco Xavier de Burgos, Padres do Coração de Jesus (Dehonianos), Jesuítas, Capuchinhos, Capuchinhos de Bari, Padres dos Sagrados Corações, Sacramentinos, Sociedade Missionária Portuguesa, Congregação da Missão, Ordem Hospitaleira de São João de Deus, Salesianos e Dominicanos (que acabavam de chegar ao território).
Os mais perigosos eram aqueles que o relatório mencionava como sendo necessário prescindir dos seus serviços. Mas havia outros que, sem estarem na lista mínima, também eram causa de problemas: os monfortinos seriam partidários da autodeterminação de Moçambique; alguns da Consolata já se tinham revelado “contestários exacerbados”, mas os seus superiores aconselhavam os padres a não se intrometerem “na orientação sócio-política”; os Capuchinhos de Bari desenvolviam trabalho social com o objectivo de “realçar a indiferença” das autoridades oficiais em relação aos seus problemas. Já os jesuítas, na sua maior parte, não seguiam a “eventual atitude refractária e hostil atribuída” ao seu superior-geral, padre Pedro Arrupe.
Dos 33 institutos femininos a trabalhar em Moçambique, com um total de 1224 religiosas (das quais 270 estrangeiras) não havia muito a recear. À excepção de duas freiras – a italiana Maria de Carli e a espanhola Divina Vasquez Rodriguez –, não se conheciam “atitudes ou actividades” de religiosas que implicassem com a segurança, mas o relatório salientava o facto de algumas delas já estarem a aprender com os padres e irem para Moçambique “com graus académicos”.
Entre os padres diocesanos, não vinculados a nenhum instituto religioso, havia apenas alguns casos isolados que eram objecto de preocupação, entre os quais Joaquim Teles de Sampaio, um dos primeiros a denunciar massacres cometidos pelas tropas portuguesas, e João Baptista da Mata, que fazia, na Sé de Lourenço Marques (actual Maputo), “homilias impregnadas de maoísmo e utopia”. Os restantes, de um modo geral, não criavam complicações. “Estão de certo modo ‘aburguesados’, não tendo problemas de ordem financeira e não se mostrando interessados em entrar em atrito com a política governamental”.
O mesmo epípeto era dado ao então bispo de Quelimane. D. Francisco Nunes Teixeira (1910-1999): “É de tipo moderado, conservador, talvez mesmo ‘aburguesado’”, um bispo que aconselhava os seus padres a manifestarem “espírito cristão, moderação e prudência” nos contactos com as autoridades, “a fim de se evitarem atritos prejudiciais”.
Esta tese tem uma relativa confirmação do próprio. No seu livro “A Igreja em Moçambique na Hora da Independência (1955-1975)”, publicado em 1995 (ed. Gráfica de Coimbra), Francisco Nunes Teixeira admitia que o método preferido pela maior parte dos bispos moçambicanos era o diálogo directo com as autoridades.

Vieira Pinto fugia “à vulgaridade”



D. Manuel Vieira Pinto (foto reproduzida daqui)

Os membros do episcopado também eram objecto da lupa e da vigilância da PIDE. O arcebispo de Lourenço Marques, Custódio Alvim Pereira, era “da linha conservadora”; o bispo de João Belo (actual Xai-Xai), Félix Niza Ribeiro, mantinha boas relações com as autoridades civis, mas tinha ido depor a favor dos padres de Macuti, que tinham denunciado massacres; Ernesto Gonçalves da Costa, de Inhambane (que seria depois bispo da Beira, entre 1974 e 1977, e bispo do Algarve entre 1977 e 1988), era “tradicionalista e muito equilibrado”, mas também tinha deposto no julgamento dos padres de Macuti; Augusto César da Silva, de Tete (e que viria a ser bispo de Portalegre entre 1978 e 2004), “pode considerar-se muito bom” e um dos que mantinha o “equilíbrio, exigido nas relações com os poderes temporais”; José dos Santos Garcia, de Porto Amélia (actual Pemba), seguia a “linha conservadora” da Igreja e não escondia “o seu acérrimo e irredutível portuguesismo”; e Luís Gonzaga da Silva (que vinha dos jesuítas e era bispo de Vila Cabral, actual Lichinga) era “o que melhor” se identificava “com o sistema político vigente”.
Aquele que merecia mais acusações no relatório da PIDE era Manuel Vieira Pinto (bispo de Nampula entre 1967 e 2000). A sua “personalidade e mentalidade” fugiam “à vulgaridade dos seus colegas do episcopado” e a sua actuação “em desfavor da sã ortodoxia católica por apadrinhamento de contestatários e seus grupos tem ultrapassado todas as barreiras do decoro episcopal”. Mais grave ainda, Vieira Pinto fazia “tábua rasa do respeito hierárquico devido, pelo menos,” ao arcebispo de Lourenço Marques. E do “acinte” que mostrava “contra a política ultramarina portuguesa nem é bom falar”.
Poucos meses depois deste relatório, em Fevereiro de 1974, foi publicado o documento “Imperativo de Consciência”. O texto era assinado por D. Manuel Vieira Pinto e todos os combonianos presentes em Moçambique (34 padres, 19 irmãos leigos e 41 irmãs – afinal, o relatório enganara-se, sobre as freiras). E, no documento, os signatários insurgiam-se contra a política colonial, contra a continuação da guerra e contra o silêncio da Igreja Católica em Moçambique. A polémica voltou a estalar, e o Governo deu ordem de expulsão a 11 missionários combonianos (nove italianos e dois portugueses) e ao bispo de Nampula, que chegou a Lisboa nas vésperas do 25 de Abril. Entre 1974 e 1977, vários bispos moçambicanos pediram para sair das suas dioceses. Vieira Pinto voltou para Nampula.

As divisões e os massacres

O (então) bispo de Tete, D. Augusto César, foi um dos prelados moçambicanos que, em 28 de Fevereiro de 1974, enviou ao cardeal Jean Villot, então secretário de Estado do Vaticano, uma carta manifestando-se contra a actuação do seu colega de Nampula, Manuel Vieira Pinto, por causa da elaboração do texto “Imperativo de Consciência” – onde se condenava a guerra colonial e a atitude silenciosa dos bispos.
Havia “no referido documento graves acusações dirigidas à Igreja e à hierarquia de Moçambique”, em “ressonância clara da propaganda que a imprensa, mesmo católica” fazia à posição do episcopado moçambicano. Essas acusações, eram “injustas e falsas”, escreviam os bispos, que se manifestavam profundamente magoados e ofendidos com “as decisões tomadas por um bispo com um instituto missionário” – os Missionários Combonianos – à margem dos restantes membros” da Conferência Episcopal. “Esta atitude, em vez de contribuir para a unidade, só poderá provocar a divisão e a confusão, tornando o nosso trabalho cada vez mais difícil. Porém, se a linha a seguir é a que vem no documento e se nós estamos a ser infiéis ao nosso ministério episcopal, como se insinua, (...) estamos dispostos conjuntamente a deixar as nossas dioceses e a entregá-las.”
A carta revelava as divisões que progressivamente se vinham a acentuar no interior do episcopado moçambicano. O primeiro bispo da Beira, Sebastião Soares de Resende, tinha sido o primeiro a contestar a política colonial e a falar da autodeterminação dos moçambicanos, nas décadas de 50 e 60. Soares de Resende, que morreu em meados da década de 60,  tomava posições públicas e não se coibia de divulgar o que pensava. Depois, com a chegada de Vieira Pinto, em 1967, essa linha continuou assegurada com o novo bispo de Nampula. Mas a maioria dos seus pares considerava que deveria agir discretamente, falando ou escrevendo à autoridades.
Em 1971 vários padres denunciaram massacres cometidos pelo Exército português. Em consequência disso, o regime expulsou elementos do Instituto de São Francisco Xavier de Burgos, dos Padres Brancos e dos Missionários Combonianos. Luís Afonso da Costa, um dos combonianos que trabalhava na altura em Marara (diocese de Tete) foi um dos primeiros a denunciar o que estava a acontecer. Entre 4 de Maio de 1971 e 30 de Março de 1972, o padre Luís Afonso – que entretanto abandonou os combonianos e foi residir para Itália – contabilizou 83 pessoas mortas pela tropa portuguesa, 21 das quais em Mucumbura, em 4 de Novembro de 1971. “Os comandos queimaram vivas 16 pessoas na povoação do António (Mucumbura). (...) Junto à loja do senhor Gabriel havia os cadáveres queimados de mais cinco pessoas, impossíveis de reconhecer”, entre os quais uma criança, lê-se no documento “Mais um ano de agonia... sem esperança de ressurreição”, escrito pelo então padre Costa em Maio de 1972.
“Em reunião do conselho de pastoral, ficou decidido que eu iria levar ao conhecimento de toda a gente – missionários, leigos – o que se passava em Moçambique. Estive em Quelimane, Nampula e outros sítios”, contou ontem ao PÚBLICO Luís Afonso da Costa, a partir de Itália. “Pedi à Conferência Episcopal uma declaração, disseram-me que iam ver a documentação e falar com o governador.”
Essas eram as duas linhas que subsistiam: “Devido aos privilégios que a Igreja tinha, muitos preferiam manter o ‘status quo’, os missionários queriam que a Igreja não estivesse ao lado do Governo português”, analisa Luís Afonso da Costa.
O mesmo conflito esteve presente nas outras antigas colónias. Fernando Santos Neves, que foi padre dos Missionários do Espírito Santo e é hoje reitor da Universidade Lusófona, em Lisboa, foi mandado para Angola pelo então superior-geral da congregação, Marcel Lefèbvre – o bispo que, nos anos 80, se rebelaria contra o Vaticano, com o seu catolicismo integrista. Santos Neves organizou, em Lisboa e em Angola, semanas missiológicas, criou um instituto teológico em Angola e, aqui, a PIDE não o deixou sossegado. Santos Neves foi exilado para Paris e, no início de 1974, escreveu e publicou “Negritude e Revolução em Angola”. “É evidência histórica (...) que todas as ‘religiões’ e ‘igrejas estabelecidas’ fizeram sempre o jogo das (des)ordens ‘estabelecidas’ e foram portanto, sempre ‘contra-revolucionárias’”. A mudança só poderia ser feita, escrevia Santos Neves, com uma presença da Igreja que se traduza na liberdade, no serviço e na pobreza.

Próximo texto, dia 29
A falta de lucidez da Igreja Católica em relação à guerra colonial

O anterior texto desta série pode ser lido aqui.

O texto anterior do blogue pode ser lido aqui



1 comentário:

Anónimo disse...

Muito bom Antônio. Abraço, Zé F.