25
de Abril, 40 anos
–
um testemunho de Luiza Sarsfield Cabral
(Texto
lido no Convento dos Dominicanos, na iniciativa do Movimento Não Apaguem a Memória e
do Instituto S. Tomás de Aquino,
a 22 de Fevereiro de 2014; as indicações entre [parêntesis recto] são elementos
de informação acrescentados posteriormente)
Colectânea dos números 1 a 9 do Boletim Anti-Colonial,
publicada já depois do 25 de Abril de 1974
Pediram-me um testemunho sobre a minha intervenção
política antes do 25 de Abril... Digo quase sempre que sim a este tipo de
solicitações, pois acho importante que não se “apague a memória”... Aceitei o
convite também porque o interpretei como uma espécie de homenagem à Natália e
ao Nuno Teotónio Pereira.
A
minha actividade, nessa época, foi semelhante à de muita gente. No Porto, trabalhei na Mojaf,
pertenci à Cooperativa Confronto, depois vim para Lisboa, para a Faculdade de
Letras, onde participei nas greves universitárias.
Conheci,
então, a Natália e o Nuno Teotónio Pereira, que foram absolutamente
determinantes numa maior responsabilização cívica e política de um grande
número de pessoas, entre as quais me incluo. Desde então, fiquei sempre ligada
ao grupo a que chamam “católicos progressistas”, embora ninguém, que eu saiba,
se designe a si próprio desta maneira.
Entrei
em contacto com o Direito à Informação,
o Gedoc, a [Cooperativa] Pragma, fui
várias vezes a Madrid com a Natália e o Nuno para reuniões com o grupo dos Cuadernos para El Dialogo, participei em
muitos “terceiros sábados” – uma iniciativa, também da Natália e do Nuno: eram
celebrações da eucaristia, que sendo autênticas, serviam de cobertura à troca
de informação clandestina.
Das
várias actividades, lembro um fim-de-semana em Marvão, na casa do Nuno, em
que um grupo de amigos (entre eles o frei Bento Domingues) se encontra num
fictício piquenique à beira-rio, enquanto que a minha irmã Teresa e eu
acompanhávamos dois amigos até à fronteira, onde “deram o salto” para Espanha para
assim fugirem à guerra colonial. Depois, descemos até ao rio e regressámos a
nado para junto das pessoas.
Era
esta uma ajuda organizada que o casal Teotónio Pereira dava frequentemente.
Acerca do BAC (Boletim
Anti-Colonial)
Moro num andar que tem duas portas
de acesso, uma dá para a casa e outra para um anexo praticamente
independente. Em 1972, instalou-se aí o arquivo do BAC.
Lá trabalhavam o Nuno, o Luís
Moita, o Manuel Brandão Alves (que viria a ser preso na Escola Naval da
Marinha), o padre jesuíta José Sousa Monteiro e eu. Era sobretudo um
trabalho de arquivo; havia muita documentação sobre África e a guerra
colonial. Por questões de segurança, não sabia quem elaborava o boletim,
nem quem o distribuía. Havia uma história combinada com o Nuno, em como
alugava essa parte da casa a um agente técnico. Inventaram-se os
pormenores do contracto e eu vendia essa história à família e amigos, que nunca
desconfiaram de nada. Claro que a situação obrigava a cuidados. Nessa altura,
não podia aceitar convites de certo risco, pelo que volta e meia era
criticada, diziam-me que me estava a “aburguesar”. Por exemplo, não fui à
vigília da capela do Rato para não pôr em perigo aquilo que tinha em casa.
Até que, a 26 de Novembro de 1973,
estava a preparar uma aula, batem à porta. Não sabia das prisões do Nuno e do
Luís. Fui abrir, vi que a porta para o anexo estava já aberta, percebi
logo…Eram três ou quatro agentes, começaram por entrar para o arquivo. Estavam
exuberantes com o que encontravam, “olhem para isto!, diziam alto, atiravam
tudo pelo ar, as fotografias de Wiriyamu [massacre cometido pelas tropas
portuguesas, em Dezembro de 1972, no norte de Moçambique] voavam... e eu fingia
que não tinha nada a ver com aquilo e repetia a história combinada.
Levaram-me para Caxias.
Logo nessa noite, tive o primeiro
interrogatório, comprido. Era uma sala grande com muitos polícias, numa
berraria. Eu sempre a repetir a mesma história. Fulos, acabaram por ir buscar
um cassetete, mas não me bateram. Até que, por fim, mostram-me a fotografia do
Nuno, ainda molhada. Foi a evidência: percebi que estava preso.
Mandaram-me para a cela dormir e,
no dia seguinte, depois do jantar, deram-me um Valium, que estupidamente
aceitei, toda contente. Quando estava no sono mais profundo, acordam-me e
levam-me para o reduto sul.
Aí fiquei durante quatro dias e
quatro noites em tortura do sono, com interrogatórios violentos: dava-se aquela
cena do polícia mau que grita e ameaça e depois, vem o polícia “bom”, que diz,
amavelmente: “confesse, confesse, se confessar, amanhã pode estar em casa
sossegada”.
Mas havia pouco a dizer, eles
tinham apanhado tudo, perguntavam coisas estranhíssimas, queriam saber de
pessoas que não tinham nada a ver com aquilo, foram buscar nomes à minha agenda
e também perguntavam por uma mala e por explosivos, perguntas, para mim, tão
estranhas como tudo o resto. Pelo meio, houve o feriado de 1 de Dezembro, em que
estive praticamente sem interrogatórios (os polícias gozaram o feriado), mas
continuei sempre sentada na mesma cadeira.
Até que, no último dia de tortura,
começaram a implicar com um gravador que eu tinha para as aulas, havia lá
qualquer coisa em alemão, eles não percebiam as minhas explicações, uma
confusão e lembro-me de dizer ao agente: “Eu já lhe disse… lá em baixo…”.
Ora, eu não tinha saído da mesma
sala, mas parecia-me que sim, ainda hoje penso nos interrogatórios como se
fossem em salas diferentes. O agente percebeu que eu começava a ter alucinações
e mandou-me dormir.
Quero aqui destacar que a
ignorância propositada, metódica, sobre acções e envolvimentos das outras
pessoas do grupo foi muito importante para mim: ajudou a manter uma certa calma
e, sobretudo, não podia dizer mesmo nada, estava ignorante.
A grande angústia em relação aos
interrogatórios era o pânico de implicar alguém com as respostas que ocorriam.
Foi esta a tortura pior, para mim. Tudo era engendrado para dar insegurança. Ao
fugir de uma provocação, corria-se o risco de entrar por um caminho que
não se queria. E sem contacto com o exterior, não se podia verificar nada,
começava-se a imaginar novos enredos, a ter escrúpulos horríveis de se ter
prejudicado este ou aquele, sem controle de nada. Até o híper aquecimento da
sala era planeado para provocar alucinações mais rapidamente. Era o princípio
da incerteza absoluta. Cá fora, não se pode imaginar o que isso é de
tortura psicológica.
Depois, fiquei um mês em regime de
isolamento, com alguns interrogatórios pelo meio. Não tinha literalmente nada
para me distrair, nem livro, papel ou lápis. No Natal, pedi uma Bíblia, mas não
me deram.
Depois do Natal, comecei a ter
visitas da família e, no princípio de Janeiro, levaram-me para uma cela com
mais três raparigas: a Fátima Pereira Bastos, a Conceição Moita e a Maria José
Campos. Já conhecia a Fátima e a Xexão, foi uma alegria, conversámos até às
tantas da noite, não ligando aos ralhos da guarda prisional.
Aí fiquei mais um mês e meio. As
três pertenciam a grupos de luta armada e tinham sido barbaramente torturadas.
Demo-nos muito bem, apesar das diferenças: eu era a da “papelichada”, ou seja,
sem grande categoria. Não percebia nada sobre luta armada.
Saí sob caução, à espera de
julgamento. Francisco Sousa Tavares, de quem era amiga, ofereceu-se para ser
meu advogado.
Quando saí da cadeia, fui para
casa do meu irmão Francisco. Lembro-me de que a primeira coisa que fiz foi
visitar a mãe da Xexão. E não sei bem que mais andei a fazer, que a Pide começou
a mandar-me recados: que tivesse cuidado, que andava a falar demais… Quer
dizer, estava a ser seguida… Era o prolongamento da prisão, cá fora.
Voltei à Escola. Do Ministério,
veio um despacho: era considerada “pedagogicamente inconveniente” para dar aulas.
Soube, mais tarde, que se previa o meu afastamento e não seria colocada
no ano seguinte.
Felizmente, deu-se o 25 de Abril.
Notas
1.
Acerca do que se passou na Escola depois do 25 de Abril: na pouco sensata
euforia de saneamentos que grassava, a Directora foi saneada. Senti o dever de
a defender.
2.
Em pleno gonçalvismo, cruzei-me no Terreiro do Paço com uma guarda prisional.
Reconheci a sua cara, não conseguia lembrar-me donde… Dirigi-me a ela e saudei-a…
Só então me dei conta de quem ela era, de onde a conhecia…
3.
Digo sempre que não me custa falar sobre Caxias, mas o facto é que estas coisas
ficam e, afinal, não me foi assim tão fácil falar…
(Nota: os depoimentos desta série e os testemunhos da tertúlia referida serão em breve publicados na revista Cadernos do ISTA)
Próximo texto, dia 14 de Abril:
Os católicos que “salvaram” a Igreja – Histórias do catolicismo militante
25
de Abril, 40 anos
–
um testemunho de Luiza Sarsfield Cabral
(Texto
lido no Convento dos Dominicanos, na iniciativa do Movimento Não Apaguem a Memória e
do Instituto S. Tomás de Aquino,
a 22 de Fevereiro de 2014; as indicações entre [parêntesis recto] são elementos
de informação acrescentados posteriormente)
Colectânea dos números 1 a 9 do Boletim Anti-Colonial,
publicada já depois do 25 de Abril de 1974
Pediram-me um testemunho sobre a minha intervenção
política antes do 25 de Abril... Digo quase sempre que sim a este tipo de
solicitações, pois acho importante que não se “apague a memória”... Aceitei o
convite também porque o interpretei como uma espécie de homenagem à Natália e
ao Nuno Teotónio Pereira.
A
minha actividade, nessa época, foi semelhante à de muita gente. No Porto, trabalhei na Mojaf,
pertenci à Cooperativa Confronto, depois vim para Lisboa, para a Faculdade de
Letras, onde participei nas greves universitárias.
Conheci,
então, a Natália e o Nuno Teotónio Pereira, que foram absolutamente
determinantes numa maior responsabilização cívica e política de um grande
número de pessoas, entre as quais me incluo. Desde então, fiquei sempre ligada
ao grupo a que chamam “católicos progressistas”, embora ninguém, que eu saiba,
se designe a si próprio desta maneira.
Entrei
em contacto com o Direito à Informação,
o Gedoc, a [Cooperativa] Pragma, fui
várias vezes a Madrid com a Natália e o Nuno para reuniões com o grupo dos Cuadernos para El Dialogo, participei em
muitos “terceiros sábados” – uma iniciativa, também da Natália e do Nuno: eram
celebrações da eucaristia, que sendo autênticas, serviam de cobertura à troca
de informação clandestina.
Das
várias actividades, lembro um fim-de-semana em Marvão, na casa do Nuno, em
que um grupo de amigos (entre eles o frei Bento Domingues) se encontra num
fictício piquenique à beira-rio, enquanto que a minha irmã Teresa e eu
acompanhávamos dois amigos até à fronteira, onde “deram o salto” para Espanha para
assim fugirem à guerra colonial. Depois, descemos até ao rio e regressámos a
nado para junto das pessoas.
Era
esta uma ajuda organizada que o casal Teotónio Pereira dava frequentemente.
Acerca do BAC (Boletim
Anti-Colonial)
Moro num andar que tem duas portas
de acesso, uma dá para a casa e outra para um anexo praticamente
independente. Em 1972, instalou-se aí o arquivo do BAC.
Lá trabalhavam o Nuno, o Luís
Moita, o Manuel Brandão Alves (que viria a ser preso na Escola Naval da
Marinha), o padre jesuíta José Sousa Monteiro e eu. Era sobretudo um
trabalho de arquivo; havia muita documentação sobre África e a guerra
colonial. Por questões de segurança, não sabia quem elaborava o boletim,
nem quem o distribuía. Havia uma história combinada com o Nuno, em como
alugava essa parte da casa a um agente técnico. Inventaram-se os
pormenores do contracto e eu vendia essa história à família e amigos, que nunca
desconfiaram de nada. Claro que a situação obrigava a cuidados. Nessa altura,
não podia aceitar convites de certo risco, pelo que volta e meia era
criticada, diziam-me que me estava a “aburguesar”. Por exemplo, não fui à
vigília da capela do Rato para não pôr em perigo aquilo que tinha em casa.
Até que, a 26 de Novembro de 1973,
estava a preparar uma aula, batem à porta. Não sabia das prisões do Nuno e do
Luís. Fui abrir, vi que a porta para o anexo estava já aberta, percebi
logo…Eram três ou quatro agentes, começaram por entrar para o arquivo. Estavam
exuberantes com o que encontravam, “olhem para isto!, diziam alto, atiravam
tudo pelo ar, as fotografias de Wiriyamu [massacre cometido pelas tropas
portuguesas, em Dezembro de 1972, no norte de Moçambique] voavam... e eu fingia
que não tinha nada a ver com aquilo e repetia a história combinada.
Levaram-me para Caxias.
Logo nessa noite, tive o primeiro
interrogatório, comprido. Era uma sala grande com muitos polícias, numa
berraria. Eu sempre a repetir a mesma história. Fulos, acabaram por ir buscar
um cassetete, mas não me bateram. Até que, por fim, mostram-me a fotografia do
Nuno, ainda molhada. Foi a evidência: percebi que estava preso.
Mandaram-me para a cela dormir e,
no dia seguinte, depois do jantar, deram-me um Valium, que estupidamente
aceitei, toda contente. Quando estava no sono mais profundo, acordam-me e
levam-me para o reduto sul.
Aí fiquei durante quatro dias e
quatro noites em tortura do sono, com interrogatórios violentos: dava-se aquela
cena do polícia mau que grita e ameaça e depois, vem o polícia “bom”, que diz,
amavelmente: “confesse, confesse, se confessar, amanhã pode estar em casa
sossegada”.
Mas havia pouco a dizer, eles
tinham apanhado tudo, perguntavam coisas estranhíssimas, queriam saber de
pessoas que não tinham nada a ver com aquilo, foram buscar nomes à minha agenda
e também perguntavam por uma mala e por explosivos, perguntas, para mim, tão
estranhas como tudo o resto. Pelo meio, houve o feriado de 1 de Dezembro, em que
estive praticamente sem interrogatórios (os polícias gozaram o feriado), mas
continuei sempre sentada na mesma cadeira.
Até que, no último dia de tortura,
começaram a implicar com um gravador que eu tinha para as aulas, havia lá
qualquer coisa em alemão, eles não percebiam as minhas explicações, uma
confusão e lembro-me de dizer ao agente: “Eu já lhe disse… lá em baixo…”.
Ora, eu não tinha saído da mesma
sala, mas parecia-me que sim, ainda hoje penso nos interrogatórios como se
fossem em salas diferentes. O agente percebeu que eu começava a ter alucinações
e mandou-me dormir.
Quero aqui destacar que a
ignorância propositada, metódica, sobre acções e envolvimentos das outras
pessoas do grupo foi muito importante para mim: ajudou a manter uma certa calma
e, sobretudo, não podia dizer mesmo nada, estava ignorante.
A grande angústia em relação aos
interrogatórios era o pânico de implicar alguém com as respostas que ocorriam.
Foi esta a tortura pior, para mim. Tudo era engendrado para dar insegurança. Ao
fugir de uma provocação, corria-se o risco de entrar por um caminho que
não se queria. E sem contacto com o exterior, não se podia verificar nada,
começava-se a imaginar novos enredos, a ter escrúpulos horríveis de se ter
prejudicado este ou aquele, sem controle de nada. Até o híper aquecimento da
sala era planeado para provocar alucinações mais rapidamente. Era o princípio
da incerteza absoluta. Cá fora, não se pode imaginar o que isso é de
tortura psicológica.
Depois, fiquei um mês em regime de
isolamento, com alguns interrogatórios pelo meio. Não tinha literalmente nada
para me distrair, nem livro, papel ou lápis. No Natal, pedi uma Bíblia, mas não
me deram.
Depois do Natal, comecei a ter
visitas da família e, no princípio de Janeiro, levaram-me para uma cela com
mais três raparigas: a Fátima Pereira Bastos, a Conceição Moita e a Maria José
Campos. Já conhecia a Fátima e a Xexão, foi uma alegria, conversámos até às
tantas da noite, não ligando aos ralhos da guarda prisional.
Aí fiquei mais um mês e meio. As
três pertenciam a grupos de luta armada e tinham sido barbaramente torturadas.
Demo-nos muito bem, apesar das diferenças: eu era a da “papelichada”, ou seja,
sem grande categoria. Não percebia nada sobre luta armada.
Saí sob caução, à espera de
julgamento. Francisco Sousa Tavares, de quem era amiga, ofereceu-se para ser
meu advogado.
Quando saí da cadeia, fui para
casa do meu irmão Francisco. Lembro-me de que a primeira coisa que fiz foi
visitar a mãe da Xexão. E não sei bem que mais andei a fazer, que a Pide começou
a mandar-me recados: que tivesse cuidado, que andava a falar demais… Quer
dizer, estava a ser seguida… Era o prolongamento da prisão, cá fora.
Voltei à Escola. Do Ministério,
veio um despacho: era considerada “pedagogicamente inconveniente” para dar aulas.
Soube, mais tarde, que se previa o meu afastamento e não seria colocada
no ano seguinte.
Felizmente, deu-se o 25 de Abril.
Notas
1.
Acerca do que se passou na Escola depois do 25 de Abril: na pouco sensata
euforia de saneamentos que grassava, a Directora foi saneada. Senti o dever de
a defender.
2.
Em pleno gonçalvismo, cruzei-me no Terreiro do Paço com uma guarda prisional.
Reconheci a sua cara, não conseguia lembrar-me donde… Dirigi-me a ela e saudei-a…
Só então me dei conta de quem ela era, de onde a conhecia…
3.
Digo sempre que não me custa falar sobre Caxias, mas o facto é que estas coisas
ficam e, afinal, não me foi assim tão fácil falar…
Próximo texto, dia 14 de Abril:
Os católicos que “salvaram” a Igreja – Histórias do catolicismo militante
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