Sob o título genérico A revolução franciscana, publiquei no Jornal de
Notícias, durante o mês de Dezembro, oito
trabalhos sobre o Papa Francisco, que tentam fazer um balanço do que tem sido
este ainda curto mas intenso pontificado. Este é o quinto trabalho da
série.
Monumento final - Lampedusa, 2011, do artista cubano Kcho
(ilustração reproduzida daqui)
Das periferias existências às geográficas, a sugestão do Papa tornou-se
uma linha orientadora do seu pontificado
“A Igreja é chamada a sair de si
mesma e ir para as periferias, não só geográficas, mas também existenciais: as
periferias do mistério do pecado, da dor, da injustiça, da ignorância e
desprezo relativamente à religião, do pensamento e de toda a miséria.”
Foi por causa desta frase, e da
ideia das periferias, que o então arcebispo de Buenos Aires (Argentina), Jorge
Mario Bergoglio, foi eleito Papa, a 13 de Março de 2013. Nas reuniões
preparatórias do conclave, Bergoglio fez uma intervenção, baseada em algumas
notas que, depois, o cardeal Jaime Ortega, de Havana (Cuba), lhe pediu para
divulgar.
Nesses tópicos, Bergoglio
acrescentava ainda: “Pensando no próximo Papa: [deve ser] um homem que, a
partir da contemplação e adoração de Jesus Cristo, ajude a Igreja a sair de si
para as periferias existenciais, que a ajude a ser mãe fecunda que vive da
‘doce e reconfortante alegria de evangelizar’.”
Desde então, a ideia das
periferias tem marcado o pontificado de Francisco, tornando-se uma linha
orientadora destes quase três anos, desde que foi eleito. E ela tem diferentes
traduções, consoante a realidade a que se referem: o Papa fala de periferias
existenciais para aludir a situações como a solidão, as mães solteiras, os
homossexuais, os divorciados; refere os mais pobres, as vítimas de guerras,
migrantes, reclusos ou refugiados no âmbito das periferias económicas ou
sociais.
Também nas viagens ele tem dado
prioridade às periferias geográficas. Não por acaso, a primeira saída do Papa
foi a um lugar emblemático da desesperança humana e da profunda crise dos
valores europeus: a ilha de Lampedusa, a sul de Itália, um dos lugares onde
chegam refugiados em busca de uma vida digna – ou cadáveres dos que morrem na
travessia do Mediterrâneo. Aí, gritou o Papa contra a “globalização da
indiferença”, um tema que retomou na sua mensagem para o próximo Dia Mundial da
Paz (1 de Janeiro), cujo texto foi divulgado esta semana (ver página ao lado).
Depois de Lampedusa, um novo
mapa-mundi nasce com as viagens do Papa (que ontem mesmo fez 79 anos). No
centro, são colocados alguns dos países mais pobres do mundo ou esquecidos no
contexto internacional: Albânia, Sri Lanka, Filipinas, Equador, Bolívia,
Paraguai, Uganda, Quénia, República Centro-Africana. Outros são países onde o
catolicismo é (ultra-)minoritário ou está sujeito a forte pressão
político-religiosa (Turquia, Israel, Palestina, Albânia, Sri Lanka, Cuba). E,
mesmo em realidades mais favoráveis, como o Brasil, Coreia do Sul ou Estados
Unidos, o programa privilegia encontros com pessoas sem-abrigo, presos,
pobres...
As periferias eclesiais são uma
outra tradução desta ideia orientadora do Papa Bergoglio. Desde logo, pelo
acolhimento de grupos, pessoas ou dinâmicas até agora mais postos de lado pela
hierarquia católica: Francisco encontrou-se com Gustavo Gutierrez, o “pai” da
teologia da libertação latino-americana; promoveu a beatificação do arcebispo
Óscar Romero, emperrada há anos no Vaticano; e participou no encontro dos
Movimentos Populares latino-americanos, ao lado de Evo Morales, na Bolívia,
defendendo “trabalho, terra e tecto” para todos...
A ideia das periferias eclesiais
estende-se mesmo a quem não crê. A 22 de Maio de 2013, dizia ele, na sua
homilia da manhã, na Casa de Santa Marta, que a salvação é para todos: “O
Senhor redimiu-nos a todos, a todos, (...) não só aos católicos. A todos.
‘Padre, então, e aos ateus?’ Também a eles. (...) Encontrar-se fazendo o bem.
‘Mas eu não acredito, padre, eu sou ateu!’ Mesmo assim, faz o bem:
encontramo-nos aí!’” (Papa Francisco, A
Verdade é um Encontro, ed. Paulinas).
Sair ao encontro das periferias,
de quem foi posto de lado pelo centro (seja qual for esse centro), é condição
indispensável para a própria sobrevivência da Igreja: “Se a Igreja não sair de
si mesma para evangelizar torna-se auto-referencial e, em seguida, fica doente
“, dizia o ainda cardeal Bergoglio, no pé-conclave.
Nessa intervenção, o então cardeal
antecipava muitas das críticas que, durante estes três anos, viria a fazer a
muitas das formas organizativas da Igreja: “Os males que, ao longo do tempo, se
verificam nas instituições eclesiais têm raiz na auto-referencialidade, uma
espécie de narcisismo teológico.” E acrescentava: “No Apocalipse Jesus diz que
ele está à porta e chama. Obviamente, o texto refere-se ao bater de fora da
porta para entrar ... Mas penso também nas vezes em que Jesus bate do lado de
dentro para que o deixemos sair para fora. A Igreja auto-referencial busca
Jesus Cristo dentro de si e não o deixa sair.”
De Lampedusa à mensagem da paz – A globalização da indiferença
Lampedusa foi a primeira saída do
Papa, a 8 de Julho de 2013, menos de quatro meses depois da sua eleição. À ilha
chegam constantemente refugiados à procura de trabalho (ou, pelo menos, de paz)
na Europa. Por vezes, os naufrágios na travessia do Mediterrâneo fazem com que
as pessoas cheguem a Lampedusa (ou a outras ilhas gregas ou italianas) já como
cadáveres. Por isso a missa que o Papa ali celebrou foi pelas vítimas dos
naufrágios.
“Onde está o teu irmão? A voz do
seu sangue clama até Mim”, disse o Papa na homilia, citando o texto bíblico do
livro do Génesis, quando Caim mata o seu irmão Abel. E acrescentava: “Neste
mundo da globalização, caímos na globalização da indiferença. Habituamo-nos ao
sofrimento do outro, não nos diz respeito, não nos interessa, não é
responsabilidade nossa!”
Depois de Lampedusa, o Papa
insistiu nesta ideia várias vezes. Na mensagem para o Dia Mundial da Paz, que
se assinala a 1 de Janeiro, volta a referir o tema. Com o título “Vence a
indiferença e conquista a paz”, o Papa apela a que as pessoas não se rendam “à
resignação nem à indiferença”.
Dizendo que “a primeira forma de
indiferença na sociedade humana é a indiferença para com Deus, da qual deriva
também a indiferença para com o próximo e a criação”, pede que pessoas e
Estados façam “gestos concretos, actos corajosos a bem das pessoas mais frágeis
da sociedade, como os reclusos, os migrantes, os desempregados e os doentes”. E
cita concretamente o perdão da dívida dos países mais pobres como uma decisão
que os mais ricos deveriam tomar.
O Papa Francisco em Lampedusa, com uma cruz
feita de restos de embarcações destruídas, usadas por refugiados
(foto reproduzida daqui)
Mudanças e aberturas
As mudanças no Colégio
Cardinalício são outro sinal da atenção do Papa a realidades periféricas ou
esquecidas. A cúpula da Igreja Católica também muda.
O mais jovem cardeal está em Tonga
Poderiam os católicos do pequeno
arquipélago de Tonga, no Pacífico Sul, pensar que um dia teriam um cardeal?
Sendo apenas uns 15 por cento entre pouco mais de 100 mil habitantes (que
residem em 52 ilhas das 177 que compõem o arquipélago), a minoria católica de
Tonga viu o seu bispo ser nomeado cardeal no consistório de Fevereiro deste ano
(na mesma altura do patriarca de Lisboa). O cardeal Soane Patita Paini Mafi é,
ao mesmo tempo, o mais jovem membro do colégio cardinalício (completa amanhã 54
anos).
Um colégio em mudança
Também outros pequenos países como
Cabo Verde ou Burkina Faso, bem como a Costa do Marfim ou Myanmar tiveram
cardeais escolhidos pelo Papa Francisco. No próximo ano, uma dezena de cardeais
atingirá a idade limite para poder votar num conclave, o que faz com que sejam
necessários mais uns 15 novos cardeais para preencher as vagas que entretanto
já existem (o número de cardeais-eleitores de um novo Papa deve ser de 120,
segundo a constituição do Vaticano que regula o processo). Embora ainda não
seja claro se o Papa avança ou não para um novo consistório de criação de
cardeais, é de prever que, se isso não acontecer em 2016, já deverá acontecer
em 2017. Nessa altura, Francisco terá nomeado perto de meia centena de
cardeais, o que aumentará muito a sua influência no conclave que escolherá o
seu sucessor. Sabendo que muitos cardeais já existentes alinham com Francisco,
a sua influência é já notória.
Ásia, o grande horizonte
A nomeação do bispo Soane Mafi
como cardeal é apenas um dos sinais da preocupação do Papa Francisco com as
periferias geográficas do catolicismo, na linha das viagens à Coreia, ao Sri
Lanka e às Filipinas – ou ainda à Terra Santa (Jordânia, Palestina e Israel).
Foi na Ásia que nasceu o cristianismo, mas é neste continente que a fé cristã
mais obstáculos tem encontrado: seja pelas perseguições de que é vítima, seja
pela presença forte de religiões como o islão, do hinduísmo ou do budismo. Por
isso, as viagens asiáticas do Papa traduzem essas várias preocupações, bem como
o desejo de intensificar a convivência inter-religiosa e a resolução pacífica
dos conflitos.
Rússia e China, os destinos mais
desejados
Nem João Paulo II nem Bento XVI
(como já antes Paulo VI) conseguiram ir à Rússia nem à China. E percebe-se que
esses dois países seriam um grande objectivo para qualquer Papa. Também para
Francisco, que tem intensificado o diálogo com a Igreja Ortodoxa (predominante
na Rússia) e que já em várias ocasiões se referiu à China (onde os cristãos são
duramente perseguidos).
Uma abertura com 50 anos
A ideia de que a Igreja deve
continuar a abrir-se cada vez mais ao mundo é retomada pelo Papa na sua
mensagem para o Dia Mundial da Paz, que se assinala no próximo dia 1 de
Janeiro. Escreve Francisco, recordando os 50 anos do Concílio Vaticano II: “O
ano de 2015 foi um ano especial para a Igreja, nomeadamente porque registou o
cinquentenário da publicação de dois documentos do Concílio Vaticano II que
exprimem, de forma muito eloquente, o sentido de solidariedade da Igreja com o
mundo. O Papa João XXIII, no início do Concílio, quis escancarar as janelas da
Igreja, para que houvesse, entre ela e o mundo, uma comunicação mais aberta. Os
dois documentos – Nostra Aetate
[sobre a liberdade religiosa] e Gaudium et
Spes [sobre a Igreja no mundo actual] – são expressões emblemáticas da nova
relação de diálogo, solidariedade e convivência que a Igreja pretendia
introduzir no interior da humanidade.”
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