Os católicos na luta contra a ditadura (15)
A 22 de Agosto de 2015, publiquei no Expresso/Revista
E, um texto reconstituindo a rede dos
Terceiros Sábados, que existiu em Portugal antes do 25 de Abril de 1974 e foi
dinamizada por Nuno Teotónio Pereira e pela sua mulher, Natália Duarte Silva.
No dia do funeral do arquitecto (esta sexta, às 13h30, da Igreja do Sagrado
Coração de Jesus, que ele desenhou, com Nuno Portas, para o cemitério do
Lumiar, em Lisboa), reproduzo aqui esse texto:
Eram
dezenas de católicos que reuniam numa casa de freiras, em Lisboa, para celebrar
a fé e se apoiar mutuamente na luta contra o fascismo e a guerra colonial. Aqui
se recordam contornos inéditos e nomes da rede dos Terceiros Sábados, uma
história referida em muitas memórias mas nunca antes reconstituída de modo
sistemático.
Foi já
depois de 25 de Abril de 1974 e os dias eram de liberdade e entusiasmo. Mas
aquele baptizado de cinco crianças foi em conjunto, porque aqueles cinco casais
tinham cimentado laços, em conjunto, na luta pela liberdade, contra a ditadura
e a guerra colonial, antes da revolução: nos terceiros sábados de cada mês, na
casa das irmãs Franciscanas Missionárias de Maria (FMM), ao Campo Pequeno, em Lisboa,
dezenas de pessoas encontravam-se para reflectir, trocar informação clandestina
sobre a luta contra o regime e a guerra colonial, debaterem a fé e celebrar a
eucaristia. Era a forma de se apoiarem mutuamente.
O
baptizado, a 13 de Julho de 1974 – dois meses e meio depois da revolução – foi
presidido pelo padre Joaquim Teles de Sampaio, que regressara no início de 1973
do Macúti (Moçambique), por denunciar massacres das tropas portuguesas na
guerra colonial e já não se sentir em segurança. Isabel Pinto Correia e José
Pereira Neto recordam que o seu filho, Pedro Neto, foi baptizado com, pelo
menos, mais três crianças, enquanto a filha de Vitória e Joaquim Pinto de
Andrade teve o rito de apresentação prévio ao baptismo.
A rede dos
Terceiros Sábados reuniu durante perto de três anos, entre o final de 1970 ou
início de 1971, até 1973. No Verão e Outono deste ano, uma vaga de prisões de
pessoas ligadas ao BAC (Boletim Anti-Colonial) – Nuno Teotónio Pereira, Luís
Moita, Maria da Conceição Moita, Luiza Sarsfield Cabral, entre outros – terá
tornado arriscada a continuação da iniciativa.
Nos
Terceiros Sábados, cruzavam-se percursos, objectivos e estratégias diferentes.
Cada participante aparecia por convite ou por um empenhamento concreto. Mas o
carácter de rede informal, em que o objectivo era a celebração da eucaristia, a
reflexão sobre a fé e a partilha de informação, só permite reconstruir a
experiência a partir de memórias, nem sempre coincidentes e necessariamente
fragmentadas
É como um
puzzle onde algumas peças já não encaixam bem umas nas outras, pelo desgaste do
tempo ou pelas diferentes origens. E faz-se, na impossibilidade de reconstituir
todo o grupo, através de memórias de pessoas, que, em alguns casos, dizem que
tiveram uma participação residual, mas que aquele espaço as marcou para a vida.
É isso
mesmo que diz Luiza Sarsfield Cabral, professora de português já na época,
presa por causa do seu apoio ao grupo do BAC: os Terceiros Sábados foram uma
experiência fundamental no fortalecimento do apoio mútuo entre católicos e da
amizade entre pessoas.
A ideia:
um suporte de fé para a luta contra o regime
Terá sido
a insistência de Natália e uma conversa dela e do marido, o arquitecto Nuno
Teotónio Pereira, com o padre Adriano Botelho, que levou à criação dos
encontros. O padre Botelho estivera exilado na Argentina e era, então, capelão
no Hospital da Parede. Adriano Botelho, que morreu em 1980, tinha sido pároco
de Alcântara entre 1940 e 1960, criando várias iniciativas de apoio aos mais
necessitados, numa zona de Lisboa onde predominavam operários e famílias
pobres. As suas homilias e, em 1960, o facto de ter testemunhado em favor de
dois envolvidos na “revolta da Sé”, forçaram-no ao exílio na Patagónia, durante
cerca de três anos.
Depois
dessa conversa, foi Natália Teotónio Pereira quem deu o impulso final, como
recorda frei Bento Domingues: “Eu estava a falar com o Nuno e ela, que estava
com uma gravidez de risco, virou-se para nós e disse-nos: ‘isto tem de começar
já no próximo sábado’. O objectivo era dar um suporte de celebração da fé às
pessoas envolvidas na luta contra o regime.”
Luiza
Sarsfield Cabral confirma: Natália queria “que a militância política tivesse um
suporte espiritual.” Ninguém tinha de referir a origem, mas podia dar
informações sobre as actividades em que estava envolvido. “Desse modo, os
grupos clandestinos tinham uma cobertura para se reunir.”
Vitória Almeida e Sousa, viúva de
Joaquim Pinto de Andrade, também recorda o impulso dado por Natália Teotónio
Pereira: “Ela era assim, decidida, aprendi
muito com ela. Era uma pessoa muito boa, muito generosa.”
No início,
ainda se reuniram duas ou três vezes no colégio das Irmãs Dominicanas, no
Restelo. Depois, decidiu-se mudar para o Campo Pequeno: por ser mais central,
não levantava tantas suspeitas.
O nome
veio informalmente, do dia em que reuniam, mas também com a referência de duas
expressões do catolicismo tradicional: as primeiras sextas-feiras e os
primeiros sábados de cada mês eram dedicados à devoção ao Coração de Jesus e ao
Coração de Maria.
À porta:
“Empenhados em serem cristãos a sério”
As irmãs Fernanda Pinto e Conceição Martins no pátio da casa das
Franciscanas Missionárias de Maria, em Lisboa,
onde decorreram as reuniões dos Terceiros Sábados (foto Abril de 2014)
Coube à
irmã Fernanda Pinto, hoje com 85 anos e a viver numa comunidade das FMM em
Santo André, receber o grupo de padres que pediu a sala. Recorda-se de frei
Bento Domingues e do também dominicano Luís de França, do então jesuíta José
Sousa Monteiro, já falecido, e de Luís Moita, que viria, poucos meses depois, a
abandonar o ministério de padre, em desacordo com a orientação do cardeal
Gonçalves Cerejeira.
Desde
finais da década de 1960, a irmã Fernanda era formadora das jovens professas,
segunda etapa na integração na congregação, depois do noviciado. Falou com a
provincial (responsável da província portuguesa das FMM), a irmã Luísa
Baltazar. “Ela confiou” e o pedido foi aceite, apesar de saber que era
arriscado. “Eram gente muito sã, muito empenhada em serem cristãos a sério,
cristãos adultos que tinham aderido a Jesus Cristo”, recorda Fernanda Pinto,
enquanto mostra os espaços usados para os encontros, na casa do Campo Pequeno,
durante uma passagem por Lisboa.
Um dos
participantes, Manuel Coelho, hoje médico em Sines e, durante vários mandatos,
presidente da Câmara Municipal, foi a irmã Fernanda reencontrá-lo quando passou
a viver na comunidade onde está agora. “Ele afastou-se da Igreja, mas é o
exemplo das pessoas que vinham cá a casa, de uma verticalidade fantástica.” Manuel Coelho foi um dos que esteve preso em
Caxias após a invasão policial da Capela do Rato, durante a vigília pela paz
ali realizada, a 31 de Dezembro de 1972.
Na sala do
rés-do-chão, hoje cedida à União das Misericórdias Portuguesas, havia sempre
dezenas de pessoas – o número oscilaria entre cerca de 40 e 80 mas nem sempre
eram as mesmas. Para se chegar ao lugar da reunião, desciam-se umas escadas à
direita da capela, depois do átrio de entrada. Em baixo, atravessava-se o pátio
interior, entretanto alterado, ladeado à direita por ameixoeiras e limoeiros e
com um chão ladrilhado.
A PIDE,
polícia política do regime fascista, rondava a casa, recorda a irmã Fernanda.
“O grupo convidou-me a participar, mas eu disse que era perigoso. Se eu não
fosse e se me perguntassem alguma coisa, eu poderia dizer que não sabia o que
se passava.”
Apesar
disso, as irmãs Fernanda Pinto e Conceição Martins lembram-se de guardar
documentos clandestinos nos quartos. E, mesmo com todas as cautelas, a irmã
Fernanda foi uma vez chamada à PIDE, tal como a sua superiora provincial,
embora sem consequências. “O pretexto era saber se uma irmã basca da comunidade
estava legalizada. Quando fizeram perguntas mais capciosas, disse-lhes que
sabia como eles funcionavam e que eu não sabia de nada.”
As
Franciscanas Missionárias de Maria, que dirigiam uma escola de enfermagem,
tinham já várias irmãs a trabalhar em hospitais ou em escolas. “Havia a convicção
de que os tempos pediam uma mudança e que deveríamos dar o nosso testemunho nos
lugares ou nas profissões que escolhêssemos.” Nada disso era bem visto, ao
tempo, pelo regime.
O
passa-palavra: o encontro e a troca de informação
“A
convocatória era feita por passa-palavra; ia-se para celebrar a eucaristia.
Sendo celebrações autênticas, elas serviam de cobertura à troca de informação
clandestina. E, no momento da oração dos fiéis e do ofertório, rezava-se por
várias pessoas ou intenções”, recorda Luiza Sarsfield Cabral, que seria presa
pela PIDE, em 26 de Novembro de 1973, por causa do seu apoio ao BAC, Boletim
Anti-Colonial.
Isabel
Pinto Correia e José Augusto Pereira Neto têm uma memória diferente: “Todas as iniciativas tinham, sempre e antes
de mais, um caráter político marcado.” Entender esta dinâmica é importante,
sublinham. “Os tempos eram marcados por uma ingenuidade que nada procurava em
troca. Corriam-se riscos, porque se acreditava. Eram tempos de pureza e de fé.
Acreditava-se – contra toda a esperança – que havíamos de fazer cair o regime.”
E avaliam: “Faz bem lembrar que algum dia fomos generosos. Isso ajuda-nos a
viver, mesmo em tempos de tanta falta de esperança.”
“Vinham
pessoas de vários pontos do país, era muito interactivo e informal, não se
sabia bem quem iria aparecer”, diz Luísa Teotónio Pereira, filha dos autores da
ideia. “Aproveitávamos para trocar informações e experiências. Outras vezes,
passávamos panfletos uns aos outros, trocávamos documentação clandestina ou
acertávamos iniciativas em pequenos grupos.”
Luísa
Teotónio Pereira, estudante universitária desde Outubro de 1971 (a mãe morrera
entretanto em Abril, durante um parto, por problemas cardíacos), acrescenta que
aquele era um ponto de encontro, um “espaço protegido que não levantava
suspeitas”. Casada desde Agosto de 1972, Luísa trabalhou, desde final desse
ano, no Centro de Saúde Escolar, dirigido por Maria Adelaide Pinto Correia.
Ficou por lá até Maio de 1974, quando surgiu o CIDAC (Centro de Informação e
Documentação Anti-Colonial, actual Centro de Intervenção para o Desenvolvimento
Amílcar Cabral, onde ainda hoje está).
A
celebração da eucaristia, recorda agora, “não era uma camuflagem, era antes um
espaço com características diferentes dos normais, onde as pessoas se encontravam,
na fé, de um modo distinto do que acontecia em outros âmbitos da Igreja”. Ou
seja, explica Luísa Teotónio Pereira, era “uma celebração quase subversiva
também em relação à Igreja convencional”.
Imagem de Nossa Senhora no pátio da casa das Franciscanas Missionárias de Maria,
no Campo Pequeno, em Lisboa (foto Abril de 2014)
A missa: “Reforçar empatias e convicções”
Os encontros
dos Terceiros Sábados eram um momento em que as pessoas podiam “reforçar
empatias e convicções, estar em grupo e partilhar preocupações e dificuldades”.
Foi assim que Naima, filha de Vitória e Joaquim Pinto de Andrade, ficou
afilhada de Nuno Teotónio Pereira. E que o baptizado de Pedro Neto e dos outros
bebés acabou por ocorrer em Julho de 1974, no encontro pós-revolução.
Significavam
ainda um “espaço resguardado”, recorda Inês Cordovil. Ao contrário do que
acontecia, por exemplo, na Capela do Rato, onde estava sempre um agente da PIDE
na missa. A diferença era a da natureza dos espaços: na Capela do Rato, o que
acontecia era por natureza aberto e público; nos Terceiros Sábados, as pessoas
reuniam-se também para celebrar a eucaristia, mas clandestinamente.
Na Capela
do Rato, “quem tomava a palavra sabia que havia pides a ouvir”, diz ainda Inês
Cordovil, a oitava de nove irmãos (alguns dos quais também passaram pelos
encontros), que transitou do liceu para o curso universitário de Biologia no
final de 1973. Militante da JEC (Juventude Estudantil Católica), Inês
participava na dinâmica da Capela do Rato e integraria, depois do 25 de Abril,
os Cristãos Pelo Socialismo e o Movimento de Esquerda Socialista, onde havia
vários outros católicos reconhecidos.
Os
encontros que, fazendo bom tempo, decorriam no pátio, como recorda Luiza
Sarsfield Cabral, começavam pelas 17h e iam até cerca das 21h. Com comida que
se trazia para partilhar depois da missa, lembra a irmã Fernanda.
O então
padre Abílio Tavares Cardoso recorda-se de ter estado em alguns dos encontros e
ter celebrado a missa. Ex-reitor do Seminário dos Olivais, cargo de que se
demitira, com toda a sua equipa, em 1968, em discordância com a orientação que
estava a ser seguida no patriarcado, também ele abandonaria o ministério,
poucos meses depois de terem começado os encontros.
“A forma
de celebrar era diferente da tradicional, sabíamos quando começava, mas não
quando acabava”, diz Inês Cordovil. Cantava-se o Vemos, Ouvimos e Lemos, de Sophia de Mello Breyner (musicado por
Rui Paz e cantado por Francisco Fanhais) e, durante a missa, fazia-se o
comentário partilhado dos textos bíblicos.
Isabel
Gaivão, então estudante de medicina e militante da JEC, sintetiza: “Falávamos
sobre a nossa condição de cristãos e o que era possível fazer ou não, sobre o
que andávamos a fazer, os rumos que tínhamos para as nossa vidas, o país e a
Igreja.”
Além da
troca de informações e ideias, também foi entre participantes dos Terceiros
Sábados que nasceram iniciativas concretas, recorda Luísa Teotónio Pereira.
Nada era combinado em conjunto mas, durante ou no final dos encontros, pequenos
grupos podiam decidir alguma acção conjunta.
Nuno Teotónio Pereira e Luiza Sarsfield Cabral, em Marvão,
num dos piqueniques que serviam de cobertura à fuga de jovens ao serviço militar
João
Cordovil, então com 22 anos, recorda uma dessas iniciativas: a distribuição de
panfletos, em Fátima, contra a guerra colonial. Irmão de Inês, começou a
participar nos encontros já depois de ter casado, em Novembro de 1971, com
Isabel Gaivão, 24 anos. João, também da JEC, trabalhava no Centro de Economia
Agrária, em Oeiras, e tinha adiado a conclusão do curso de Economia, que
frequentava, para protelar a incorporação militar. Com outros dois amigos –
António Matos Ferreira e Carlos Sangreman – estava a preparar-se, pouco antes
do 25 de Abril, para declarar objecção de consciência ao serviço militar.
“A guerra
era uma questão central” nos Terceiros Sábados, diz Cordovil. A prová-lo, ele e
a mulher, que residem agora no concelho de Moura, recordam a presença de
Joaquim Pinto de Andrade e da mulher, Vitória Almeida e Sousa, em vários
encontros. “Pinto de Andrade marcou-me, ele terá estado várias vezes com
Vitória, para falar da situação de Angola e da sua própria”, diz João.
Denunciar
a guerra e apelar à crítica consequente dos cristãos era precisamente a ideia
do papel distribuído em Fátima, recorda Avelino Rodrigues, que tinha sido padre
e viria depois a ser jornalista. Enquanto capelão no Regimento de Infantaria 5, nas Caldas da
Rainha, Avelino Rodrigues promoveu encontros com jovens oficiais, para discutir
as grandes contradições da guerra. Vários desses oficiais terão começado aí a
pôr em causa a guerra colonial. O que confirma a sua tese – expressa no livro
de que é co-autor, “O Movimento dos Capitães e o 25 de Abril” (ed. Planeta) –
de que a revolução de 1974 “é um rio com muitos afluentes e que as Caldas da
Rainha foi talvez o primeiro e o mais importante”.
Luísa Ivo, que estaria, um ano depois, no
início do CIDAC com Luís Moita e Luísa Teotónio Pereira, foi uma das participantes
dessa acção. Lembra-se de uns papéis amarelos onde se aludia às mensagens do
Papa Paulo VI para o Dia Mundial da Paz – concretamente, ao título “A paz é
possível”, da mensagem de 1 de Janeiro de 1973.
António Castanheira, então contabilista numa
fábrica de margarinas e empenhado na paróquia de São Domingos de Benfica,
recorda-se de ter ido a Fátima duas vezes, em Maio e Outubro de 1973, com mais
umas 30 a 40 pessoas. Distribuídos em pequenos grupos, Castanheira recorda-se
de ter estado, em Maio, talvez umas três horas a distribuir folhetos. “Ninguém
estaria à espera” de tal e, por isso, a acção decorreu sem incidentes.
Em Outubro, o tempo estava cinzento e a
polícia já se prevenira: um dos grupos percebeu que estava a ser seguido e
rapidamente os restantes se desmobilizaram. Na estrada de Fátima para a
Batalha, com medo de serem interceptados a caminho de Lisboa, Castanheira
sugeriu deixar os panfletos escondidos em sacos, junto de uma árvore, num
descampado. Voltou dias depois para os recuperar e os folhetos seriam usados
para distribuir à porta de várias missas em Lisboa.
Alguns dos
participantes recordam outros episódios, em que vários deles se envolviam: em
Marvão, onde Nuno Teotónio Pereira tinha uma casa de família, iam de vez em
quando fazer um piquenique. O grupo de 20, 30 pessoas, incluindo crianças,
atravessava depois a fronteira a pé, com o pretexto de ir comprar caramelos a
Espanha. No regresso, já não vinham todos: o piquenique era a cobertura para
que um ou dois rapazes em idade militar pudessem fugir do país.
(Da esquerda para a direita) Frei Bento Domingues, Miguel Teotónio Pereira, Luiza Sarsfield Cabral, Nuno Teotónio Pereira e o então padre jesuíta José Sousa Monteiro,
numa das idas aos piqueniques de Marvão, para ajudar jovens a fugir ao serviço militar
Na despedida: responsabilidade para com o
presente
Quando
começou a vaga de prisões, lembra Inês Cordovil, houve o receio de que pudesse
haver uma maior vaga de repressão política; isso terá levado à decisão de
suspender os encontros. Mas também ninguém tem presente a data exacta nem a
razão para ter terminado. “Era da
natureza dos Terceiros Sábados ser um espaço de contactos não identificados,
por razões de segurança. Mas não havia nenhum órgão que coordenasse as pessoas
e grupos que por lá passavam.”
Nem sequer
havia um responsável ou convocatórias. Embora seja evidente para todas as
pessoas o “impulso” de Natália e o “carisma” de Nuno Teotónio Pereira na
liderança, como diz João Cordovil.
Pela rede
passariam ainda pessoas como Francisco Lino Neto (que tinha sido deputado na I
República e participara na campanha presidencial de Humberto Delgado, em 1958),
Manuel Lopes (que viria a ser um dos rostos destacados da CGTP), Conceição Lobo
Antunes (dirigente nacional da JEC, estudante universitária de Psicologia),
Fátima e Manuel Brandão Alves (que tinham passado pela Juventude Universitária
Católica e estavam a iniciar a carreira de professores, ela no secundário, ele
em economia no ISEG) ou Manuel Serra (ex-responsável da Juventude Operária
Católica e mais tarde dirigente do PS). E ainda Catalina Pestana e João Salvado
Ribeiro que, com Abílio Tavares Cardoso, tinham apoiado José Felicidade Alves e
os seus Cadernos Gedoc (Grupo de Estudos e Documentação).
De rede
que juntou pessoas oriundas de diferentes proveniências, os Terceiros Sábados
abriram espaço a diferentes militâncias e caminhos, no pós-25 de Abril. No
discurso que fez no 1º de Maio de 1974 em nome dos “católicos progressistas”,
como foi apresentado, Nuno Teotónio Pereira disse que tinha deixado de fazer
sentido usar aquele “rótulo”. No novo Portugal democrático, sublinhava, cada
católica ou católico poderia fazer opções livres em relação à sua participação
política.
Esses
caminhos diferentes concretizaram-se em novas iniciativas marcadamente
eclesiais: Cristãos Em Reflexão Permanente, Centro de Reflexão Cristã, Cristãos
Para o Socialismo (onde estiveram, entre outros, Conceição Moita, Luís Moita,
Miller Guerra, Catalina Pestana e Fernando Belo), jornal “Libertar”, foram alguns dos grupos surgidos. Mas
vários católicos decidiram integrar movimentos políticos como o Movimento de
Esquerda Socialista (MES), onde confluíram pessoas como Nuno Teotónio Pereira,
Margarida Leão, Jorge Wemans, Luís Moita ou José Silva Dias.
Luísa Ivo,
casada com José Dias, recorda que nessa ocasião já ambos estavam em ruptura com
a Igreja. Ao contrário, António Castanheira diz ter mantido a ligação à Igreja,
mas com sentido crítico: “Acreditávamos que era possível mudar qualquer coisa e
foi isso que nos motivou.”
Inês
Cordovil sintetiza assim a sua experiência: “Nascer no final da década de 1950
e viver ainda o peso da ditadura e o espírito do 25 de Abril, dá-nos muita
responsabilidade em relação ao que estamos a viver no momento presente.”
Pinto de Andrade, deportado de Angola para
Portugal
Joaquim Pinto de Andrade depois da libertação da cadeia de Peniche,
em 1973, com a mulher, Vitória
O angolano
Joaquim Pinto de Andrade, uma das pessoas que participou nos Terceiros Sábados,
tinha sido padre. Mas foi já depois de ter abandonado esse ministério e casado
com Vitória Almeida e Sousa que participou em vários encontros da rede informal
de católicos, algumas das vezes convidado para falar da situação em Angola. “Em
Portugal, eu sentia muito a falta de uma comunidade cristã. Os Terceiros
Sábados ajudaram a colmatá-la”, confessava Vitória, em Lisboa, no final de Maio
deste ano, poucos dias antes de uma intervenção cirúrgica à coluna, da qual
viria a morrer.
Com outros
colegas padres, Joaquim envolvera-se em conspirações várias contra o regime,
acabando a integrar o grupo fundador do MPLA (Movimento Popular de Libertação
de Angola).
No início
da década de 1960, o envolvimento no nacionalismo angolano levou o regime a
deportá-lo para Portugal, com mais alguns padres nacionalistas. Todos eles
foram distribuídos por diferentes sítios do Continente, como então se dizia,
para melhor serem controlados pela PIDE.
Joaquim
Pinto de Andrade residiu, entre outros sítios, no Mosteiro de Singeverga (Santo
Tirso), no Seminário da Boa Nova (Valadares, Gaia) Ponte de Sor e Lisboa, bem
como em Peniche e Caixas, onde esteve preso.
Apesar de
vigiado, continuou a envolver-se em actividades políticas. “O facto de ser
padre dava-lhe a vantagem de poder esconder-se com actividades religiosas, mas
ele usava esses momentos para se fazer ouvir e arriscar um pouco mais”, diz
agora Amílcar Pinto de Andrade, 40 anos, filho de Joaquim e Vitória, que
trabalha como engenheiro informático em Lisboa.
Vitória
Almeida e Sousa, a viúva de Joaquim, nascida em 1936, era ela própria uma
resistente nacionalista. Em 1965, foi presa pela PIDE em Portugal, onde
estudava medicina. Esteve dois anos na cadeia. Antes, conhecera o padre
Joaquim, que celebrava missa na paróquia de São João de Brito, confiada então
ao padre Adriano Botelho, que estivera exilado na Argentina e regressara
entretanto a Portugal.
“Quando
saí da cadeia, o Joaquim mandou-me uma mensagem de felicitação e apoio.” Tempos
depois, a situação inverteu-se e Joaquim foi detido. Apesar das ameaças que
sobre ela ainda pairavam, Vitória decidira apoiar os presos políticos
angolanos, entre os quais voltou a estar o padre Pinto de Andrade.
A
“afinidade política e religiosa” entre ambos levaram Joaquim e Vitória a
ponderar casar, contava ela poucos dias antes de ser hospitalizada em Lisboa,
onde veio a morrer, dia 3 de Junho. Ambos profundamente crentes, quiseram
fazê-lo depois de obtida a licença do Vaticano para o abandono do padre
Joaquim. Uma vez concedida, fez-se o casamento civil com Joaquim ainda preso em
Peniche, em Novembro de 1971. Dois anos depois, em 1973, já em liberdade,
fizeram o casamento católico.
Vitória e
Joaquim acabariam por não se rever no rumo que o MPLA adoptou depois do 25 de
Abril de 1974 e, sobretudo, depois da independência de Angola. Já no seu país,
acabariam por ser vítimas de discriminações várias em alguns períodos. Apesar
disso, continuaram ambos a apoiar pessoas necessitadas e presos de sucessivas
purgas levadas a cabo pelo novo regime.
Em Luanda,
Joaquim colaborou com a paróquia do Carmo, entregue aos padres dominicanos.
“Cantava muito bem e era um excelente maestro do coro”, recordava Vitória na
conversa no final de Maio, em Lisboa. E mantinha amizade com antigos colegas –
alguns dos quais chegariam a bispos, como foi o caso de Franclim Costa e
Alexandre Nascimento, que viria a ser arcebispo de Luanda e cardeal.
Apesar da
saúde debilitada, Vitória ainda fazia projectos. Tinha em mente “lançar as bases de um grupo de reflexão
cristã” em Luanda. Para isso, contava com o apoio dos seus amigos padres
dominicanos. E, sobretudo, estava a trabalhar num livro de memória e homenagem
a Joaquim Pinto de Andrade, que deverá ser publicado nos próximos meses pela
Afrontamento.
(Além das
pessoas citadas, agradece-se a Conceição Lobo Antunes e Mário Brochado Coelho a
colaboração prestada)
Um
depoimento de Teotónio Pereira sobre a luta contra o Estado Novo pode ser lido
aqui
O último
texto da série Os católicos na luta contra a ditadura pode ser lido aqui
Texto anterior no blogue
O arquitecto que se despediu de Lisboa antes de cegar - um perfil de Nuno Teotónio Pereira e da sua obra
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