sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Terceiros Sábados: Missas, amizades e conspirações contra a guerra colonial e a ditadura

Os católicos na luta contra a ditadura (15)

A 22 de Agosto de 2015, publiquei no Expresso/Revista E, um texto reconstituindo a rede dos Terceiros Sábados, que existiu em Portugal antes do 25 de Abril de 1974 e foi dinamizada por Nuno Teotónio Pereira e pela sua mulher, Natália Duarte Silva. No dia do funeral do arquitecto (esta sexta, às 13h30, da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, que ele desenhou, com Nuno Portas, para o cemitério do Lumiar, em Lisboa), reproduzo aqui esse texto:

Eram dezenas de católicos que reuniam numa casa de freiras, em Lisboa, para celebrar a fé e se apoiar mutuamente na luta contra o fascismo e a guerra colonial. Aqui se recordam contornos inéditos e nomes da rede dos Terceiros Sábados, uma história referida em muitas memórias mas nunca antes reconstituída de modo sistemático.

Foi já depois de 25 de Abril de 1974 e os dias eram de liberdade e entusiasmo. Mas aquele baptizado de cinco crianças foi em conjunto, porque aqueles cinco casais tinham cimentado laços, em conjunto, na luta pela liberdade, contra a ditadura e a guerra colonial, antes da revolução: nos terceiros sábados de cada mês, na casa das irmãs Franciscanas Missionárias de Maria (FMM), ao Campo Pequeno, em Lisboa, dezenas de pessoas encontravam-se para reflectir, trocar informação clandestina sobre a luta contra o regime e a guerra colonial, debaterem a fé e celebrar a eucaristia. Era a forma de se apoiarem mutuamente.
O baptizado, a 13 de Julho de 1974 – dois meses e meio depois da revolução – foi presidido pelo padre Joaquim Teles de Sampaio, que regressara no início de 1973 do Macúti (Moçambique), por denunciar massacres das tropas portuguesas na guerra colonial e já não se sentir em segurança. Isabel Pinto Correia e José Pereira Neto recordam que o seu filho, Pedro Neto, foi baptizado com, pelo menos, mais três crianças, enquanto a filha de Vitória e Joaquim Pinto de Andrade teve o rito de apresentação prévio ao baptismo.
A rede dos Terceiros Sábados reuniu durante perto de três anos, entre o final de 1970 ou início de 1971, até 1973. No Verão e Outono deste ano, uma vaga de prisões de pessoas ligadas ao BAC (Boletim Anti-Colonial) – Nuno Teotónio Pereira, Luís Moita, Maria da Conceição Moita, Luiza Sarsfield Cabral, entre outros – terá tornado arriscada a continuação da iniciativa.
Nos Terceiros Sábados, cruzavam-se percursos, objectivos e estratégias diferentes. Cada participante aparecia por convite ou por um empenhamento concreto. Mas o carácter de rede informal, em que o objectivo era a celebração da eucaristia, a reflexão sobre a fé e a partilha de informação, só permite reconstruir a experiência a partir de memórias, nem sempre coincidentes e necessariamente fragmentadas
É como um puzzle onde algumas peças já não encaixam bem umas nas outras, pelo desgaste do tempo ou pelas diferentes origens. E faz-se, na impossibilidade de reconstituir todo o grupo, através de memórias de pessoas, que, em alguns casos, dizem que tiveram uma participação residual, mas que aquele espaço as marcou para a vida.
É isso mesmo que diz Luiza Sarsfield Cabral, professora de português já na época, presa por causa do seu apoio ao grupo do BAC: os Terceiros Sábados foram uma experiência fundamental no fortalecimento do apoio mútuo entre católicos e da amizade entre pessoas.

A ideia: um suporte de fé para a luta contra o regime

Terá sido a insistência de Natália e uma conversa dela e do marido, o arquitecto Nuno Teotónio Pereira, com o padre Adriano Botelho, que levou à criação dos encontros. O padre Botelho estivera exilado na Argentina e era, então, capelão no Hospital da Parede. Adriano Botelho, que morreu em 1980, tinha sido pároco de Alcântara entre 1940 e 1960, criando várias iniciativas de apoio aos mais necessitados, numa zona de Lisboa onde predominavam operários e famílias pobres. As suas homilias e, em 1960, o facto de ter testemunhado em favor de dois envolvidos na “revolta da Sé”, forçaram-no ao exílio na Patagónia, durante cerca de três anos.

Depois dessa conversa, foi Natália Teotónio Pereira quem deu o impulso final, como recorda frei Bento Domingues: “Eu estava a falar com o Nuno e ela, que estava com uma gravidez de risco, virou-se para nós e disse-nos: ‘isto tem de começar já no próximo sábado’. O objectivo era dar um suporte de celebração da fé às pessoas envolvidas na luta contra o regime.”
Luiza Sarsfield Cabral confirma: Natália queria “que a militância política tivesse um suporte espiritual.” Ninguém tinha de referir a origem, mas podia dar informações sobre as actividades em que estava envolvido. “Desse modo, os grupos clandestinos tinham uma cobertura para se reunir.”
Vitória Almeida e Sousa, viúva de Joaquim Pinto de Andrade, também recorda o impulso dado por Natália Teotónio Pereira: “Ela era assim, decidida, aprendi muito com ela. Era uma pessoa muito boa, muito generosa.”
No início, ainda se reuniram duas ou três vezes no colégio das Irmãs Dominicanas, no Restelo. Depois, decidiu-se mudar para o Campo Pequeno: por ser mais central, não levantava tantas suspeitas.
O nome veio informalmente, do dia em que reuniam, mas também com a referência de duas expressões do catolicismo tradicional: as primeiras sextas-feiras e os primeiros sábados de cada mês eram dedicados à devoção ao Coração de Jesus e ao Coração de Maria.

À porta: “Empenhados em serem cristãos a sério”


As irmãs Fernanda Pinto e Conceição Martins no pátio da casa das 
Franciscanas Missionárias de Maria, em Lisboa, 
onde decorreram as reuniões dos Terceiros Sábados (foto Abril de 2014)

Coube à irmã Fernanda Pinto, hoje com 85 anos e a viver numa comunidade das FMM em Santo André, receber o grupo de padres que pediu a sala. Recorda-se de frei Bento Domingues e do também dominicano Luís de França, do então jesuíta José Sousa Monteiro, já falecido, e de Luís Moita, que viria, poucos meses depois, a abandonar o ministério de padre, em desacordo com a orientação do cardeal Gonçalves Cerejeira.
Desde finais da década de 1960, a irmã Fernanda era formadora das jovens professas, segunda etapa na integração na congregação, depois do noviciado. Falou com a provincial (responsável da província portuguesa das FMM), a irmã Luísa Baltazar. “Ela confiou” e o pedido foi aceite, apesar de saber que era arriscado. “Eram gente muito sã, muito empenhada em serem cristãos a sério, cristãos adultos que tinham aderido a Jesus Cristo”, recorda Fernanda Pinto, enquanto mostra os espaços usados para os encontros, na casa do Campo Pequeno, durante uma passagem por Lisboa.
Um dos participantes, Manuel Coelho, hoje médico em Sines e, durante vários mandatos, presidente da Câmara Municipal, foi a irmã Fernanda reencontrá-lo quando passou a viver na comunidade onde está agora. “Ele afastou-se da Igreja, mas é o exemplo das pessoas que vinham cá a casa, de uma verticalidade fantástica.” Manuel Coelho foi um dos que esteve preso em Caxias após a invasão policial da Capela do Rato, durante a vigília pela paz ali realizada, a 31 de Dezembro de 1972.
Na sala do rés-do-chão, hoje cedida à União das Misericórdias Portuguesas, havia sempre dezenas de pessoas – o número oscilaria entre cerca de 40 e 80 mas nem sempre eram as mesmas. Para se chegar ao lugar da reunião, desciam-se umas escadas à direita da capela, depois do átrio de entrada. Em baixo, atravessava-se o pátio interior, entretanto alterado, ladeado à direita por ameixoeiras e limoeiros e com um chão ladrilhado.
A PIDE, polícia política do regime fascista, rondava a casa, recorda a irmã Fernanda. “O grupo convidou-me a participar, mas eu disse que era perigoso. Se eu não fosse e se me perguntassem alguma coisa, eu poderia dizer que não sabia o que se passava.”
Apesar disso, as irmãs Fernanda Pinto e Conceição Martins lembram-se de guardar documentos clandestinos nos quartos. E, mesmo com todas as cautelas, a irmã Fernanda foi uma vez chamada à PIDE, tal como a sua superiora provincial, embora sem consequências. “O pretexto era saber se uma irmã basca da comunidade estava legalizada. Quando fizeram perguntas mais capciosas, disse-lhes que sabia como eles funcionavam e que eu não sabia de nada.”
As Franciscanas Missionárias de Maria, que dirigiam uma escola de enfermagem, tinham já várias irmãs a trabalhar em hospitais ou em escolas. “Havia a convicção de que os tempos pediam uma mudança e que deveríamos dar o nosso testemunho nos lugares ou nas profissões que escolhêssemos.” Nada disso era bem visto, ao tempo, pelo regime.

O passa-palavra: o encontro e a troca de informação

“A convocatória era feita por passa-palavra; ia-se para celebrar a eucaristia. Sendo celebrações autênticas, elas serviam de cobertura à troca de informação clandestina. E, no momento da oração dos fiéis e do ofertório, rezava-se por várias pessoas ou intenções”, recorda Luiza Sarsfield Cabral, que seria presa pela PIDE, em 26 de Novembro de 1973, por causa do seu apoio ao BAC, Boletim Anti-Colonial.
Isabel Pinto Correia e José Augusto Pereira Neto têm uma memória diferente: “Todas as iniciativas tinham, sempre e antes de mais, um caráter político marcado.” Entender esta dinâmica é importante, sublinham. “Os tempos eram marcados por uma ingenuidade que nada procurava em troca. Corriam-se riscos, porque se acreditava. Eram tempos de pureza e de fé. Acreditava-se – contra toda a esperança – que havíamos de fazer cair o regime.” E avaliam: “Faz bem lembrar que algum dia fomos generosos. Isso ajuda-nos a viver, mesmo em tempos de tanta falta de esperança.”
“Vinham pessoas de vários pontos do país, era muito interactivo e informal, não se sabia bem quem iria aparecer”, diz Luísa Teotónio Pereira, filha dos autores da ideia. “Aproveitávamos para trocar informações e experiências. Outras vezes, passávamos panfletos uns aos outros, trocávamos documentação clandestina ou acertávamos iniciativas em pequenos grupos.”
Luísa Teotónio Pereira, estudante universitária desde Outubro de 1971 (a mãe morrera entretanto em Abril, durante um parto, por problemas cardíacos), acrescenta que aquele era um ponto de encontro, um “espaço protegido que não levantava suspeitas”. Casada desde Agosto de 1972, Luísa trabalhou, desde final desse ano, no Centro de Saúde Escolar, dirigido por Maria Adelaide Pinto Correia. Ficou por lá até Maio de 1974, quando surgiu o CIDAC (Centro de Informação e Documentação Anti-Colonial, actual Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amílcar Cabral, onde ainda hoje está).
A celebração da eucaristia, recorda agora, “não era uma camuflagem, era antes um espaço com características diferentes dos normais, onde as pessoas se encontravam, na fé, de um modo distinto do que acontecia em outros âmbitos da Igreja”. Ou seja, explica Luísa Teotónio Pereira, era “uma celebração quase subversiva também em relação à Igreja convencional”.



Imagem de Nossa Senhora no pátio da casa das Franciscanas Missionárias de Maria, 
no Campo Pequeno, em Lisboa (foto Abril de 2014)

A missa: “Reforçar empatias e convicções”

Os encontros dos Terceiros Sábados eram um momento em que as pessoas podiam “reforçar empatias e convicções, estar em grupo e partilhar preocupações e dificuldades”. Foi assim que Naima, filha de Vitória e Joaquim Pinto de Andrade, ficou afilhada de Nuno Teotónio Pereira. E que o baptizado de Pedro Neto e dos outros bebés acabou por ocorrer em Julho de 1974, no encontro pós-revolução.
Significavam ainda um “espaço resguardado”, recorda Inês Cordovil. Ao contrário do que acontecia, por exemplo, na Capela do Rato, onde estava sempre um agente da PIDE na missa. A diferença era a da natureza dos espaços: na Capela do Rato, o que acontecia era por natureza aberto e público; nos Terceiros Sábados, as pessoas reuniam-se também para celebrar a eucaristia, mas clandestinamente.
Na Capela do Rato, “quem tomava a palavra sabia que havia pides a ouvir”, diz ainda Inês Cordovil, a oitava de nove irmãos (alguns dos quais também passaram pelos encontros), que transitou do liceu para o curso universitário de Biologia no final de 1973. Militante da JEC (Juventude Estudantil Católica), Inês participava na dinâmica da Capela do Rato e integraria, depois do 25 de Abril, os Cristãos Pelo Socialismo e o Movimento de Esquerda Socialista, onde havia vários outros católicos reconhecidos.
Os encontros que, fazendo bom tempo, decorriam no pátio, como recorda Luiza Sarsfield Cabral, começavam pelas 17h e iam até cerca das 21h. Com comida que se trazia para partilhar depois da missa, lembra a irmã Fernanda.
O então padre Abílio Tavares Cardoso recorda-se de ter estado em alguns dos encontros e ter celebrado a missa. Ex-reitor do Seminário dos Olivais, cargo de que se demitira, com toda a sua equipa, em 1968, em discordância com a orientação que estava a ser seguida no patriarcado, também ele abandonaria o ministério, poucos meses depois de terem começado os encontros.
“A forma de celebrar era diferente da tradicional, sabíamos quando começava, mas não quando acabava”, diz Inês Cordovil. Cantava-se o Vemos, Ouvimos e Lemos, de Sophia de Mello Breyner (musicado por Rui Paz e cantado por Francisco Fanhais) e, durante a missa, fazia-se o comentário partilhado dos textos bíblicos.
Isabel Gaivão, então estudante de medicina e militante da JEC, sintetiza: “Falávamos sobre a nossa condição de cristãos e o que era possível fazer ou não, sobre o que andávamos a fazer, os rumos que tínhamos para as nossa vidas, o país e a Igreja.”
Além da troca de informações e ideias, também foi entre participantes dos Terceiros Sábados que nasceram iniciativas concretas, recorda Luísa Teotónio Pereira. Nada era combinado em conjunto mas, durante ou no final dos encontros, pequenos grupos podiam decidir alguma acção conjunta.



Nuno Teotónio Pereira e Luiza Sarsfield Cabral, em Marvão, 

num dos piqueniques que serviam de cobertura à fuga de jovens ao serviço militar


Iniciativas: a guerra, uma questão central

João Cordovil, então com 22 anos, recorda uma dessas iniciativas: a distribuição de panfletos, em Fátima, contra a guerra colonial. Irmão de Inês, começou a participar nos encontros já depois de ter casado, em Novembro de 1971, com Isabel Gaivão, 24 anos. João, também da JEC, trabalhava no Centro de Economia Agrária, em Oeiras, e tinha adiado a conclusão do curso de Economia, que frequentava, para protelar a incorporação militar. Com outros dois amigos – António Matos Ferreira e Carlos Sangreman – estava a preparar-se, pouco antes do 25 de Abril, para declarar objecção de consciência ao serviço militar.
“A guerra era uma questão central” nos Terceiros Sábados, diz Cordovil. A prová-lo, ele e a mulher, que residem agora no concelho de Moura, recordam a presença de Joaquim Pinto de Andrade e da mulher, Vitória Almeida e Sousa, em vários encontros. “Pinto de Andrade marcou-me, ele terá estado várias vezes com Vitória, para falar da situação de Angola e da sua própria”, diz João.
Denunciar a guerra e apelar à crítica consequente dos cristãos era precisamente a ideia do papel distribuído em Fátima, recorda Avelino Rodrigues, que tinha sido padre e viria depois a ser jornalista. Enquanto capelão no Regimento de Infantaria 5, nas Caldas da Rainha, Avelino Rodrigues promoveu encontros com jovens oficiais, para discutir as grandes contradições da guerra. Vários desses oficiais terão começado aí a pôr em causa a guerra colonial. O que confirma a sua tese – expressa no livro de que é co-autor, “O Movimento dos Capitães e o 25 de Abril” (ed. Planeta) – de que a revolução de 1974 “é um rio com muitos afluentes e que as Caldas da Rainha foi talvez o primeiro e o mais importante”. 
Luísa Ivo, que estaria, um ano depois, no início do CIDAC com Luís Moita e Luísa Teotónio Pereira, foi uma das participantes dessa acção. Lembra-se de uns papéis amarelos onde se aludia às mensagens do Papa Paulo VI para o Dia Mundial da Paz – concretamente, ao título “A paz é possível”, da mensagem de 1 de Janeiro de 1973.
António Castanheira, então contabilista numa fábrica de margarinas e empenhado na paróquia de São Domingos de Benfica, recorda-se de ter ido a Fátima duas vezes, em Maio e Outubro de 1973, com mais umas 30 a 40 pessoas. Distribuídos em pequenos grupos, Castanheira recorda-se de ter estado, em Maio, talvez umas três horas a distribuir folhetos. “Ninguém estaria à espera” de tal e, por isso, a acção decorreu sem incidentes.
Em Outubro, o tempo estava cinzento e a polícia já se prevenira: um dos grupos percebeu que estava a ser seguido e rapidamente os restantes se desmobilizaram. Na estrada de Fátima para a Batalha, com medo de serem interceptados a caminho de Lisboa, Castanheira sugeriu deixar os panfletos escondidos em sacos, junto de uma árvore, num descampado. Voltou dias depois para os recuperar e os folhetos seriam usados para distribuir à porta de várias missas em Lisboa.
Alguns dos participantes recordam outros episódios, em que vários deles se envolviam: em Marvão, onde Nuno Teotónio Pereira tinha uma casa de família, iam de vez em quando fazer um piquenique. O grupo de 20, 30 pessoas, incluindo crianças, atravessava depois a fronteira a pé, com o pretexto de ir comprar caramelos a Espanha. No regresso, já não vinham todos: o piquenique era a cobertura para que um ou dois rapazes em idade militar pudessem fugir do país.


(Da esquerda para a direita) Frei Bento Domingues, Miguel Teotónio Pereira, Luiza Sarsfield Cabral, Nuno Teotónio Pereira e o então padre jesuíta José Sousa Monteiro, 
numa das idas aos piqueniques de Marvão, para ajudar jovens a fugir ao serviço militar

Na despedida: responsabilidade para com o presente

Quando começou a vaga de prisões, lembra Inês Cordovil, houve o receio de que pudesse haver uma maior vaga de repressão política; isso terá levado à decisão de suspender os encontros. Mas também ninguém tem presente a data exacta nem a razão para ter terminado. “Era da natureza dos Terceiros Sábados ser um espaço de contactos não identificados, por razões de segurança. Mas não havia nenhum órgão que coordenasse as pessoas e grupos que por lá passavam.
Nem sequer havia um responsável ou convocatórias. Embora seja evidente para todas as pessoas o “impulso” de Natália e o “carisma” de Nuno Teotónio Pereira na liderança, como diz João Cordovil.
Pela rede passariam ainda pessoas como Francisco Lino Neto (que tinha sido deputado na I República e participara na campanha presidencial de Humberto Delgado, em 1958), Manuel Lopes (que viria a ser um dos rostos destacados da CGTP), Conceição Lobo Antunes (dirigente nacional da JEC, estudante universitária de Psicologia), Fátima e Manuel Brandão Alves (que tinham passado pela Juventude Universitária Católica e estavam a iniciar a carreira de professores, ela no secundário, ele em economia no ISEG) ou Manuel Serra (ex-responsável da Juventude Operária Católica e mais tarde dirigente do PS). E ainda Catalina Pestana e João Salvado Ribeiro que, com Abílio Tavares Cardoso, tinham apoiado José Felicidade Alves e os seus Cadernos Gedoc (Grupo de Estudos e Documentação).
De rede que juntou pessoas oriundas de diferentes proveniências, os Terceiros Sábados abriram espaço a diferentes militâncias e caminhos, no pós-25 de Abril. No discurso que fez no 1º de Maio de 1974 em nome dos “católicos progressistas”, como foi apresentado, Nuno Teotónio Pereira disse que tinha deixado de fazer sentido usar aquele “rótulo”. No novo Portugal democrático, sublinhava, cada católica ou católico poderia fazer opções livres em relação à sua participação política.
Esses caminhos diferentes concretizaram-se em novas iniciativas marcadamente eclesiais: Cristãos Em Reflexão Permanente, Centro de Reflexão Cristã, Cristãos Para o Socialismo (onde estiveram, entre outros, Conceição Moita, Luís Moita, Miller Guerra, Catalina Pestana e Fernando Belo), jornal “Libertar”, foram alguns dos grupos surgidos. Mas vários católicos decidiram integrar movimentos políticos como o Movimento de Esquerda Socialista (MES), onde confluíram pessoas como Nuno Teotónio Pereira, Margarida Leão, Jorge Wemans, Luís Moita ou José Silva Dias. 
Luísa Ivo, casada com José Dias, recorda que nessa ocasião já ambos estavam em ruptura com a Igreja. Ao contrário, António Castanheira diz ter mantido a ligação à Igreja, mas com sentido crítico: “Acreditávamos que era possível mudar qualquer coisa e foi isso que nos motivou.”
Inês Cordovil sintetiza assim a sua experiência: “Nascer no final da década de 1950 e viver ainda o peso da ditadura e o espírito do 25 de Abril, dá-nos muita responsabilidade em relação ao que estamos a viver no momento presente.”

Pinto de Andrade, deportado de Angola para Portugal



Joaquim Pinto de Andrade depois da libertação da cadeia de Peniche, 
em 1973, com a mulher, Vitória

O angolano Joaquim Pinto de Andrade, uma das pessoas que participou nos Terceiros Sábados, tinha sido padre. Mas foi já depois de ter abandonado esse ministério e casado com Vitória Almeida e Sousa que participou em vários encontros da rede informal de católicos, algumas das vezes convidado para falar da situação em Angola. “Em Portugal, eu sentia muito a falta de uma comunidade cristã. Os Terceiros Sábados ajudaram a colmatá-la”, confessava Vitória, em Lisboa, no final de Maio deste ano, poucos dias antes de uma intervenção cirúrgica à coluna, da qual viria a morrer. 
Com outros colegas padres, Joaquim envolvera-se em conspirações várias contra o regime, acabando a integrar o grupo fundador do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola).
No início da década de 1960, o envolvimento no nacionalismo angolano levou o regime a deportá-lo para Portugal, com mais alguns padres nacionalistas. Todos eles foram distribuídos por diferentes sítios do Continente, como então se dizia, para melhor serem controlados pela PIDE.
Joaquim Pinto de Andrade residiu, entre outros sítios, no Mosteiro de Singeverga (Santo Tirso), no Seminário da Boa Nova (Valadares, Gaia) Ponte de Sor e Lisboa, bem como em Peniche e Caixas, onde esteve preso.
Apesar de vigiado, continuou a envolver-se em actividades políticas. “O facto de ser padre dava-lhe a vantagem de poder esconder-se com actividades religiosas, mas ele usava esses momentos para se fazer ouvir e arriscar um pouco mais”, diz agora Amílcar Pinto de Andrade, 40 anos, filho de Joaquim e Vitória, que trabalha como engenheiro informático em Lisboa.
Vitória Almeida e Sousa, a viúva de Joaquim, nascida em 1936, era ela própria uma resistente nacionalista. Em 1965, foi presa pela PIDE em Portugal, onde estudava medicina. Esteve dois anos na cadeia. Antes, conhecera o padre Joaquim, que celebrava missa na paróquia de São João de Brito, confiada então ao padre Adriano Botelho, que estivera exilado na Argentina e regressara entretanto a Portugal.
“Quando saí da cadeia, o Joaquim mandou-me uma mensagem de felicitação e apoio.” Tempos depois, a situação inverteu-se e Joaquim foi detido. Apesar das ameaças que sobre ela ainda pairavam, Vitória decidira apoiar os presos políticos angolanos, entre os quais voltou a estar o padre Pinto de Andrade.
A “afinidade política e religiosa” entre ambos levaram Joaquim e Vitória a ponderar casar, contava ela poucos dias antes de ser hospitalizada em Lisboa, onde veio a morrer, dia 3 de Junho. Ambos profundamente crentes, quiseram fazê-lo depois de obtida a licença do Vaticano para o abandono do padre Joaquim. Uma vez concedida, fez-se o casamento civil com Joaquim ainda preso em Peniche, em Novembro de 1971. Dois anos depois, em 1973, já em liberdade, fizeram o casamento católico.
Vitória e Joaquim acabariam por não se rever no rumo que o MPLA adoptou depois do 25 de Abril de 1974 e, sobretudo, depois da independência de Angola. Já no seu país, acabariam por ser vítimas de discriminações várias em alguns períodos. Apesar disso, continuaram ambos a apoiar pessoas necessitadas e presos de sucessivas purgas levadas a cabo pelo novo regime.
Em Luanda, Joaquim colaborou com a paróquia do Carmo, entregue aos padres dominicanos. “Cantava muito bem e era um excelente maestro do coro”, recordava Vitória na conversa no final de Maio, em Lisboa. E mantinha amizade com antigos colegas – alguns dos quais chegariam a bispos, como foi o caso de Franclim Costa e Alexandre Nascimento, que viria a ser arcebispo de Luanda e cardeal.
Apesar da saúde debilitada, Vitória ainda fazia projectos. Tinha em mente “lançar as bases de um grupo de reflexão cristã” em Luanda. Para isso, contava com o apoio dos seus amigos padres dominicanos. E, sobretudo, estava a trabalhar num livro de memória e homenagem a Joaquim Pinto de Andrade, que deverá ser publicado nos próximos meses pela Afrontamento.

(Além das pessoas citadas, agradece-se a Conceição Lobo Antunes e Mário Brochado Coelho a colaboração prestada)

Um depoimento de Teotónio Pereira sobre a luta contra o Estado Novo pode ser lido aqui

O último texto da série Os católicos na luta contra a ditadura pode ser lido aqui


Texto anterior no blogue
O arquitecto que se despediu de Lisboa antes de cegar  - um perfil de Nuno Teotónio Pereira e da sua obra


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